© PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural. ISSN 1695-7121
Vol. 13 N.o 5. Págs. 1171-1182. 2015
www .pasosonline.org
* Frequenta o Programa de Doutorado em Meio Ambiente e Desenvolvimento Regional pela Universidade Anhanguera
– UNIDERP: E‑mail:
ksotomayorac@gmail.com
** Professor pesquisador da Universidade Anhanguera‑Uniderp,
Brasil; E‑mail:
gilbertoalves9@uol.com.br
** Professor adjunto I da Universidade Anhanguera Uniderp; E‑mail:
rosematias@uniderp.edu.br
Resumo: Este artigo tem como objeto o artesanato Kinikinau. Objetiva analisar a comercialização dos ar-tefatos
produzidos por essa etnia, restrita espacialmente à cidade ecoturística de Bonito, Mato Grosso do
Sul. A etnia Kinikinau foi considerada “extinta” por mais de meio século. Ressurgida, busca reconhecimento
e utiliza o artesanato como instrumento para dar visibilidade à sua “vontade de diferença”, daí a relevância
do objeto. O Levantamento de dados empíricos foi realizado por meio de visitas a postos de troca da cidade de
Bonito e à aldeia São João, Reserva indígena Kadiwéu, em Porto Murtinho, bem como de coleta de registros
fotográficos das peças artesanais expostas para venda e entrevistas semiestruturadas com comerciantes
e artesãos, além de fontes secundárias que tratam da produção e comercialização do artesanato de outras
etnias. Os resultados descrevem como se dá o escoamento do artesanato Kinikinau no mercado criado pelo
ecoturismo, revelando as limitações que incidem nesse processo.
Palavras‑chave:
Desenvolvimento regional; Artesanato ancestral; Turismo; Patrimônio cultural; Mercado;
Kinikinau; Bonito.
Marketing of Kinikinau handicrafts in Bonito, ecotouristic city of Mato Grosso do Sul, Brazil
Abstract: This article focuses in the handicrafts Kinikinau. It aims to analyze the marketing of artifacts
produced by this ethnic group, in Bonito, ecotouristic city of Mato Grosso do Sul, Brazil. The Kinikinau
were considered “extinct” for over half a century. Nowadays, they seek official recognition. The Kinikinau crafts
became an important tool to help in the quest for ethnic strengthening, hence the relevance of the object. The
survey data was conducted through visits to centers marketing the city of Bonito and the village of São João,
Indian Reserve Kadiwéu, in Porto Murtinho, as well as collecting photographic records of handicrafts exhibited
for sale, semi‑structured
interviews with traders and artisans. Secondary sources that deal with the production
and marketing of handicrafts of other ethnicities are supporting the analysis. The results describe how is the flow
of the Kinikinau handicrafts market created by the ecotourism, revealing the limitations that affect this process.
Keywords: Regional development; Ancestral handicrafts; Tourism; Cultural heritage; Market; Kinikinau; Bonito.
Comercialização do artesanato Kinikinau na cidade
ecoturística de Bonito, Mato Grosso do Sul, Brasil
Karolinne Sotomayor Azambuja Canazilles*
Gilberto Luiz Alves** Rosemary Matias***
Universidade Anhanguera‑Uniderp
(Brasil)
Karolinne Sotomayor Azambuja Canazilles, Gilberto Luiz Alves, Rosemary Matias
1. Introdução
Em Mato Grosso do Sul, o artesanato ancestral (Alves, 2014a) está representado pelas produções das
etnias Kadiwéu, Kinikinau¹, Terena (Gaboardi et al., 2008), Guarani (Mota, 2011) e Guató (Bortolotto e
Guarim Neto, 2005). Dentre os artefatos comercializados em todo o estado, predominam os das etnias
Kadiwéu, Terena e Guarani. A comercialização do artesanato Guató limita‑se
à cidade de Corumbá e
ao distrito de Albuquerque e o artesanato Kinikinau restringe‑se
à cidade de Bonito.
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O artesanato Kadiwéu é um dos mais conhecidos no Brasil. Sua notoriedade se propagou inclusive
em países do exterior como Itália e Alemanha. Objeto de admiração de muitos viajantes e pesquisadores
(Boggiani, 1945; Ribeiro, 1980; Ribeiro, 1989; Levi‑Strauss,
2001), a ornamentação da cerâmica Kadiwéu,
segundo Ribeiro (1980), é considerada uma das mais belas no conjunto da arte indígena brasileira.
O artesanato Terena também tem sensível importância para o Estado. Foi registrado como patrimônio
imaterial histórico, artístico e cultural de Mato Grosso do Sul pelo Governo do Estado, por meio do
decreto normativo Nº 12.847, de 16 de novembro de 2009 (Mato Grosso Do Sul, 2009). Não possui a
mesma popularidade da cerâmica Kadiwéu, mas, segundo estudiosos (Ribeiro, 1980; Ribeiro, 1989),
sua técnica de fabricação é mais apurada.
O artesanato Guarani envolve, principalmente, arco e flecha, cocares, cestaria e colares com sementes
nativas. Os Guarani² compõem o maior grupo indígena de Mato Grosso do Sul, com 41.500 indivíduos
(Mota, 2011). Segundo Alves (2014a: 40), eles “influenciaram profundamente os hábitos, os costumes,
os valores, em síntese a forma de ser, de fazer e de sentir dos sul‑mato‑grossenses”.
Os Guató, os índios canoeiros do Pantanal, utilizam como matéria prima de seu artesanato a aguapé
(Eichhorniacrassipes), cujos aglomerados são conhecidos como camalotes, planta aquática, flutuante,
anual ou perene, nativa da América tropical e encontrada no Pantanal sul‑mato‑grossense
(Bortolotto e
Guarim Neto, 2005). A fibra de aguapé, depois de seca ao sol, é trançada para a confecção de tapeçaria.
