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© PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural. ISSN 1695-7121 Vol. 13 N.o 1. Págs. 131-143. 2015 www .pasosonline.org Resumo: O presente artigo trata das representações dos índios Pataxó da aldeia de Coroa Vermelha, município de Santa Cruz Cabrália, no estado da Bahia/Brasil a respeito do trabalho e de suas atividades econômicas. Apresenta reflexão a respeito dos entendimentos nativos dessas atividades, terminando por referir‑se à compreensão construída pelos índios sobre o trabalho e sua relação com a tradição. O artigo é re-sultado da pesquisa de doutoramento, com trabalho de campo realizado entre 2008 e 2011, que versou sobre a apropriação do turismo pelos índios como atividade econômica principal e as transformações realizadas na forma de praticar a atividade turística, no processo que descrevo como de indianização do turismo. A etnogra-fia realizada pretende investigar as configurações da relação entre economia e tradição contextualizadas por uma visão interna, isto é, descrita nos termos apresentados pelos índios, da categoria tradição. Palavras-Chave: Índios, Pataxó, Coroa Vermelha, Atividades Econômicas, Representações. “The Indian does not like being captive”: Labor and Tradition in Pataxó Economic Activities in the Village of Coroa Vermelha Abstract: This paper deals with the representations of Pataxó Indians of the village of Coroa Vermelha, municipality of Santa Cruz Cabrália, in the state of Bahia / Brazil about work and their economic activi-ties. Presents reflections on the native understandings of these activities and concluding to refer to the understanding built by indians about the work and its relation with the tradition. The article is the result of doctoral research, with fieldwork conducted between 2008 and 2011, which expounded upon appropriation by the Indians of tourism as main economic activity and the changes made in the form of practicing tourism, wich in the process I describe as indianization of tourism. The ethnography aims to investigate the settings of the relationship between economics and tradition contextualized by an inner vision, that is, described in the terms presented by the indians, of the category tradition. Key Words: Indians, Pataxó, Coroa Vermelha, Economic Activities, Representations. “O Índio não gosta de ficar cativo”: Trabalho e Tradição nas Atividades Econômicas dos Pataxó da Aldeia de Coroa Vermelha Sandro Campos Neves* Universidade Federal de Juiz de Fora (Brasil) Sandro Campos Neves * Doutor em Antropologia PPGA/UFBA , Mestre em Cultura e Turismo UESC/UFBA, Bacharel em Turismo UFJF; E‑mail: sandrocamposneves@yahoo.com.br 1. Introdução No presente artigo apresento resultados da pesquisa de campo empreendida entre os Pataxó de Coroa Vermelha, no município de Santa Cruz Cabrália, estado da Bahia/Brasil a respeito do processo de apropriação indígena do turismo. A aldeia pataxó de Coroa Vermelha se localiza a aproximadamente 17 km do centro do município de Porto Seguro, do qual dista cerca de 8 km, e faz parte do município de Santa Cruz Cabrália. Até então considerada apenas um bairro de Santa Cruz Cabrália, a região foi reconhecida e demarcada como Terra Indígena em 1996. A partir dessa data, a Terra Indígena Coroa Vermelha passou a se constituir de uma área de 1.420 hectares às margens da BR 367, na praia de PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural. 13 (1). 2015 ISSN 1695-7121 132 “O Índio não gosta de ficar cativo” Coroa Vermelha, denominada Gleba B, e uma área de 72 hectares, distante cerca de 7 km da praia de Coroa Vermelha em direção à Mata. (SAMPAIO, 1996) Este trabalho refere‑se principalmente à gleba A da demarcação da T.I. Coroa Vermelha, isto é, a região de praia cortada pela BR 367. Optei por, esquematicamente, dividir as áreas da TI Coroa Vermelha em três partes para facilitar o entendimento a respeito da divisão entre região turística e região não turística. Assim, compreenderei a TI Coroa Vermelha como estando dividida entre a região da Praia, composta basicamente pelo chamado Parque Indígena (Praia, Cruz do Descobrimento, Estacionamento e Centro de Artesanato); a região de mata, composta basicamente pela Gleba B da demarcação ou Reserva da Jaqueira; e as casas residenciais, dispostas ao longo do bairro do Karajá e em grande parte da Avenida beira‑mar. Essas regiões podem ser analisadas a partir de uma escala de turistização que, embora não seja estanque, varia de uma região extremamente turistificada até uma região tida como interdita ao turismo. A região que estou chamando de praia, e que corresponde ao chamado Parque Indígena, é a região altamente turistificada e, embora existam ali residências, é principalmente ocupada por lojas de arte-sanato