© PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural. ISSN 1695-7121
Vol. 14 N.o 5. Págs. 1297-1308. 2016
www .pasosonline.org
Opiniones y ensayos
O Escudo Guianês: um patrimônio natural para preservar
Rubens da Silva Ferreira*
Universidade Federal do Pará (Brasil)
Rubens da Silva Ferreira
* Doutorando em Ciência da Informação (IBICT/UFRJ). M.Sc. em Planejamento do Desenvolvimento (NAEA/UFPA).
Especialista em Bibliotecas Universitárias (CSE/UFPA). Bacharel em Biblioteconomia (SCE/UFPA). Docente da Faculdade
de Biblioteconomia (FABIB/ICSA/UFPA); E‑mail:
rubenspa@yahoo.com
Resumo: O trabalho reflete sobre o Escudo Guianês como patrimônio natural a ser preservado em um
processo orientado pela cooperação internacional entre Brasil, Colômbia, Guiana Francesa, Guiana,
Suriname e Venezuela na proteção de um bem transfronteiriço. Entre outras possibilidades, aponta para a
criação de Unidades de Conservação (UC) nesse relevo sul-americano para inclusão na Lista de Patrimônio
Mundial da United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (UNESCO).
Palavras-chave: Escudo Guianês; Biodiversidade; Patrimônio natural; Patrimônio mundial.
The Guiana Shield: a natural heritage to preserve
Abstract: The work reflects on the Guiana Shield as natural heritage to be preserved in a process driven by
international cooperation between Brazil, Colombia, French Guiana, Guyana, Suriname and Venezuela in the
protecting of a transboundery property. Among other possibilities, a proposed action in this direction is given by
the creation of Conservation Units (CU) for inclusion in the World Heritage List of the United Nations Educa‑tional,
Scientific and Cultural Organization (UNESCO).
Keywords: Guiana Shield; Biodiversity; Natural heritage; World heritage.
1. Introdução
O Escudo Guianês, também conhecido como Escudo das Guianas ou Escudo Guianense, constitui‑se
em um relevo rochoso cristalino, que forma uma área tectonicamente estável na América do Sul (Reis
et al., 2006). Ele já esteve ligado ao Oeste da África antes do pré‑rompimento
de Pangeia, possuindo
jazidas minerais de ferro, manganês, ouro e prata, o que o torna objeto de interesse econômico para os
Estados e para as companhias multinacionais interessadas na exploração desses recursos (Reis et al.,
2006). Em solo brasileiro ele se estende por parte da Região Norte, especialmente pelo estado do Amapá,
do Pará, do Amazonas e de Roraima. Em terras internacionais, ocupa quase toda a área da Guiana
Francesa, da Guiana e do Suriname, prolongando‑se
também em uma parte expressiva da Venezuela
e uma pequena porção da Colômbia. Trata‑se,
portanto, de um testemunho da formação da Terra, que
abriga formas de vida e biomas diversos que estão em contato com as idiossincrasias da dinâmica
política, social, cultural, jurídica e econômica dos países por onde se estende.
Marcado por uma biodiversidade que lhe é própria, o Escudo Guianês vem sendo debatido pela
comunidade científica internacional quanto à ação antrópica desordenada face os rumos do desenvol‑vimento.
Nesta direção, em 2006, na cidade de Santa Elena de Uairén, estado Bolívar, na Venezuela,
a Universidad Nacional Experimental de Guayana (UNEG) reuniu estudiosos de diferentes áreas do
conhecimento no I Congresso Internacional da Biodiversidade do Escudo Guianês (Ferreira e Santos,
2010)1. No centro do debate estava a relação ser humano/meio ambiente no contexto desse relevo, e, dentre
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outras questões, os estudos mostravam os danos aos ecossistemas terrestres e lacustres em função da
atividade mineradora, os modos de ser e de viver dos grupos étnicos cuja vida está intimamente ligada
aos recursos disponíveis nesse escudo, bem como as políticas de desenvolvimento dos países pelos quais
ele se estende. Assim, de um modo geral, os pesquisadores revelaram uma realidade problemática, que
demanda ações em direção à preservação do meio ambiente e dos povos que lá vivem, orientando‑se
pelo princípio do que tem sido chamado de sustentabilidade.
Diante deste contexto, este estudo tem por objetivo construir um entendimento sobre o Escudo Guianês
como objeto de patrimonialização. Isto é, tomá‑lo
como elemento em processo de proteção no qual estão
envolvidos não apenas instrumentos legais e metodológicos, mas também expressões de poder, uma
vez que a atribuição de valor aos bens culturais e/ou naturais sempre mobiliza sujeitos com interesses
distintos, abrindo, assim, espaço para o conflito e para a negociação (Boylan, 2006; Velho, 2006; Cruz,
2012). Com efeito, pensar em estratégias de proteção ao Escudo Guianês e, consequentemente, às formas
de vida que ele abriga, significa buscar caminhos possíveis para a cooperação internacional entre os
vários países sul‑americanos
pelos quais ele se estende.
Logo, a pergunta que orienta este ensaio é a seguinte: como pensar a preservação do Escudo Guianês
em sua diversidade biológica e cultural segundo uma lógica patrimonial? Todavia, dadas as dimensões
desse escudo impõe‑se
a discussão do conceito de território, uma vez que ele se estende por terras além
das fronteiras nacionais, precisamente no Brasil, Guiana Francesa, Guiana, Suriname, Venezuela e na
Colômbia. Por conseguinte, vista esta introdução, a discussão que segue trata do desenho teórico para,
em seguida, pensar as ações possíveis de proteção a esse patrimônio natural, e, consequentemente, da
diversidade biológica e cultural das populações indígenas e tradicionais que nele encontram as condições
de sua reprodução material e cultural. Destarte, ao final são apontadas estratégias de proteção tanto
no âmbito nacional, com ações implementadas por cada um dos países e departamento ultramarino2
cingidos por esse relevo, quanto na esfera internacional, neste último caso, pleiteando junto à United
Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (UNESCO) a inclusão de novas áreas do
Escudo Guianês na Lista de Patrimônio Mundial.