Os produtos resultantes são comercializados em Corumbá e no distrito de Albuquerque.
Já o artesanato Kinikinau (Figura 1) se diferencia dos correspondentes a outras etnias por apresentar
características bastante inovadoras. Muitos de seus produtos artesanais, concebidos por mulheres e
homens da etnia, apresentam atributos inéditos, pois não são inerentes às expressões culturais de seu
passado, mas criações atuais motivadas pelo que Silva e Souza denominaram de “vontade de diferença”
(Silva e Souza, 2008: 30).
Essa “vontade de diferença” deriva da situação de invisibilidade que este grupo étnico viveu, por
ter sido considerado “extinto” (Oliveira, 1976) e confundido com os Terena durante muito tempo. Seu
artesanato emergiu, então, como instrumento de autoafirmação do grupo (Figura 2). Ele se tornou
importante elemento de fortalecimento da etnia. Daí a necessidade de se atentar para a sua comer-cialização,
incrementada com o recurso de mercado criado pelo ecoturismo. Esse segmento do turismo
deu vitalidade ao patrimônio cultural dos Kinikinau, suscitando nos membros da etnia o sentimento
de integração social e pertença.
Figura 1. Vaso Kinikinau
Artesã: Agueda Roberto
Figura 2. Pousada em Bonito. Grupo Kinikinau
no Seminário “Povo Kinikinau: Persistindo a
resistência”
Fonte: Coleção Gilberto L. Alves Fonte: http://pib.socioambiental.org/pt/povo/kinikinau/531
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O objetivo deste trabalho é analisar a comercialização do artesanato produzido pelos Kinikinau em
Mato Grosso do Sul. São colocados em discussão aspectos relacionados à influência do mercado produzido
pelo ecoturismo sobre a cultura material dessa etnia e descritos os principais postos comerciais da
cidade ecoturística de Bonito, onde são vendidos seus artefatos, além dos mecanismos que interferem
nos preços praticados.
Sobre as fontes teóricas, nortearam a análise os estudos antropológicos de Ribeiro (1980), Ribeiro
(1984) e Oliveira (1968), que evidenciaram a crise do artesanato cerâmico indígena em meados do
século XX. Os estudos de Alves (2014b) clarearam o incremento da atividade oleira indígena, a partir da
década de 1970, sob o influxo do turismo de pesca, inicialmente, e do ecoturismo, em seguida. Categorias
conceituais, como artesanato ancestral, foram buscadas, igualmente, em Alves. Os estudos teóricos de
Silva e Souza (2008) sobre o movimento político dos Kinikinau em direção à sua reemergência também
foram essenciais. A combinação desses estudos, ao considerar o incremento do artesanato por força do
mercado gerado pelo turismo, explica o porquê de os Kinikinau terem eleito a produção de artefatos
artesanais como uma frente política fundamental para seu reconhecimento étnico na passagem do
século XX para o século XXI.
Figura 3. Localização da Reserva Indígena Kadiwéu: aldeia
São João e demais aldeias em Mato Grosso do Sul, Brasil.
Fonte: Adaptação dos Mapas de Bittencourt e Ladeira (2000: 40) e Souza (apud Graziato, 2008: 111).
Quanto às fontes de levantamento de dados empíricos, foram utilizadas fontes secundárias que
tratam da produção e comercialização do artesanato indígena na região (Godoy, 2001; Bortolotto e
Guarim Neto, 2005; Graziato, 2008; Gomes, 2008; Canazilles, 2013). Observação sistemática, registros
fotográficos e entrevistas semiestruturadas foram realizados com comerciantes e artesãos, por meio de
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visitas a diferentes postos de troca da cidade de Bonito, bem como levantamentos a campo nos meses
de maio e outubro de 2012, na Reserva indígena Kadiwéu, mais precisamente na aldeia São João, em
Porto Murtinho. A aldeia São João se localiza a 70 km de distância da cidade ecoturística de Bonito e
a 462 km da capital, Campo Grande, em Mato Grosso do Sul, Brasil.
Segundo Pereira (2009), a Reserva Indigena Kadiwéu é considerada uma área de Proteção Legal e
possui uma extensão de 5.413,41 km², equivalentes a 30,62% de Porto Murtinho. O município de Porto
Murtinho localiza‑se
na região oeste do Estado do Mato Grosso do Sul (56,40° e 58,05° de longitude oeste
e 20,15° e 22,10° de latitude sul), correspondendo a uma superfície de cerca de 17.680 km. A aldeia São
João, além de outras aldeias que compõem a reserva, está representada na Figura 3.
As Entrevistas semiestruturadas foram realizadas na aldeia São João com a Presidente da Associação
Indígena dos Ceramistas Kinikinau, Agueda Roberto, e com a artesã indígena Genoveva Roberto Pluris.
Os questionamentos principais das entrevistas levaram em consideração os aspectos relacionados ao
escoamento da produção das artesãs para o mercado. Além disso, foram entrevistados também, na
cidade de Bonito, os comerciantes Marcelo Leão de Souza, Edson Sebastião da Silva, Maria Jerônimo da
Silva, Ione Rodrigues Pache, entre outros. Foi utilizada a técnica de análise de conteúdo para investigar
o material qualitativo obtido através das entrevistas. Minayo et al. (2004) enfatiza que a análise de
conteúdos se refere a verificar hipóteses e/ou questões, além de descobrir “o que está por trás de cada
conteúdo manifesto, indo além das aparências do que está sendo comunicado”. A análise das memórias
captadas pelo pesquisador por meio de entrevistas pode revelar relações sociais e fatos ocultos que
às vezes não são evidenciados na literatura. Segundo Thompson (1992: 27), “Sem a evidência oral, o
historiador pode, de fato descobrir muito pouca coisa, quer sobre os contatos comuns da família com os
vizinhos e parentes, quer sobre suas relações internas”.