e outras edificações consideradas fundamentalmente turísticas. A região que estou designando Mata corresponde à gleba B da demarcação da TI, bem como os caminhos que lhe dão acesso através da aldeia de Coroa Vermelha. Essa área é medianamente turistificada, pois, embora tenha como vocação essencial a visitação turística, recebe um fluxo controlado em relação a horários, tempo de permanência e número de visitantes, diferentemente da área de praia que recebe um fluxo desordenado e fortemente influenciado por agentes externos à aldeia de Coroa Vermelha. Por fim, a área das casas, contigua à região “de praia” no sentido Porto Seguro‑Santa Cruz Cabrália, é considerada interdita aos turistas. Ainda que não haja nenhuma separação visível entre ela e a região de praia, os Pataxó consideram que a área das casas não é de interesse do fluxo turístico e buscam manter os turistas afastados, para preservação da vida privada e dos laços comunitários. Desde os anos 1970, em decorrência de melhorias significativas na malha rodoviária brasileira na porção costeira da região Nordeste, sobretudo a conclusão de trechos das rodovias BR 101 e 367, os índios da aldeia de Coroa Vermelha habituaram‑se a receber crescente afluência de turistas em seu território. Habitantes pré‑coloniais da região de interior contigua à costa atlântica do estado da Bahia, os Pataxó passaram por diversos processos de dominação interétnica que levaram à desestabilização de costumes e tradições locais e sua consequente reconfiguração à luz tanto da cosmologia indígena quanto das injunções do novo contexto social. Nesse processo os Pataxó reconfiguraram sua tradição, bem como o entendimento que se possui dela, num processo que incluiu a perda e tentativa de reconstituição de uma língua própria, a reconfiguração da produção artesanal local e de todo o conjunto de atividades econômicas por eles exercidas com finalidade de subsistência, bem como das representações que se faz destas na relação com a tradição. O objeto do presente trabalho incide, sobretudo, nas atividades econômicas de subsistência e as representações que os índios expressam sobre as mesmas em relação com a categoria tradição. Aborda processos de reconfiguração da tradição indígena e sua adaptação e estabilização cosmológica. Trata‑se, portanto, de um esforço no sentido de compreender a construção da ideia de tradição entre os Pataxó na medida mesma em que essa ideia liga‑se ao tipo de atividade econômica exercida, classificadas em uma hierarquia de atividades mais tradicionais e menos tradicionais, prefigurando uma hierarquia da indianidade Pataxó. Tal hierarquia divide tradições pretensamente imemoriais e tradições recentes, numa escala que parte da roça (agricultura) e pesca, consideradas tradições imemoriais, e culmina no artesanato, considerado recente em seu formato atual e vocação comercial ‑ em oposição a um artesanato imemorial de vocação para o uso doméstico e outras características ‑ e no comércio, normalmente remetido às décadas de 1960 e 1970. Todo o empreendimento de análise está fortemente ligado à questão da atividade turística. Em última instância o turismo acaba por ser, na região, o responsável por fluxos humanos que precipitam modificações que já vinham se dando por outros meios, mas que encontram na atividade turística resposta econômica fundamental. Assim, faz‑se mister desde já esclarecer o ponto de vista aqui adotado, segundo o qual o turismo não é o agente principal da mudança. As transformações na tradição aqui relatadas têm, antes, o turismo como pano de fundo. Tratam‑se de modificações entendidas pelos próprios índios como pertinentes à discussão conceitual do que seja tradição, isto é, do que são os objetos tradicionais. Assim, o turismo surge como resposta econômica capaz de propiciar uma releitura da tradição e através deste movimento ocorre uma revisão de todo o repertório daquilo que é chamado de tradicional, incluindo as atividades econômicas de subsistência. Neste artigo tratarei, então, das modificações nas representações sobre a tradição e as atividades econômicas, compreendendo‑as como ligadas aos fluxos econômicos da atividade econômica que se tornou mais relevante, o turismo. PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural. 13 (1). 