2. O Escudo Guianês: território de diversidade biológica e cultural
O processo de expansão ultramarina iniciado no século XV como empreendimento de conquista de
novos territórios, expansão do poder e de acumulação de recursos naturais, acabou por revelar mais do
que a existência de especiarias e de minérios. Não só o ouro e a prata para sustentar a economia das
coroas dos impérios do Velho Mundo tornaram‑se
objeto de interesse dos colonizadores, como também
os indígenas que pouco a pouco seriam doutrinados pela Igreja Católica Apostólica Romana. No plano
científico, para homens interessados nos estudos em História Natural, a conquista de terras além‑mar
representava a possibilidade de descobrir e de catalogar espécies da fauna e da flora até então desconhecidas
pelos europeus, mas não para as populações indígenas que já viviam nas terras que vieram a se tornar
colônias de exploração. Ainda nesta direção, ao se considerar o caso da ocupação espanhola, francesa,
inglesa, holandesa e portuguesa na América do Sul, notadamente a partir da expansão ultramarina,
tem‑se
nesse momento os primeiros contatos com a biodiversidade de uma floresta tropical comentada
logo nas primeiras correspondências enviadas aos países que impulsionavam tais viagens, em especial
Portugal e Espanha. Um exemplo nesta direção é a famosa carta de Pero Vaz de Caminha ([1500],
1963), sobre o “descobrimento” do Brasil, e os relatos de Carvajal ([1541‑1542],
1944) e de Acuña (1641),
sobre as expedições que empreenderam pelo Rio Amazonas. Nessas narrativas não é difícil encontrar
descrições textuais sobre as florestas, os rios e os diferentes animais que vivem nesses domínios e que
são apresentados como novidade exótica ao olhar curioso do homem europeu.
Na medida em que o império português, espanhol, inglês, francês e holandês intensificaram a
construção e a ocupação das primeiras vilas nas terras conquistadas na América do Sul, cresceu
então o interesse pelo levantamento de informações e de conhecimentos acerca dos recursos naturais
disponíveis nessas áreas. França e Inglaterra, nesta perspectiva, em articulação com as associações
científicas da época, passaram a organizar expedições chefiadas por exploradores de renomado saber
ou indicados por naturalistas mais experientes3. Seguindo pela Venezuela, Suriname, Guiana, Guiana
Francesa e Brasil (em trechos de Roraima e Amapá), os viajantes percorreram terras e rios das áreas
pelas quais se estende o Escudo Guianês (Figura 1). E entre outras ações, eles realizaram observações
sobre plantas, mamíferos, aves, répteis, insetos e peixes que compõe a biodiversidade desse escudo,
aqui pensado como território.
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Figura 1: Vista do Escudo Guianês, circunscrito pelo tracejado em vermelho.
Fonte: Google Maps, 2014, adaptado pelo autor.
Em sentido amplo, a noção de território está associada à ideia de posse de uma determinada área, cujos
limites são demarcados por animais, pessoas, organizações ou instituições para atender necessidades
específicas. Em sentido stricto, ao menos do ponto de vista da Geopolítica, o termo designa todo espaço
físico sobre o qual o Estado exerce seu poder jurisdicional (Ratzel, 1990). Sob um olhar antropológico,
Ther Ríos (2006: 106) define território “[...] como el espacio cargado de actividades humanas, de historia
e imaginarios, significa un punto de encuentro para distintos intereses [...]”, quais sejam econômicos,
políticos, religiosos, legais ou culturais, quase sempre conflitantes. Deste modo, a multiplicidade de
interesses e de usos que os atores sociais fazem dele acaba por transformá‑lo
num espaço de tensões e
de conflitos, no qual os sujeitos buscam exercer poder e influenciar os demais indivíduos ou grupos que
se encontram em contato político, econômico e/ou cultural. Todavia, esta concepção de território vigorou
fortemente na Geopolítica entre os anos de 1950 e 1980, sendo progressivamente substituída nos anos
de 1990 (Valverde, 2004), na medida em que as transformações políticas, econômicas e tecnológicas
permitiram engendrar espaços cada vez mais simbólicos de constituição de território.
Então uma nova noção de território foi construída na Geografia, para além da organização socioespacial
de uma determinada nação. Souza (1995), neste ponto, concebe o território como um espaço marcado
pelo poder, no qual as redes de relações que se estabelecem entre os de dentro (insiders) e os de fora
(outsiders) conformam um campo de forças que disputam a primazia pelo exercício do controle sobre os
recursos e as populações. Neste ponto, as ações que se sucedem no território sobre o qual convergem
interesses distintos, acabam por flexibilizar as fronteiras por meio de experiências de posse e de
exclusão. Ou seja, conforme a dinâmica das relações dos grupos de poder, as fronteiras podem surgir
ou desaparecer, se expandirem ou se contraírem, conforme a territorialidade construída. Acerca desse
último termo, Sack (1986) o explica como o produto de estratégias de um grupo dominante no controle
do território. Do ponto de vista prático, a territorialidade é construída pela (1) classificação da área do
território, pelo (2) controle de acesso e pelo (3) modo de comunicação. Isto significa dizer que a criação de
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limites de contato entre pessoas e coisas num território é feita sem a necessidade de classificá‑las
uma
a uma, dando simplesmente pela imposição de barreiras físicas ou simbólicas para controlar o acesso de
outros indivíduos, de outros grupos que desejam os recursos que não estão sob sua jurisdição. Por fim,
tem‑se
a comunicação ampla, critério pelo qual o território é entendido sob o controle de um determinado
grupo mediante a manifestação explícita de posse, seja esta manifestação oral ou documentada em leis,
mapas ou outros meios gráficos.