2. Produção artesanal indígena e mercado
Discussão realizada por Ribeiro (1984: 14) no estudo “Artesanato Indígena: para quê, para quêm?”
descreve as consequências do contato das etnias indígenas com a sociedade capitalista, na atualidade.
Revela, também, a importância de sua cultura material como recurso para propiciar geração de renda,
contribuir para a autoestima e para a consolidação de novas relações sociais, além do fortalecimento
étnico. Segundo a autora “a produção artesanal para o mercado proporciona ao índio a oportunidade
de exercer uma atividade a que está habituado e que faz parte do seu patrimônio cultural; inibe sua
saída da comunidade para alugar sua força de trabalho como trabalhador braçal, coletor de especiarias,
caçador ou pescador; proporciona a confraternização dos homens e das mulheres nas horas de trabalho
artesanal coletivo; e lhes garante uma renda que julgamos deva ser superior à que aufeririam como
empregados de ínfima categoria nos empreendimentos regionais”.
O contato com a sociedade capitalista realizou a instauração de transformações profundas nas funções
dos produtos artesanais indígenas, criados originariamente para atender necessidades básicas dessa
população. “A cerâmica, bem como o arco e a flecha, vendidos nas estradas e em lojas especializadas em
artesanato indígena, já não servem à preservação de alimentos nem à caça ou à pesca. São, basicamente,
mercadorias que permitem ao ‘artesão’ adquirir, no mercado, as demais mercadorias que, sob as novas
condições hegemonizadas pelo capital, asseguram a sua subsistência” (Alves, 2003: 14). Esses novos
artigos passaram a assumir uma função meramente decorativa, visando a atender aos anseios dos turistas.
Em paralelo, é necessário acentuar que o desenvolvimento do turismo produziu mercado para o
artesanato indígena em Mato Grosso do Sul. Ribeiro (1980) e Oliveira (1968) caracterizaram a crise que
fazia a produção artesanal kadiwéu e terena tender ao desaparecimento em meados do século XX. Alves,
em artigo recente, afirma categoricamente que o turismo de pesca, inicialmente, salvou da extinção o
artesanato indígena. Isso ocorreu a partir da emergência de empresas turísticas que organizaram o
turismo de pesca na região, a partir da década de 1970. O ecoturismo determinou a intensificação da
produção artesanal (Alves, 2014b). Isso gerou consequências. Por força de sua progressiva associação
ao mercado do turismo, o artesanato sofreu, na mesma intensidade, mudanças formais nos grafismos e
nas tonalidades da ornamentação. Foi incrementada, também, a tendência de miniaturização das peças
cerâmicas zoomorfas e antropomorfas. Pratos decorativos, cinzeiros, cofres (com modelos de animais),
são bastante encontrados. Essas peças substituem as travessas, vasos e panelas utilitárias produzidas
no passado. Ao mesmo tempo, são inovações formais que vêm intentando ampliar o mercado desses
produtos cerâmicos.
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Segundo Gomes (s.d: 8‑9),
“as transformações nos objetos acontecem desde sua coloração e polimento
até a forma na qual são comercializados na atualidade. As novas feições resultam tanto das encomendas
de turistas e comerciantes como também das informações adquiridas pelas ceramistas através da
televisão, revistas e outros meios de comunicação aos quais têm acesso. Ao atender aos pedidos por novos
formatos de objetos, as mulheres têm a possibilidade de vender mais peças e constituir ou aumentar
sua freguesia”.
Agueda Roberto, artesã Kinikinau, durante entrevista a Canazilles (2012), expressou a necessidade
de fazer uma peça sem ornamentação, pois se destinava a finalidade utilitária. Artefatos cerâmicos sem
ornamentação ainda são utilizados nas aldeias para guardar alimentos e água. Este fato é corroborado
por Graziato (2008) ao afirmar que “todas essas peças, sem nenhuma ornamentação característica em
sua superfície, levam a crer que a prática da inserção de padrões e técnicas ornamentais está, hoje em
dia, reservada e dirigida à cerâmica produzida para ser comercializada” (Graziato, 2008: 13).
Lecznieski (2010: 77) também ratificou esse julgamento ao afirmar que os Kadiwéu produzem a
cerâmica especificamente para enfeitar as casas dos “brancos” e, raramente, as suas próprias casas.
Segundo ela, “Poucas vezes vi as cerâmicas enfeitando suas próprias casas. Em geral as ceramistas
reservam um aposento específico para armazenar as peças prontas e as matérias‑primas
utilizadas
na sua produção, bem como trabalhar nos dias de chuva. Noutros dias, a cerâmica é feita no pátio das
casas [...]”.
Cada vez mais os povos indígenas, em contato crescente com as cidades, se integram ao modo de
produção capitalista, mantendo relacionamento direto com o mercado e participando ativamente do
sistema econômico. Logo se tornam negociantes e transmitem seu aprendizado para as próximas gerações.
De acordo com Graziato (2008: 8), “A produção de cerâmica indígena brasileira está associada à
esfera familiar e é praticada na maioria das etnias pelas mulheres, exceto em poucos casos, como os
Waharibo‑Yanomami
e os Yekuana ou Mayongong”.