2015 ISSN 1695-7121 Sandro Campos Neves 133 Durante o período de campo realizei levantamento em 31 Grupos Domésticos (GD´s) da aldeia de Coroa Vermelha com a finalidade de obter um mapeamento extenso sobre as atividades econômicas praticadas na aldeia. Adoto no presente trabalho uma definição de grupo doméstico que os considera como sendo compostos por uma família nuclear (CHAYANOV,1966; SAHLINS, 1978). Ainda assim, como demonstra Woortman (1967 p. 11), os grupos domésticos estão unidos por “redes de parentesco e compadrio, formas de reciprocidade, padrões de herança, casamento e residência” que complexificam sua conformação. Detalharei ao longo do texto a forma como esses conjuntos de relações afetam a composição dos GD´s Pataxó. De toda forma, dos 31 GD´s analisados a totalidade é composta por famílias nucleares, embora por vezes comportem diferentes conjuntos geracionais. Complementarmente, realizei levantamento em 28 das 300 lojas do centro de artesanato indígena na praia de Coroa Vermelha, com o intuito de compreender o funcionamento do artesanato naquela parte específica da aldeia. Essa separação entre os dois levantamentos, não obstante ambos abordem a questão do artesanato, deve‑se ao fato de que a forma como se organiza a produção e comercialização do artesanato tem características diversas se o foco incidir sobre as famílias organizadas por sistemas produtivos diversos, que são apenas produtoras de artesanato; as que são produtoras e possuem lojas; e as que possuem lojas e compram a maior parte da produção artesanal. Nesta seção tratarei dos resultados desses dois levantamentos utilizados como ferramentas complementares à observação participante realizada. Fato a ser destacado é que o número relativamente pequeno do universo amostral abordado no levantamento, mantido seu rigor estatístico (BUSSAB, 1987), se deveu à grande extensão do questionário apresentado, uma vez que busquei levantar dados sobre diversos aspectos da sociedade. Os dados estatísticos produzidos e apresentados estarão cotejados pela observação participante, através da qual foi possível observar um número maior de GD´s, mas com menor possibilidade de quantificação do resultado. Ao longo dos esforços envidados para a produção de dados sobre as atividades econômicas foi sempre comum ouvir dos índios, em resposta à questão sobre quais tipos de atividades econômicas exerciam e as razões da escolha de atividade, a frase “O Índio não gosta de ficar cativo”. Ela fazia alusão à preferência massiva dos Pataxó por empregos autônomos, com baixo grau de formalização e alto grau de liberdade e flexibilidade nas escolhas dos horários de trabalho e do próprio ritmo de produção. Essa frase, no entanto, parece esconder outros significados importantes, como, por exemplo, que a desvalorização do trabalho como empregado de outrem tem relação com um histórico pessoal de exploração. Sempre que ouvida, ela me pareceu servir como uma justificativa prévia, daquele tipo que é construída depois de muito ter que responder à mesma questão, quanto ao modo de vida indígena na região. A valorização da liberdade, a escolha do melhor horário, do melhor dia e até da melhor época do ano para dedicar‑se às atividades produtivas é uma forma de os Pataxó reagirem aos freqüentes questionamentos a eles direcionados, pela sociedade regional, juntamente com as categorias acusatórias usualmente dirigidas a povos indígenas, tais como indolentes e preguiçosos, entre outras. Essa situação, tal como procurarei demonstrar, reflete a construção de um modo de vida em que outras relações e atividades são sobrevalorizadas em relação à ética do trabalho que supostamente vige na sociedade “dos brancos”, e cuja finalidade clara é prover sustento e não, contrariamente, constituir o sustentáculo ideológico de um modo de vida. Embora seja relevante salientar que as atividades econômicas, o conhecimento tido como tradicional nelas empregado e sua transmissão sejam importantes sustentáculos ideológicos da sociedade, em sua definição de tradição, o que pretendi afirmar anteriormente foi que a ética do trabalho em si não é valorizada. O trabalho só tem sentido para os Pataxó como meio, por um lado de sobrevivência e, por outro, de transmissão e elaboração da tradição, isto é, o trabalho nunca é justificado por si só como edificante, como a ideologia das sociedades ocidentais faz supor que nelas seja. Deste modo, exercer certo trabalho é menos importante do que o modo como ele é exercido. A forma de exercer determinada atividade, consoante a prática tida por tradicional, é que é decisiva para o valor que se atribui ao trabalho. Ademais, a valorização de uma rotina flexível de trabalho pode ser considerada característica de populações organizadas por regimes de produção baseados em ciclos naturais como demonstra Woortman (1967) a respeito tanto de índios quanto de camponeses no Brasil. 2. A pesca Os GD´s dedicados à pesca exercem essa atividade como exclusiva ou complementar à produção e comercialização de artesanato. São poucos aqueles que praticam a pesca em conjunto com a roça, dada a dificuldade de conciliar o tempo necessário à execução dos dois tipos de atividade econômica. PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural. 13 (1). 