Neste contexto, o Escudo Guianês é pensado aqui como um território sob diversos aspectos. Primeiro
porque ao longo de toda a sua extensão geográfica ele é ocupado e apropriado por atores sociais distintos,
pertencentes às sociedades tradicionais ou às sociedades capitalistas, que o utilizam para a satisfação
de suas necessidades materiais e culturais. Ademais, dados os recursos naturais que possui tais como
minérios, madeiras, água doce, plantas de uso medicinal e outros, a ocupação e o uso dele envolvem
relações diplomáticas e de poder entre Brasil, Guiana, Guiana Francesa, Suriname, Venezuela e Co‑lômbia.
Tais aspectos configuram‑no
como um espaço transnacional, todavia, marcado pelos contrastes
econômicos, políticos, sociais e culturais de cada nação e território ultramarino que o constitui. Em
face dessas particularidades, há que se destacar os elementos de integração e de desintegração que
envolvem as relações entre Brasil, Guiana, Guiana Francesa, Suriname, Venezuela e Colômbia nesse
relevo sul‑americano.
No que se refere às relações diplomáticas entre os países e departamento ultramarino já citados,
observa‑se
que eles gozam de um clima propício à cooperação internacional, sobretudo pela quase completa
ausência de tensão política entre eles. Aliás, no plano ambiental já existe um acerto diplomático. O
Tratado de Cooperação Amazônica (TCA), celebrado entre os países e o departamento ultramarino em
contato com o Escudo Guianês mais o Peru, a Bolívia e o Equador, em seu cerne tem a preocupação com
o desenvolvimento sustentável. Isto significa dizer que as partes envolvidas no TCA estão – ao menos
em tese – em busca de alternativas de desenvolvimento que assegurem a melhoria da qualidade de vida
das populações amazônicas, o crescimento econômico e a proteção do patrimônio natural dessa região.
A respeito da cooperação internacional, Sola et al. (2006) observam que ela se coloca como iniciativa da
maior importância nas situações de danos ambientais transfronteiriços, sobretudo porque envolvem
questões relacionadas à soberania e ao desenvolvimento dos países afetados pelos efeitos negativos da
ação antrópica. Em razão disso, desde 1978 a Comissão de Direitos Internacionais das Nações Unidas vêm
discutido encaminhamentos quanto aos prejuízos causados à natureza (Sola et al., 2006), precipuamente
porque os ecossistemas são autônomos em relação às fronteiras que delimitam um determinado país,
tal como evidencia o Escudo Guianês em sua diversidade biológica.
Diante de um relevo que está para além dos limites jurídicos de uma nação em particular, Fogel (2008),
ao tratar da tríplice fronteira entre Brasil, Paraguai e Argentina nos ajuda a pensar os elementos de
integração e de desintegração entre os países cingidos pelo Escudo Guianês. De acordo com esse autor,
a identificação de fatores positivos deve ser fortalecida pelos Estados em razão de suas fronteiras; os
fatores negativos, por sua vez, devem ser objeto de controle estatal, notadamente por meio de políticas
públicas específicas, capazes de reduzir os efeitos danosos que uma decisão governamental possa gerar
sobre cada um dos países envolvidos. Ao se pensar o caso específico do Escudo Guianês, têm‑se, então,
como aspectos positivos, as experiências nacionais de criação de áreas de proteção ambiental, tal como
no Brasil, na Venezuela e no Suriname, resultando em uma base de conhecimento científico, tecnoló‑gico,
jurídico, político e prático com potencial para ser mobilizada, compartilhada e ampliada para os
demais países e departamento ultramarino em contato com esse relevo. Ao se pensar o caso específico
do Escudo Guianês, como aspectos positivos têm‑se
a integração entre os países, as relações políticas,
econômicas e culturais, o compartilhamento de áreas transfronteiriças por populações indígenas e os
biomas terrestres e aquáticos nos quais estão concentradas diversas espécies animais e vegetais. Por
outro lado, entre os aspectos negativos que se impõem como entraves a essas relações, têm‑se,
entre
outros, o contrabando de armas, o tráfico humano, de animais silvestres e de drogas, a poluição de rios
por mercúrio em função da atividade aurífera clandestina4 e a biopirataria. Tais práticas negativas são
favorecidas pelas condições naturais desse relevo, que compartilha de uma imensa região de floresta
tropical densa, recortada por rios e exposta às fragilidades dos Estados no controle eficiente de suas
fronteiras, facilitando, desta maneira a realização de práticas ilegais de toda sorte.
É assim, que, ao se considerar os aspectos negativos que envolvem a realidade do Escudo Guianês,
defende‑se
aqui a necessidade de uma intervenção estatal efetiva em direção ao enfrentamento dos
problemas humanos e ambientais. Torna‑se
imperativo, nesse sentido, a elaboração e a implementação
de políticas públicas capazes de interferir nos males socioambientais internos de cada país ou território
ultramarino, de maneira a buscar estratégias capazes de produzir efeitos sobre os obstáculos que
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ameaçam a vida nesse relevo. Isto porque o conceito de biodiversidade envolve a vida em uma dimensão
planetária, o que inclui a variabilidade dos seres vivos, dos diferentes ecossistemas e dos complexos
ecológicos da biosfera, cuja existência deles, e, por extensão, da própria da espécie humana está a depender
(Lewinsohn e Prado, 2008). Assim, entre as espécies animais em vulnerabilidade ou risco de extinção no
território do Escudo Guianês têm‑se,
por exemplo, a onça pintada (Panthera onca), a tartaruga de couro
(Dermochelys coriacea), o macaco‑aranha
(Ateles geoffroyi), o surubim (Steindachneridion amblyura), a
anta (Tapirus terrestris), um tipo de rã (Dendrobates azureus), o araçari‑de‑pescoço‑vermelho
(Pteroglossus
bitoquartus bitoquartus), o galo‑da‑serra
andino (Rupicola peruviana), a suçuarana (Puma concolor)
e o sapo púrpura fluorescente, este último, aliás, só recentemente descoberto em expedição científica
ao Suriname (Sapo..., 2007). Da flora, tem‑se
a castanheira (Bertholletia excelsa H. B. K.), o mogno
(Swietenia macrophylla, King.) e a andiroba (Carapa guianensis, Aub.) entre outras espécies já bastante
afetadas pela exploração madeireira, destinadas principalmente à demanda do mercado internacional
por móveis fabricados com insumos tidos como nobres, sobretudo o mercado norte‑americano
e europeu.