Agueda Roberto, presidente da Associação Indígena dos Ceramistas Kinikinau, relatou, durante
entrevista, que em Bonito ‑
a aproximadamente duas horas da aldeia São João, em Porto Murtinho
‑
comercializa seus artefatos sempre em companhia dos netos, inclusive os meninos. Eles as acompanham
nas viagens e também produzem peças cerâmicas.
Esse fato evidencia a inserção de homens da etnia Kinikinau tanto na produção quanto na comer-cialização
do artesanato, gerando “novas tradições” em práticas que, no passado, eram exclusivamente
femininas.
Segundo registro de Graziato (2008: 18), “algumas mulheres viajam sozinhas, geralmente em companhia
de filhas menores, para cidades vizinhas, tais como Miranda ou Aquidauana, permanecendo afastadas
da aldeia por muitos dias, a fim de comercializar suas peças, alegando que conseguem melhores preços
para a produção. O cuidado de carregar as filhas menores em suas andanças, ao comercializar cerâmica,
é um hábito que garante o aprendizado das negociações e vem ao encontro do costume de transmitir os
ensinamentos por meio da observação e da oralidade”.
Alguns artesãos de diversas etnias se transferem para as cidades com o intuito de sobreviver somente
da comercialização de artesanato. A adaptação é difícil e muitas dificuldades precisam ser superadas.
Ambrósio Góis, índio Kinikinau, ressaltou essas dificuldades, mas também a importância do artesanato
como meio de sobrevivência. Em entrevista concedida a Carlito (2002), disse: “Estou aqui enfrentando
grandes problemas. Foi um grande desafio conhecer a sociedade branca e o modo de vivência. Depois,
colocar os filhos no colégio, que já foi uma melhoria. Aqui eu trabalho só com artesanato, meu meio de
sobrevivência. Aqui vem turista comprar, todo mundo me conhece como artesão indígena” (Góis apud
Carlito, 2002).
Élida Fátima Júlio Antônio, conhecida como Élida Terena, é outra artesã indígena que se transferiu
para a cidade, mais precisamente para Campo Grande, capital de Mato Grosso do Sul. Ela encontrou
no artesanato uma alternativa de elevação da renda familiar. Moradora do bairro Jardim Noroeste,
fundou e faz funcionar no local uma associação de mulheres produtoras de cerâmica Terena.
Acentue‑se
que a criação de associações e cooperativas é outra iniciativa que vem se disseminando
entre os artesãos indígenas, por força das características do mercado capitalista.
Conforme Gomes (2008: 12), “As atividades femininas consideradas tradicionais, tal como a tecelagem
e a fabricação de cerâmica, foram intensificadas por mulheres que não estavam inseridas no mercado
de trabalho formal, objetivando vender as peças nas cidades para turistas e comerciantes. Nesse
contexto, vale ressaltar a emergência de organizações de mulheres indígenas, tais como, associações e
cooperativas, com vistas à produção de artefatos e também para discussão de temas afins aos problemas
e realidades que vivenciam”.
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1176 Comercialização do artesanato Kinikinau na cidade ecoturística de Bonito, Mato Grosso do Sul, Brasil
A criação dessas associações demonstra, também, a preocupação das artesãs com a qualidade da
cerâmica. Segundo Graziato (2008: 18), “Durante a última etapa do trabalho de campo, em 2005,
verificou‑se
que algumas artesãs tentavam criar uma associação de ceramistas, com o objetivo de facilitar
o escoamento da produção e melhorar a qualidade da queima ‑
que apresenta algumas limitações,
resultando em peças muito frágeis e, consequentemente, ocasionando perdas devido às quebras durante
o transporte para a cidade”.
Essa preocupação com o escoamento da produção e com a qualidade da cerâmica evidencia o impor-tante
papel dessas associações para a consolidação do artesanato indígena no mercado produzido pelo
turismo. Elas representam uma maneira encontrada pelos artesãos de unir forças criando condições
mais favoráveis à produção e à comercialização de seus artefatos.
3. Postos de comercialização de artesanato indígena em Mato Grosso do Sul
Na cidade de Bonito há um número significativo de postos de comercialização de diferentes tipos de
artesanato regional. Podemos citar o “Empório Olinda”, “Tuiuiú Artesanato”, “Onça Pintada”, “Casa
do Turista”, “Curicaca”, “Além da Arte”, dentre outros.
Por ser uma afamada cidade ecoturística, estes artefatos são muito valorizados pelos turistas
nacionais e internacionais. Em face de outras modalidades comercializadas, o artesanato indígena se
encontra em situação precária, mas ainda resiste. Tal situação está associada, entre outros motivos, à
indisponibilidade de matéria‑prima
de boa qualidade. Conforme Ribeiro (1980: 255‑305),
se referindo aos
Kadiwéu, “Na região onde passaram a viver, no sudoeste de Mato Grosso do Sul, muitos dos produtos
naturais usados como matérias primas de seus utensílios e de suas pinturas não vicejavam. Tornaram‑se
indisponíveis, portanto. Alternativas de substituição foram improvisadas, nem sempre com os melhores
resultados”Entre as peças artesanais indígenas comercializadas nos bazares de Bonito estão as das
etnias Kadiwéu, Terena e Kinikinau. Predominam quantitativamente os artefatos Kadiwéu e Terena.
A comercialização do artesanato Kinikinau, realizada exclusivamente na cidade de Bonito, está restrita
a apenas dois postos comerciais da cidade, ambos privados. São eles “Berô Can ‑
Artesanato Local e
Artes Indígenas” e o antigo estabelecimento designado “Piraputanga”, conhecido hoje como “Artesanatos
Tamanduá e Camisetaria”. Os dois postos se localizam um ao lado do outro.