Para além das espécies animais e vegetais, têm‑se,
ainda, as populações indígenas isoladas, que,
diante do avanço da atividade pecuária, das madeireiras e das mineradoras encontram‑se
em condições
de sobrevivência cada vez mais incertas, em que pesem os esforços da Coordenação de Índios Isolados
e Recém Contatados (CIIRC) da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), ao menos na porção brasileira
do Escudo Guianês. A situação também não se mostra diferente ao se considerar os grupos contatados
que vivem nesse território, como os Palikur, Wayana, Yanomami, Kokama, Baniwa, Waiãpi, Baré,
Pémon, Karapanã, Wai‑Wai,
Desana, Emerillon, Wenaiwika, Maku, Bará, Hixkariana, Kapon, Tuyuka,
Galibi‑Marworno,
Kulina, Galibi do Oiapoque, Sikuani e outras muitas etnias. Para essas populações
os recursos naturais garantem não só o sustento, mais também a reprodução dos bens imateriais, que,
coletivamente ritualizados, contribuem para o fortalecimento de sua identidade cultural.
Populações tradicionais, ou seja, aquelas que usam conhecimentos tradicionais para a subsistência,
empregando tecnologias sustentáveis – a exemplo do que fazem os extrativistas, ribeirinhos, seringueiros
e quilombolas – também ocupam áreas do Escudo Guianês (Arruda, 1999). De maneira similar aos
indígenas, essas pessoas mantêm um modo de vida fortemente associado aos recursos hídricos, lacustres,
madeireiros, florísticos e faunísticos encontrados nesse relevo. Por conseguinte, pensar em ações de
preservação para o Escudo Guianês implica percebê‑lo
como patrimônio natural, isto é, como um bem
compartilhado não só pelas populações humanas em suas diferentes etnias e tradições produtivas, mas
também pelos demais seres vivos encontrados nos biomas que formam a diversidade biológica desse relevo.
3. O Escudo Guianês em uma perspectiva patrimonial
É no âmbito internacional que podemos encontrar as bases normativas capazes de preservar o Escudo
Guianês como patrimônio natural. Em 17 de outubro de 1972, a United Nations Educational, Scientific
and Cultural Organization (UNESCO) promoveu, em Paris, sua 17º reunião para discutir a proteção do
patrimônio mundial, cultural e natural (UNESCO, 2006)5. Do encontro resultaram várias orientações
quanto à proteção nacional e internacional dos bens relacionados à natureza e à cultura de interesse
à preservação. Deste modo, as formações geológicas e fisiográficas, bem como as zonas habitadas por
espécies animais e vegetais ameaçadas são elementos que merecem atenção dos Estados em suas políticas
de preservação, quer dizer, em políticas capazes de evitar a perda da diversidade biológica e dos recursos
naturais existentes (UNESCO, 2006). Tais elementos são destacados como patrimônio natural de valor
universal, o que implica conjugação de esforços jurídicos, científicos, técnicos e financeiros internacionais
no enfrentamento dos mecanismos de ameaça à continuidade histórica dessa modalidade de bem, que,
uma vez destruído, não pode ser reconstituído do mesmo modo que um prédio histórico, por exemplo.
No documento da Convenção do Patrimônio Mundial, assinado pelos Estados participantes da 17ª
reunião da UNESCO6, é possível verificar cinco fatores elementares à identificação da necessidade de
preservação do patrimônio natural. O primeiro deles diz respeito à ameaça constante de destruição,
quer pelas transformações que se sucedem na esfera social, política e/ou econômica das sociedades
que estão em contato com os bens produzidos pela natureza, quer pelas mudanças naturais impostas
pela própria dinâmica das forças naturais. Em segundo lugar, a degradação do patrimônio natural
resulta em uma perda para a população mundial, o que se impõe como um argumento de força sob
a perspectiva sistêmica da relação ser humano/natureza e da influência mútua que um exerce sobre
o outro. Um terceiro argumento aponta para os limites de proteção dos bens naturais no âmbito dos
Estados. Limites esses que são tanto de ordem política, técnica e científica quanto econômica e que
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interferem nas ações estatais para dar conta de áreas de grande extensão territorial, tal como é o caso do
Escudo Guianês, cujo relevo e a diversidade biológica ultrapassam fronteiras nacionais. O quarto fator
importante nos esforços internacionais de proteção do patrimônio natural diz respeito à prerrogativa
da UNESCO para estimular a criação de instrumentos capazes de assegurar a continuidade de bens
ímpares, “insubstituíveis”, logo, de excepcional valor universal para as diferentes sociedades existentes
no planeta, sejam elas tradicionais ou industrializadas. Um quinto fator aponta para a necessidade da
“coletividade internacional” no envolvimento em ações de proteção ao patrimônio natural de “excepcional
valor universal” (UNESCO, 2006), sempre que este estiver ameaçado. Entretanto, a articulação dos
países não significa a substituição do Estado, interessado na preservação de seu próprio patrimônio
natural. Isto significa dizer que, em sua estrutura administrativa, cada país deve dispor de departa‑mentos,
secretarias ou de setores encarregados dos assuntos relacionados não somente ao patrimônio
cultural, mas também ao natural, bem como de instrumentos normativos e metodológicos necessários
ao cumprimento de suas funções.
A mesma Convenção orienta ainda que os Estados, na responsabilidade de identificar, estudar,
proteger, preservar e difundir o patrimônio cultural e/ou natural em seus respectivos territórios podem,
quando necessário, utilizar estratégias de assistência e de cooperação internacional. Esta articulação
entre países é vislumbrada nas dimensões técnica, financeira, artística e/ou científica, de acordo com as
especificidades do bem a ser constituído como objeto de proteção. No caso particular do Escudo Guianês,
a pesquisa científica multidisciplinar se coloca como da maior importância, sobretudo na produção de
diagnósticos e de inventários de áreas de interesse à preservação, notadamente por sua diversidade
biológica e cultural. Os documentos gerados a partir desses diagnósticos e inventários são basilares
para os encaminhamentos das propostas de inclusão de novos bens naturais a serem protegidos. De
acordo com a UNESCO (2006: 183), na avaliação dos pedidos pelo Comitê do Patrimônio Mundial são
levados em consideração se os bens culturais e/ou naturais indicados estão:
•• em risco sério de desaparecimento, em função de degradação acelerada;
•• ameaçados por projetos de obras públicas ou privadas de grandes proporções;
•• fragilizados em função do acelerado desenvolvimento urbano e turístico;
•• em risco de destruição por alterações de uso ou de propriedade da terra;
•• sujeitos a alterações significativas provocadas por causas desconhecidas;
•• abandonados por qualquer razão;
•• em áreas de conflito armado declarado ou sob o risco de eclodirem7; e
•• em áreas atingidas por catástrofes, cataclismos, terremotos, grandes incêndios, deslizamentos de
terras, erupções vulcânicas, alterações expressivas do nível das águas como aquelas decorrentes
de maremotos, inundações e outros do tipos.
Nas propostas encaminhadas ao Comitê do Patrimônio Mundial da UNESCO também estão incluídas
aquelas que envolvem bens culturais e/ou naturais situados em territórios que se estendem pela
jurisdição de vários países, os assim chamados bens transfronteiriços. Na condução do processo, uma
vez aprovada a solicitação de inclusão dos bens na Lista do Patrimônio Mundial, o Comitê delibera
sobre “[...] a natureza e a amplitude de sua ajuda e autorizará a celebração, em seu nome, dos acordos
necessários com o[s] governo[s] interessado[s]” nas ações de salvaguarda para a preservação do patri‑mônio
cultural e/ou natural (UNESCO, 2006: 184). Na análise do pedido, todavia, não são levados em
consideração aqueles em que não exista consentimento entre todos os Estados interessados na proteção
do bem transfronteiriço.
Uma ação internacional potencial, articulada entre Brasil, Guiana Francesa, Guiana, Suriname,
Venezuela e Colômbia precisa ser buscada em direção à proteção do Escudo Guianês, e, consequentemente,
à proteção da diversidade cultural e biológica que ele abriga. Embora insuficientes, no contexto do
território ocupado por esse relevo existem iniciativas isoladas de algumas nações limítrofes, a exemplo
do Brasil, da Venezuela e do Suriname. Deste modo, em terras brasileiras, o Complexo de Preservação
da Amazônia Central foi incluído na Lista do Patrimônio Mundial pela UNESCO em 2002, abrangendo
uma área de proteção de mais de 5,3 milhões de hectares (UNESCO, 1992‑2011).
Por sua vez, o Parque
Nacional Canaima, na Venezuela, possui status congênere desde 1994. Ocupando uma área fronteiriça
tríplice de 3 milhões de hectares, ele abriga indígenas Pémon, uma biodiversidade com a ocorrência
de espécies endêmicas e formações geológicas conhecidas como tepui (UNESCO, 1992‑2011).
Essas
formações se assemelham a grandes mesas rochosas, que se erguem imponentes sobre o bioma da
savana. Inclusive uma polêmica local tem surgido em torno das tradições dos Pémon e dos usos que
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fazem dos recursos naturais nesse Parque. Trata‑se
do costume de utilizar o fogo antropogênico para
caçar o veado de rabo branco (Odocoileus viginianus), para a comunicação humana e para evitar pragas
de animais peçonhentos como escorpiões (Bothriuridae) (Romero, 2010). Assim, cientistas se dividem
em opiniões, pois, para alguns, o manejo da savana com o uso do fogo é importante para a renovação
da vegetação; para outros, a prática recorrente das queimadas ameaça as espécies florísticas mais
sensíveis, que não conseguem se reproduzir após o incêndio, e, por outro lado, as chamas provocam a
matança desnecessária de insetos, répteis e mamíferos importantes nesse bioma.
A Reserva Natural do Suriname Central também aparece na Lista de Patrimônio Mundial. Ela é
formada por uma ampla área de floresta tropical primária, distribuída em 1,6 milhões de hectares,
representando uma das maiores áreas das terras altas do Escudo Guianês (UNESCO, 1992‑2011).
Bem
preservada por não ser habitada, ela abriga cerca de 300 espécies de aves conhecidas e 6 mil variedades
de plantas vasculares sui generis, que nascem nas florestas de montanha, nos alagados e no cerrado.
Na bacia do rio Coppename, protegida por essa reserva, ainda são encontrados exemplares de ariranha
(Pteronura brasiliensis), animal que atualmente figura entre as espécies ameaçadas de extinção do
planeta (UNESCO, 1992‑2011).