Um estabelecimento que também comercializava a cerâmica Kinikinau era o “Empório Olinda”.
Segundo o proprietário, Marcelo Leão de Souza, deixou de adquirir os respectivos artefatos pela sua
fragilidade e pela demora das artesãs indígenas em repô‑los.
Afirmou que prefere comprar artigos de
fornecedores que asseguram frequência e regularidade na distribuição para não prejudicar o ‘perfil da loja’.
O proprietário também manifestou desinteresse pela compra do artesanato indígena em geral. A
cerâmica Terena, uma das mais comercializadas em seu estabelecimento justamente por seu caráter
utilitário, vem sofrendo transformação formal lesiva à sua função original. Cada vez mais surgem
peças zoomorfas e antropomorfas. Além disso, a cerâmica Terena vem revelando, segundo ele, queda
na qualidade. Marcelo Leão de Souza afirmou: “Hoje, quando colocamos água na moringa, ela escorre
por baixo” (Canazilles, 2012).
Em outros postos de comercialização, predomina em quantidade a cerâmica da etnia Kadiwéu.
São os casos dos estabelecimentos denominados “Além da Arte artesanato e decoração” e “Porã Catu”.
Demonstrando desinteresse pela cerâmica Terena, a proprietária do bazar “Porã Catu”, Ione Rodrigues
Pache, afirma preferir a cerâmica Kadiwéu por ser mais popular e vender melhor.
A maioria das lojas de artesanato em Bonito expõe peças indígenas dessas duas etnias. Entre os
poucos lojistas que não as comercializam, alguns afirmam que o mercado da cidade está saturado desses
artefatos. O depoimento de Maria Jerônimo da Silva, vendedora do estabelecimento denominado “Mãos
do Mato Artesanal”, reforça esse fato e vai além: “Se vendermos artesanato indígena como todas as
outras lojas, não teremos um diferencial” (Canazilles, 2012).
Boggiani (2012) revelou preocupação ao constatar a profusão de artesanato asiático nos estabelecimentos
comerciais de Bonito. De acordo com o autor, a atual implementação do Geopark Bodoquena‑Pantanal
deveria proporcionar ao visitante o contato com o “espírito do lugar”. O artesanato indígena, manifestação
cultural da região pode fortalecer essa proposta ligada ao turismo cultural, porém os estímulos quanto
à sua comercialização são mínimos. Para Ribeiro et al. (2014: 410), “O turismo cultural é motivado
por esta busca de conhecimento, de interação com outras pessoas que possuem costumes, tradições e
hábitos diversos dos encontrados na localidade de origem”.
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Em relação aos artefatos indígenas, os preços praticados tomam como referência os valores de compra
das peças com o acréscimo de 50% a 70% em todos os postos comerciais. A maioria dos produtos não
fica em consignação.
Não existe em Bonito um centro de comercialização de artefatos indígenas promovido ou incentivado
por órgãos governamentais. Campo Grande, capital do estado, possui o “Memorial da Cultura Indígena”,
subordinado à Prefeitura Municipal, onde é comercializado, predominantemente, o artesanato de três
etnias: Kadiwéu, Terena e Guarani. É um local de referência do artesanato indígena de Mato Grosso do
Sul. Localizado na Aldeia Urbana Marçal de Souza, é um ponto turístico da capital. Neste posto, quem
determina o preço do artesanato é o próprio artesão indígena, ciente de que serão descontados 10% do
valor de suas peças para o fundo de manutenção do Memorial. Esse estabelecimento oferece oficinas
de artesanato aos moradores da Aldeia Urbana, onde a maioria é da etnia Terena.
A cidade de Campo Grande dispõe, também, da “Casa do Artesão”, ponto turístico onde é comer-cializado
o artesanato regional. No que se refere ao artesanato indígena, predominam artefatos das
etnias Kadiwéu e Terena. Localizada no centro da cidade, é intensamente visitada pela população da
capital e por turistas. Subordina‑se
à Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul – FCMS. Conforme
a Gerência de Desenvolvimento de Atividades Artesanais da FCMS, são as próprias mulheres indígenas
que levam seus produtos cerâmicos para negociação, permitindo que fiquem em consignação. Ao valor
de cada peça são acrescidos mais 30%, para despesas de manutenção da casa, compra de embalagens,
plástico‑bolha,
água, papel higiênico e uso de máquinas de cartão de crédito (3,5% de juros no débito
e 9% de juros no crédito).
Todos os anos a “Casa do Artesão” promove uma mostra de artesanato indígena, evento que celebra
o dia do Índio, envolvendo uma parceria entre a FCMS e a Fundação Nacional do Índio – Funai.
Importante frisar que, em 2011, o artesanato Kinikinau foi citado no material de divulgação da mostra
como parte do acervo da exposição, realizada entre os dias 21 de abril e 18 de maio. Porém, durante
o evento, as únicas peças expostas eram das etnias Kadiwéu e Terena. De acordo com a Gerência de
Desenvolvimento de Atividades Artesanais da FCMS, os índios Kinikinau deveriam ter levado seus
produtos para o evento sem dispor de qualquer incentivo para tal. É quase certo que o grupo nem sequer
tomou conhecimento da mostra porque vive em uma aldeia isolada da área urbana, de difícil acesso e
com deficiência na transmissão de sinal de comunicação.
Existem, ainda, dois centros de comercialização do artesanato indígena em Mato Grosso do Sul. Em
Miranda foi implantado o “Centro Referencial da Cultura Terena”, subordinado à Prefeitura Municipal,
onde são comercializados apenas artefatos dessa etnia, e, na cidade de Bodoquena, o “Memorial Serra
da Bodoquena”, também subordinado à Prefeitura Municipal, destinado à comercialização do artesanato
Kadiwéu. Nada mais.