Nesta discussão sobre medidas de proteção internacional aos bens naturais, o Complexo de Preser‑vação
da Amazônia Central, o Parque Nacional Canaima e a Reserva Natural do Suriname Central
foram incluídos na Lista do Patrimônio Mundial segundo as Orientações Técnicas para Aplicação
da Convenção do Patrimônio Mundial (UNESCO, 2010). Essa inclusão efetivou‑se
pelos critérios de
valor de excepcionalidade, que, em uma perspectiva comparada, são mais ou menos comuns a essas
áreas naturais. Nesta direção, o Complexo de Preservação da Amazônia Central e a Reserva Natural
do Suriname Central foram avaliados pelo Comitê do Patrimônio Mundial da UNESCO como espaços
naturais “[...] excepcionalmente representativos de processos ecológicos e biológicos [...]” que sustentam
ecossistemas terrestres, aquáticos, costeiros e marinhos habitados por espécies ameaçadas de extinção,
tornando‑os
de interesse para a Ciência e para ações de preservação (UNESCO, 2010: 28). Por sua vez,
o Parque Nacional Canaima não só satisfaz a esses critérios como tem a excepcionalidade dada pela
“beleza natural e estética” e pelo caráter de testemunho da formação geológica da Terra (UNESCO, 2010:
28). Em seu conjunto, tais iniciativas em áreas isoladas do Escudo Guianês no Brasil, na Venezuela e
no Suriname junto à UNESCO são reveladoras do valor patrimonial excepcional desse revelo, o que se
dá notadamente pela diversidade biológica que abriga.
Entretanto, diferente do que se tem no Brasil, na Venezuela e no Suriname, as partes do Escudo
Guianês encontradas na jurisdição guianesa, guianesa francesa e colombiana ainda não foram objeto de
estratégias internacionais de proteção, em que pese a existência de espécies da flora e da fauna desses
países e departamento ultramarino em situação de vulnerabilidade ou de ameaça de extinção. É neste
ponto que se defende a ampliação do processo de patrimonialização nesse relevo, a fim de permitir não
só a continuidade dos recursos florestais, hídricos, faunísticos e florísticos, com também das populações
indígenas e tradicionais que dependem deles em sua reprodução material e cultural. Assim, ao se pensar
em um processo direcionado pelos Estados para a inclusão de novas áreas de proteção do Escudo Guianês
na Lista do Patrimônio Mundial da UNESCO, entendemos que este pode se dar a partir daqueles bens
caracterizados como transfronteiriços (UNESCO, 2010), uma vez que eles se expandem e envolvem
territórios de países com fronteiras comuns.
Os pedidos de inclusão na Lista do Patrimônio Mundial que envolvem bens transfronteiriços propria‑mente
ditos são sempre encaminhados conjuntamente pelos Estados interessados. Em razão disso, a
UNESCO recomenda que as partes constituam um “comitê de gestão conjunta” ou organização similar
para a gestão compartilhada do bem elegível (UNESCO, 2010: 39). Em sua formalidade, os processos
referentes ao patrimônio natural são enviados ao Centro do Patrimônio Mundial da UNESCO, sediado
em Paris, a fim de que sejam submetidos à avaliação da União Internacional para a Conservação da
Natureza (UICN), sobretudo quanto ao valor universal de sua excepcionalidade e quanto aos critérios de
proteção e de gestão atendidos pelos proponentes. De um modo geral, entre a submissão da proposta e
a manifestação da decisão do Comitê do Patrimônio Mundial tem‑se
um tempo processual estimado em
mais ou menos um ano e meio, sujeito a estudos técnicos complementares e retificação das informações
fornecidas pelas partes interessadas.
Todavia, uma vez tratados os encaminhamentos para a proteção de um bem natural junto à UNESCO,
há que se falar sobre aquilo que entendemos como um processo mais complexo, que envolve ações
preparatórias e posteriores a ele. Ainda que se recomende a proteção de bens transfronteiriços no Escudo
Guianês, o aceite do pedido e, consequentemente, sua inclusão na Lista do Patrimônio Mundial, tudo
isto corresponde a etapas menores do processo de patrimonialização. Esse processo, em si, precisa ser
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dimensionado como algo maior e dinâmico, que tem início ainda na esfera local, onde os diferentes
agentes se mobilizam em seus interesses por ações orientadas pela proteção, ou não, do patrimônio
cultural e/ou natural. Na base desse processo tem‑se
a sociedade mais ampla, heterogênea por natureza,
congregando diferentes indivíduos e grupos em sua capacidade de criar, identificar, sentir, vivenciar,
valorar e significar aquilo que entendem como parte de suas vidas enquanto coletividade. Em outra
instância tem‑se
o Estado, com seu aparato legislativo, executivo e judiciário disciplinando, controlando
e organizando, ao mesmo tempo, o território e a sociedade. Nessa disputa de forças e de interesses
também se faz presente o Mercado, atuando na dimensão da produção para a geração de riqueza, tal
como faz a indústria extrativista e de transformação, cuja base do processo produtivo depende dos
recursos que é capaz de obter da natureza. Não se pode esquecer também da sociedade civil, isto é, dos
coletivos de sujeitos ou de grupos politicamente organizados e mobilizados em torno de determinadas
questões, estejam elas incluídas, ou não, na agenda política do Estado; aqui estão incluídos, por exemplo,
os movimentos sociais e as Organizações Não Governamentais (ONG).
São estes agentes que, em maior ou em menor força encontram‑se
na discussão, na disputa, no conflito
e no desafio de produzir consenso sobre o que é patrimônio cultural ou natural, portanto, o que deve ser
preservado – e, paradoxalmente, o que deve ser relegado ao esquecimento –, com quais estratégias, por
quem, para quem e com que recursos. Esta é, aliás, a mesma dinâmica do processo de patrimonialização
no âmbito da UNESCO, onde países de diferentes continentes, níveis de desenvolvimento e influência
política e econômica competem pela elegibilidade de seus bens culturais e/ou naturais ao título de
Patrimônio Mundial. Uma disputa duplamente motivada, pois, de um lado têm‑se
os interesses pelos
recursos provenientes do Fundo do Patrimônio Mundial8, destinados à proteção e à salvaguarda dos
bens listados pela UNESCO, e, de outro, o incremento na balança comercial a partir das divisas que o
turismo cultural e ecológico gera para os países que possuem bens com status de patrimônio mundial.
Ainda assim, em que pese pensar a possibilidade de cooperação internacional entre Brasil, Colômbia,
Guiana Francesa, Guiana, Suriname e Venezuela quanto às estratégias de proteção ao Escudo Guianês, a
simples inclusão de partes transfronteiriças desse relevo na Lista de Patrimônio Mundial da UNESCO não
assegura por si só a continuidade dos recursos naturais, muito menos das vidas humanas e não humanas
associadas a eles. Como é sabido no campo do patrimônio, assim como um bem pode ser incluído ele
também pode ser retirado da Lista, o que ocorre sempre que os países não cumprem suas responsabilidades
na proteção do patrimônio. Ademais, diante do avanço da extração madeireira e mineral, do comércio
de animais silvestres, da biopirataria, das rotas de tráfico humano e de drogas e dos conflitos por vezes
violentos entre indígenas e não indígenas nas terras cingidas por esse relevo, proteger a cultura, a natureza
e a vida exige políticas públicas intersetoriais que perpassem, ao mesmo tempo, a esfera do patrimônio,
do meio ambiente e da segurança. Com efeito, pensar o Escudo Guianês em uma perspectiva patrimonial
implica planejar e desenvolver ações internas em cada país e departamento ultramarino pelo qual ele se
estende, a fim de potencializar os esforços locais, nacionais e multilaterais na preservação de um território
de diversidade biológica e cultural emblemática. É neste sentido, que, para finalizar a discussão, são feitas
as seguintes recomendações aos países em contato com esse relevo, a saber:
•• promover a identificação e o estudo de bens transfronteiriços no Escudo Guianês, em direção
à elaboração de acordos de cooperação internacional para a proteção dos recursos faunísticos,
florísticos e hídricos, e, por extensão, das populações indígenas e tradicionais cuja vida e cultura
estão diretamente associadas a esses recursos;
•• fomentar e incentivar, técnica e cientificamente, o estudo da diversidade biológica e cultural no
Escudo Guianês, mobilizando a intelligentsia nas universidades, nos institutos de pesquisa e nas
instituições governamentais ou não governamentais dedicadas ao tema do patrimônio e/ou do meio
ambiente, a fim de construir uma base de conhecimento capaz de auxiliar ações locais, nacionais
e multilaterais de proteção ao bens naturais e culturais nesse relevo;
•• aperfeiçoar a legislação, os instrumentos e as metodologias para a proteção do patrimônio natural
e cultural, levando em consideração não apenas a continuidade da diversidade biológica, mas
também das populações que dependem dela para sua reprodução material e cultural;
•• qualificar os recursos humanos presentes nos órgãos governamentais de proteção ao patrimônio
para lidar com os encaminhamentos relacionados aos bens naturais, à diversidade biológica e
cultural, bem como para o uso ótimo dos instrumentos legais e das metodologias da UNESCO
aplicadas à proteção do patrimônio mundial;
•• estimular a composição multidisciplinar de recursos humanos nos órgãos de proteção ao patrimônio,
incluindo pessoal com formação em Botânica, Geologia, Geografia, Zoologia e outras áreas afins;
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•• investir em Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) para o monitoramento das fronteiras
dos países pelos quais o Escudo Guianês se estende, a fim de permitir a identificação e a instru‑mentalização
de ações de fiscalização e de combate ao desmatamento das áreas protegidas, bem
como no enfrentamento da biopirataria, do tráfico humano e de drogas e da exploração ilegal e
predatória dos recursos naturais nesse relevo;
•• discutir e produzir encaminhamentos jurídicos mais duros, precisamente quanto à reparação aos
danos causados ao meio ambiente e às populações pelas empresas mineradoras e madeireiras
que atuam – legal ou clandestinamente – nos países pelos quais se estende o Escudo Guianês; e
•• criar novas Unidades de Conservação9 em áreas de fronteira contíguas no Escudo Guianês,
respeitando os direitos territoriais e de uso dos povos indígenas e das populações tradicionais, a
fim de protegê‑las
junto à UNESCO, tal como ocorre com o Complexo de Preservação da Amazônia
Central, com o Parque Nacional Canaima e com a Reserva Natural do Suriname Central.
Por fim, em paralelo ao encaminhamento dessas ações capazes de viabilizar esforços intergoverna‑mentais,
políticos, científicos e técnicos de preservação mais bem‑sucedidos
na esfera local e nacional,
os países com bens transfronteiriços poderão constituir grupos de trabalho dedicados à identificação,
ao estudo, à elaboração e ao acompanhamento das propostas de inclusão de novas UC na Lista do
Patrimônio Mundial da UNESCO, desde que atendidos os critérios de excepcionalidade e/ou de beleza
natural e estética. Assim, talvez ações como aquelas propostas aqui possam assegurar a continuidade
da diversidade biológica e, por extensão, da diversidade cultural que existe nesse relevo sul‑americano
que se mantém e resiste como um testemunho da formação da Terra.
4. Considerações finais
Presente em terras internacionais de quatro países e de um território ultramarino, envolvendo
paisagens montanhosas, rios de água doce, quedas d’água, Terras Indígenas, áreas urbanas e rurais,
o Escudo Guianês com seu patrimônio natural está longe de ser protegido em toda a sua extensão. Tal
entendimento é dado pela dinâmica capitalista, que se reflete principalmente na expansão econômica
das cidades sobre as áreas florestadas e, também, na pressão do desenvolvimento orientando pela
exploração dos recursos madeireiros, hídricos e minerais. Além disso, desde os tempos coloniais as
savanas vêm sendo transformadas pela produção agrícola e pela pecuária, dentro de um processo cada
vez mais ampliado, acelerado e mecanizado.