4. A comercialização do artesanato Kinikinau na cidade ecoturística de Bonito‑MS
Uma alternativa que tem significativa importância na economia familiar indígena é a produção e a
venda de artesanato pelas mulheres. Conforme o que foi exposto, as etnias que se destacam em Mato
Grosso do Sul pela produção e comercialização de artesanato, em especial da cerâmica, são a Kadiwéu
e a Terena. A representatividade dos Kinikinau se restringe à cidade de Bonito.
O significado de fortalecimento étnico que o artesanato Kinikinau vem assumindo, na atualidade,
estimula o conhecimento dos aspectos que envolvem a sua comercialização. É preciso analisar a sua
veiculação pelo mercado, de maneira que possam ser verificadas as dificuldades que se interpõem.
Os obstáculos registrados no escoamento da cerâmica Kinikinau são diversos. Contam‑se,
entre eles,
desde a localização geográfica da aldeia, o número limitado de artesãos, a pequena produtividade, as
esporádicas e inexperientes negociações com os comerciantes, os baixos preços praticados durante essas
negociações, a fragilidade do artesanato e a falta de apoio de políticas públicas.
Como já visto, o artesanato Kinikinau é comercializado apenas em dois estabelecimentos da cidade
ecoturística de Bonito. Isso está associado à pequena escala da produção, à fragilidade do artesanato e
às negociações com os comerciantes. Na sua versão contemporânea, a cerâmica Kinikinau começou a ser
produzida por um pequeno grupo de artesãos no ano de 2004. No restrito período de aproximadamente
dez anos, a produção, além de incipiente, tem se revelado reduzida.
São poucos os artesãos que atualmente confeccionam o artesanto Kinikinau na aldeia São João.
Dentre eles, segundo entrevista de Canazilles (2012) com uma artesã da etnia, Genoveva Roberto
PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural. 13 (5). 2015 ISSN 1695-7121
1178 Comercialização do artesanato Kinikinau na cidade ecoturística de Bonito, Mato Grosso do Sul, Brasil
Pluris, podem ser citados Agueda Roberto, Anízia Roberto, Cleuza, Ana Lucia, Rafaela, Maria Helena,
José Hugo Albuquerque, Jean Albuquerque Roberto e Marcimiano Roberto.
De acordo com Agueda Roberto, a maior parte da cerâmica Kinikinau é comercializada por ela. Em
entrevista a Canazilles, realizada no dia 5 de maio de 2012, ela afirmou textualmente: “Eu vendo peças
minhas e de algumas artesãs. Elas produzem e deixam aqui em casa porque as pessoas que querem
comprar cerâmica Kinikinau na aldeia me procuram mais. Levo, também, as peças para Bonito para
vender nas lojas e nos dias em que a cidade está fazendo o ‘Festival de Inverno de Bonito’ e o ‘Festival
da Guavira’”. Por ser Presidente da Associação Indígena dos Ceramistas Kinikinau possui uma forte
liderança entre os artesãos da etnia, e, nessa condição, concentra a sobrecarga de esforços relacionados
à comercialização. Além disso, Agueda é uma das maiores incentivadoras do artesanato e estimula os
outros artesãos a persistirem na produção.
A localização geográfica da aldeia é um fator que dificulta o escoamento do artesanato Kinikinau. A
aldeia São João fica localizada dentro da Reserva Indígena Kadiwéu, no município de Porto Murtinho,
a 70 Km de distância da cidade de Bonito, principal polo comercial do artesanato no Estado. O tempo
estimado da cidade de Bonito à aldeia é de aproximadamente duas horas.
A aldeia é de difícil e demorado acesso, principalmente durante os dias de chuva. Encontra‑se
cercada
por muitas fazendas e é cortada pelo rio Aquidabã. Quando ele cruza a estrada, não possui ponte de
ligação, sendo necessário fazer a travessia com o veículo por dentro do rio. A topografia da região é
bastante irregular e composta por declives acentuados.
Muitos utilizam a motocicleta como condução. Porém, esse meio de transporte inviabiliza o carrega-mento
de diversas mercadorias, inclusive do artesanato. Conforme entrevista com Agueda Roberto, o
escoamento da cerâmica para a cidade de Bonito é feito por meio de ônibus. O veículo sai de Bonito com
destino à aldeia São João, em Porto Murtinho, e vice‑versa,
no início de cada mês. Isso possibilita aos
moradores da aldeia se dirigir para a cidade de Bonito com o intuito, segundo depoimento dos próprios
moradores, de fazer as compras do mês.
Os baixos preços praticados durante as negociações também dificultam o escoamento do artesanato
Kinikinau e desestimulam alguns artesãos. A própria proposta de fortalecimento étnico, que prega como
um dos recursos a visibilidade assegurada pelo artesanato, contraditoriamente favorece as artimanhas
dos comerciantes.
As negociações com os proprietários de lojas são difíceis. Entrevista realizada por Graziato (2008: 96‑97)
com Martina de Almeida, índia Kadiwéu, demonstra certa indignação com essas negociações. “Martina
‑
Tem lugares que trocam bem e existem lugares que não. Tem pessoas que querem, as próprias pessoas
que compram, querem colocar o preço nas peças nossas e isso eu não acho justo. A gente leva aqueles
vasos grandes e eles querem pagar quinze reais. Graziato ‑
Que tamanho têm esses vasos grandes?
Martina ‑
São grandes assim: (faz um gesto com a mão a aproximadamente 1m do chão). Graziato
‑
Ah! São aqueles bem grandes. Martina ‑
Então, tem pessoas que querem comprar por quinze reais.