É diante do que foi discutido neste ensaio que recomendamos a adoção de ações estratégias orientadas
para a patrimonialização do Escudo Guianês, precisamente com a ampliação do número de UC no
Brasil, Guiana Francesa, Guiana, Suriname, Venezuela e na Colômbia. Na condução desse processo
a atenção precisa ser dirigida para as áreas transfronteiriças nas quais esse relevo se revela em toda
a sua excepcionalidade, beleza natural e estética, assim como para as zonas fisiográficas, cujo habitat
de espécies animais e vegetais encontra‑se
ameaçado pela ação antrópica negativa. Com efeito, a
articulação entre os países fronteiriços pela inclusão de novas áreas do Escudo Guianês na Lista de
Patrimônio Mundial tem potencial para resultar na maior visibilidade internacional de seus biomas e
de sua diversidade biológica e cultural, de maneira a exercer pressão global para a preservação desse
relevo que é um testemunho da formação geológica da Terra.
As ações centradas na proteção da diversidade biológica e cultural no Escudo Guianês, tal como foram
apontadas aqui, precisam ocorrer para além das fronteiras nacionais, pois, os países sobre os quais ele
se estende partilham de problemas ambientais e humanos comuns. Logo, a cooperação internacional
se coloca como um caminho necessário à discussão, ao planejamento e ao encaminhamento de esforços
compartilhados de proteção ao solo, às florestas, às águas e à vida nesse relevo. Ademais, há que se levar
em conta que as condições políticas na região sugerem um clima favorável aos acordos internacionais
em defesa do patrimônio natural e cultural. E, para finalizar, cabe destacar que a condução de uma
estratégia intergovernamental de proteção ao Escudo Guianês, orientada para a patrimonialização
implica, sobretudo, no dever dos Estados em mobilizar as populações indígenas e tradicionais ao longo
de todo o processo. Pois, como se sabe, esses grupos possuem informações e conhecimentos especializados
fundamentais para gestão territorial compartilhada. Além disso, ao envolvê‑los
como sujeitos ativos nas
ações de preservação dos territórios que ocupam, as ações de proteção tendem a ser mais bem‑sucedidas
em termos de alcance e resultados.
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Notas
1 Concebido em uma proposta de encontros bianuais, o Congresso Internacional da Biodiversidade do Escudo Guianês
(COBEG) teve a segunda edição realizada entre os dias 1 e 4 de agosto de 2010, na cidade de Macapá, Amapá. Por sua
vez, a terceira edição ocorreu em 2013, no período de 5 a 8 de agosto, em Paramaribo, Suriname.
2 Ao falar em departamento ultramarino (Dom‑Tom)
faz‑se
referência à Guiana Francesa, uma coletividade territorial
sul‑americana
integrada à França.
3 Neste caso, enquadra‑se
Alexander von Humboldt, quem indicou Richard Schomburgk ao Instituto Prussiano de História
Natural para a missão na Guiana, acompanhado do irmão Robert Schomburgk (Schomburgk, M. R., 1847).
4 Segundo Carmo (2003), na América do Sul, a utilização do mercúrio (Hg) na atividade aurífera se dá nos seguintes países:
Brasil; Guiana; Guiana Francesa; Colômbia; Venezuela; Bolívia; Equador e Peru. Essa substância química é de alta
toxidade, sendo persistente na atmosfera após o uso por um período de dois anos. Além disso, ao ser lançado nos cursos
dos rios, o mercúrio contamina peixes que fazem parte da dieta humana e de muitos animais.
5 Conforme definido nessa reunião, constitui patrimônio natural os seguintes bens: “[1] Os monumentos naturais constituídos
por formações físicas e biológicas ou por grupos de tais formações com valor universal excepcional do ponto de vista estético
ou científico; [2] as formações geológicas e fisiográficas e as zonas estritamente delimitadas que constituem habitat de
espécies animais e vegetais ameaçadas, com valor universal excepcional do ponto de vista da ciência ou da conservação;
[3] os sítios naturais ou zonas naturais estritamente delimitadas, com valor universal excepcional do ponto de vista da
ciência, conservação ou beleza natural” (UNESCO, 2006).
6 Os países e o departamento ultramarino pelos quais se estende o Escudo Guianês aderiram à Convenção nas respectivas
datas: França/Guiana Francesa, 27/06/1975; Brasil, 01/09/1977; Guiana, 20/06/1977; Colômbia, 24/05/1983; Venezuela,
30/10/1990; e, Suriname, 23/10/1997 (UNESCO, 2012).
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7 Um protocolo específico para a proteção do patrimônio cultural foi assinado em Haia por 59 países, em 1954, deixando
de fora os bens naturais. Mesmo assim, dos países sul‑americanos
em contato com o Escudo Guianês, apenas Brasil e
Colômbia aderiram ao acordo (UNESCO, 1999).
8 O Fundo do Patrimônio Mundial é alimentado pela própria UNESCO, pelas contribuições obrigatórias bianuais ou
voluntárias dos Estados signatários, por instituições públicas ou privadas e por pessoas físicas. No caso específico dos
Estados signatários, as contribuições obrigatórias são de valor uniforme e não podem ultrapassar a 1% da doação que
fazem ao orçamento da UNESCO (UNESCO, 2006).
9 No Brasil, a Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000, que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação, define
as UC em seu Artigo 2º como “[...] espaço territorial e seus recursos ambientais, incluindo as águas jurisdicionais, com
características naturais relevantes, legalmente instituído pelo Poder Público, com objetivos de conservação e limites
definidos, sob regime especial de administração, ao qual se aplicam garantias adequadas de proteção [...]” (Brasil, 2000, não
paginado). São exemplos de unidades de conservação as estações ecológicas, as reservas biológicas, os parques nacionais,
os monumentos naturais e os refúgios de vida silvestre, estes objetos de proteção integral; tem‑se,
ainda, como exemplo,
as áreas de proteção ambiental, as áreas de relevante interesse ecológico, as florestas nacionais, as florestas estaduais,
as florestas municiais, as reservas de fauna, as reservas de desenvolvimento sustentável e as reservas particulares do
patrimônio natural, a estas permitido o uso, desde que de forma sustentável (Brasil, 2000).
Recibido: 08/07/2014
Reenviado: 23/04/2015
Aceptado: 20/02/2016
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