Só que essas pessoas não sabem quanto custou fazer aquele pote. Ela não sabe quanto eu andei para
pegar o barro, para queimar, quanto gastei em lenha, quanto tempo eu levei para acabar. Graziato ‑
As
pessoas não dão muito valor, não é? Martina ‑
As pessoas precisavam aprender a fazer para dar valor”.
Entrevista com Élida Fátima Júlio Antônio, coordenadora do Núcleo de Produção de Cerâmica Terena,
também evidencia essa pressão para aviltar os preços praticados durante as negociações. Segundo ela:
“A gente vai, vende e falam: ‑
não isso aqui tá caro! Mas não sabe o tanto sacrifício que a gente faz pra
fazer um vaso desse tamanho. Tanta argila que leva, tanta mistura que tem e tanta mão‑de‑obra
que
dá pra fazer uma peça grande” (Antônio apud Lanari, 2011).
Edson Sebastião da Silva, dono do estabelecimento denominado “Artesanatos Tamanduá e Cami-setaria”,
localizado na cidade de Bonito, em entrevista (Canazilles, 2012), externou indignação com
algumas artesãs indígenas que tentam negociar seus artefatos pelos mesmos valores vendidos nos
estabelecimentos comerciais. Isto é, por não concordar com os acréscimos de 50% a 70%, pretendidos
pelas artesãs, nega‑se
a adquirir muitos artefatos.
Com base no exposto pode‑se
afirmar que existe uma tensão sensível nas relações entre o artesão
indígena e o comerciante quando se trata de discutir o valor das peças artesanais. Isso prejudica seu
escoamento. Karl Marx (1998: 23‑25)
é esclarecedor ao falar sobre a substância do valor. “A primeira
pergunta que temos de fazer é esta: Que é o valor de uma mercadoria? Como se determina este valor?
Como os valores de troca das mercadorias não passam de funções sociais delas, e nada têm a ver com
suas propriedades naturais, devemos antes de mais nada perguntar: Qual é a substância social comum
a todas as mercadorias? É o trabalho [...]. Portanto, os valores relativos das mercadorias se determinam
pelas correspondentes quantidades ou somas de trabalho invertidas, realizadas, plasmadas nelas”.
PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural. 13 (5). 2015 ISSN 1695-7121
Karolinne Sotomayor Azambuja Canazilles, Gilberto Luiz Alves, Rosemary Matias 1179
Martina de Almeida e Elida Terena definiram bem, em suas falas, o que Karl Marx queria dizer
ao reconhecer a importância do tempo de trabalho empregado para se determinar o valor de uma
mercadoria. O fato é que os artefatos indígenas sofreram profunda transformação cultural ao perderem
seus valores de uso originais para se tornarem, nos dias atuais, valores de troca. Mercadorias frágeis e
precárias, reduzidas a objetos de adorno. Todos os pretextos são utilizados pelos comerciantes para que,
no mercado, o valor da força de trabalho seja remetido para baixo visando ao aumento de seus lucros.
Quanto à resistência da cerâmica Kinikinau, o material apresenta fragilidade. Segundo Canazilles
(2013), para a confecção das peças artesanais são empregadas argila e água. A argila em sua composição
possui substâncias argilosas, silte, areias médias e finas. Análises granulométricas comprovam que a
proporção desses componentes está desequilibrada, assim como, a quantidade de água, além disso, o
tempo empregado na sova ou amaciamento da argila é insuficiente para obter um material de qualidade.
Para Godoy (2001), um fator determinante da pouca resistência das peças é a temperatura de queima,
que deveria atingir entre 800ºC e 1.100ºC. Milheira et al. (2013) afirma que as fogueiras a céu aberto na
mata ascendem a menos de 750ºC, porque normalmente o material cerâmico resultante da pós‑queima
apresenta um predomínio de pasta com coloração heterogênea, com parte da superfície mais escura,
aproximando‑se
em alguns casos, à coloração preta.
Há necessidade urgente de se implementar um programa de qualidade como uma forma de valorizar
a cerâmica e a etnia Kinikinau em Mato Grosso do Sul, uma vez que o artesanato pode proporcionar a
valorização cultural e a melhoria do bem estar social nesses grupos, além da geração de renda. Para a
presidente da Associação de Ceramistas e para Anízia Roberto, artesãs Kinikinau, não existem obstáculos
quanto à vontade de inovar. Há falta de recursos. Os artesãos estão receptivos à criação de núcleos de
produção, à utilização de fornos industriais, à implementação de treinamentos que possibilitem calcular
os preços de seus produtos e ao conhecimento de técnicas importantes de negociações e vendas, dentre
outras iniciativas.
5. Conclusão
A cerâmica Kinikinau dá continuidade a uma antiga tradição cultural Guaná, porém as ornamen-tações
produzidas na atualidade não remetem às expressões das práticas culturais dos antepassados
Kinikinau. São uma “reinvenção” das mulheres e homens dessa etnia devido à “vontade de diferença”.
Importante salientar que, em conjunto com essas ornamentações inéditas, foram também criadas
“novas tradições” na produção do artesanato, a exemplo da inserção de homens na confecção, inclusive
da própria cerâmica, e na comercialização dos artefatos Kinikinau.
A transformação do artesanato indígena em Mato Grosso do Sul tem sido sistemática, por força do
mercado produzido pelo turismo. Dele advém o estímulo às inovações formais nos artefatos. Além disso,
muitos indígenas se transferem para as cidades com o intuito de sobreviver somente da comercialização
do artesanato, integrando‑se
mais profundamente à dinâmica da sociedade capitalista. Por outro lado,
a criação de associações e cooperativas entre os artesãos representa um recurso para unir suas forças
e criar condições mais favoráveis ao escoamento de sua produção.
A comercialização do artesanato Kinikinau está restrita a apenas dois postos comerciais da cidade
ecoturística de Bonito, Mato Grosso do Sul, e ambos são privados. São eles “Berô Can ‑
Artesanato
Local e Artes Indígenas” e “Artesanatos Tamanduá e Camisetaria”. Como já citado anteriormente, os
obstáculos ao escoamento da cerâmica Kinikinau para o mercado são a localização geográfica da aldeia,
o número limitado de artesãos, a pequena produtividade, as esporádicas e inexperientes negociações
com os comerciantes, os baixos preços praticados durante essas negociações, a fragilidade dos artefatos
e a ausência de apoio de políticas públicas voltadas para o artesanato indígena no Estado. Todos esses
fatores reunidos contribuem para a escassa visibilidade de parte do patrimônio cultural da etnia fora
de Bonito.
O número limitado de artesãos Kinikinau gera uma produção em pequena escala e a concentração
de esforços, relacionados à comercialização, em apenas uma artesã. As esporádicas e inexperientes
negociações com os comerciantes geram lentidão na solidificação desse artesanato no mercado do turismo
e, consequentemente, proporcionam uma demora no reconhecimento do grupo, por meio do artesanato,
no cenário étnico sul‑mato‑grossense.
A Aldeia São João fica a 70 km de distância da cidade de Bonito. Porém seu trajeto, por meio de
veículo automotor, dura em torno de duas horas. O acesso é dificultado por força da topografia, cheia de
deformidades e declividades acentuadas. O deslocamento para a cidade é realizado pela própria artesã
PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural. 13 (5). 2015 ISSN 1695-7121
1180 Comercialização do artesanato Kinikinau na cidade ecoturística de Bonito, Mato Grosso do Sul, Brasil
indígena, através de transporte coletivo. Não há, para tal, qualquer incentivo. O transporte coletivo
que atende a aldeia restringe‑se
a duas viagens no início de cada mês.
A necessidade de reposição constante dos estoques das mercadorias é outro quesito do mercado. A
demora das artesãs indígenas em repor suas peças prejudica o perfil do estabelecimento comercial, segundo
o lojista, pois o sujeita ao imprevisível. Isso tem levado algumas lojas a optar por outras mercadorias
cujo abastecimento seja garantido, assegurando frequência contínua na distribuição.
As exigências do mercado requerem bom padrão de qualidade. A fragilidade da cerâmica Kinikinau
desestimula sua aquisição por parte de alguns comerciantes. O transporte da aldeia para as cidades
pode ocasionar quebras, acarretando prejuízo aos artesãos. Essa fragilidade e precariedade do artefato
indígena remete seu preço para baixo, desestimulando muitos artesãos.
Ao registrar as limitações que pesam contra a comercialização de peças artesanais indígenas, não há
como deixar de reconhecer que todas elas aguçam a tensão que marca a relação entre os artesãos e os
comerciantes. Todas elas pesam em desfavor dos artesãos, já limitados pelas adversidades das condições
pregressas de reprodução da vida material. Assim, o artesanato indígena se inviabiliza enquanto
instrumento que poderia representar nova alternativa de superação das condições de existência das
famílias indígenas em direção a um patamar superior de qualidade de vida.
Projetos de inovação tecnológica e de desenvolvimento do artesanato Kinikinau, que elevem o padrão
de qualidade e viabilizem a expansão de seu mercado, são necessários e estarão contribuindo, de fato,
para o fortalecimento da etnia, valorizando seus elementos culturais, solidificando sua representatividade
no estado e, consequentemente, elevando sua qualidade de vida.
Aos artesãos são igualmente necessários incentivos e treinamentos voltados para o domínio de técnicas
de atendimento aos lojistas, de incremento das vendas e de cálculo dos preços das peças artesanais.
Enfim, os Kinikinau foram considerados “extintos” por quase um século e, durante todo esse tempo
de invisibilidade, foram obrigados a se registrar como Terena, silenciando sua própria identidade. Na
atualidade, buscam reconhecimento oficial e lutam pela reconquista de seus territórios tradicionais. O
artesanato Kinikinau, principalmente a cerâmica, tornou‑se
uma ferramenta imprescindível para auxiliar
na busca pelo fortalecimento étnico, além de ser um importante patrimônio cultural do Estado. Também
por meio desse instrumento, aliado ao mercado do ecoturismo de Bonito, os Kinikinau começaram a
ganhar visibilidade no processo de reemergência do grupo no atual cenário étnico sul‑mato‑grossense.
Agradecimentos
À Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) pela bolsa de Mestrado, à
Funarte (Fundação Nacional de Artes) e ao Instituto Cultural Gilberto Luiz Alves pelo apoio financeiro.
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Notas
¹ Durante o Seminário “Povo Kinikinau: Persistindo a Resistência”, realizado na cidade de Bonito – MS, entre os dias 16 e
18 de junho de 2004, foi redigida a Carta de Bonito, que, baseada em documentação histórica, passou a designar a etnia
com o etnônimo Kinikinau.
² Obedecendo a Convenção assinada na 1ª Reunião Brasileira de Antropologia, reunida na cidade do Rio de Janeiro em
1953, os nomes tribais, usados como substantivos ou como adjetivos, não terão flexão de gênero e de número, a não ser
que sejam de origem portuguesa ou morficamente aportuguesados.
Recibido: 17/07/2014
Reenviado: 04/12/2014
Aceptado: 07/12/2014
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