2015 ISSN 1695-7121 134 “O Índio não gosta de ficar cativo” A pesca exige longos períodos de afastamento da residência por parte de um ou vários membros do GD, dificultando o plantio e cultivo sistemático de roças, salvo o eventual cultivo de algumas árvores frutíferas, tal como encontrei no único caso dos 7 (sete) GD´s predominantemente dedicados à pesca que participaram do levantamento. Destes mesmos 7 (sete) GD´s, 4 (quatro) exerciam complementarmente a atividade artesanal. Nesses casos, os componentes que não participam das atividades de pesca, as mulheres e as crianças até os 12 anos, é que são os responsáveis pela atividade artesanal. Deste modo, a pesca exerce nestes GD`s um papel de complementaridade com a atividade turística. Em alguns o resultado econômico predominante advém da pesca e em outros do turismo, mas as atividades são co‑dependentes em relação aos períodos de dedicação e aos membros da família empregados. Entre os GD´s dedicados à pesca há 4 (quatro) modalidades diferentes da atividade. São elas: a pesca com embarcações em alto‑mar, utilizando redes de arrasto1; a pesca artesanal realizada na maré baixa com latas de ferro e tochas2; a pesca com redes de armação, praticada em maré seca3; e a pesca em alto mar com mergulho, utilizando ou não equipamentos de respiração artificial4. Para além dessas modalidades de pesca, pratica‑se ainda em Coroa Vermelha a coleta de frutos do mar, na maré baixa. Em relação ao primeiro tipo, a pesca com embarcações em alto‑mar, há dois tipos de praticantes que se diferenciam em função da propriedade ou não da embarcação. Dos 7 (sete) GD´s pesquisados, apenas dois possuem embarcações. Essa situação pode ser proporcionalmente representativa do conjunto da aldeia, pois o número de pataxós proprietários de embarcações é, de fato, muito pequeno em toda a aldeia. Para os que possuem embarcação, a pesca em alto‑mar é, está claro, muito mais produtiva, uma vez que não há necessidade de divisão proporcional dos resultados da pesca. Para aqueles que não possuem embarcações, a pesca é realizada em barco alheio, havendo a divisão proporcional dos resultados da pesca: o proprietário do barco retém um mínimo de 50% do lucro líquido, retirados gastos com combustível e outros gastos operacionais, do que é pescado. Essa modalidade de pesca de alto‑mar é realizada, geralmente, com um número mínimo de 5 (cinco) tripulantes por embarcação, o que, a depender do arranjo realizado em cada situação, faz com que os 4 (quatro) tripulantes restantes tenham que dividir entre si 50% ou menos dos resultados obtidos. Essa condição reflete‑se nos números financeiros absolutos da atividade. Enquanto um proprietário de embarcação que pesca em família pode obter, de acordo com o levantamento, até R$ 3.000,00 (três mil reais) por saída ao mar, para os que não possuem embarcação esse valor pode girar em torno de R$ 250,00 (Duzentos e cinqüenta reais) a R$ 350,00 (Trezentos e cinqüenta reais) nas épocas de baixa e até R$ 500,00 (Quinhentos reais) nas épocas de boa pescaria. Nesses dois últimos casos, a pesca pode ser caracterizada como uma atividade de mera subsistência e adicionalmente precária. Por essa razão, inclusive, é que grande número daqueles que fazem pesca de alto‑mar sem possuir embarcação própria, praticam, quando não embarcados, outros tipos de pesca na maré baixa. Pescador antigo em Coroa Vermelha Sr Liberato relata sobre essa questão, “na pesca é assim, quando é época, tem fartura de comida na mesa, quando não é...passa fome.” Embora vista como prática tradicional e como saída econômica viável, dada a localização costeira da aldeia, a pesca é vista como alternativa das mais áridas para a sobrevivência local e costuma ser praticada pelas famílias em condição financeira mais precária. Ainda assim, a atividade é praticada e defendida com orgulhos pelos pescadores Pataxó, que vêem a si mesmo como mantenedores da tradição, inclusive por dispor‑se ao trabalho árduo e com precária tecnologia, tida como característica dos “tempos antigos”. Nesse sentido, há inclusive significativa valorização dessa categoria de trabalhadores entre todos os índios da aldeia. Não raramente são apontados como exemplos por outros índios, sempre tendo em conta a percepção de que preservar a pesca significa preservar a tradição. Além da questão da propriedade dos barcos, há, entre os proprietários, a prática complementar do comércio direto do pescado. Assim, os dois GD´s que participaram do levantamento e possuem embarcação própria são também donos de peixarias em Coroa Vermelha. Essas peixarias vendem, geralmente, para os próprios índios, mas eventualmente podem vender também para turistas e participar da atividade turística fornecendo pescado a proprietários de quiosques de praia e restaurantes da região. É através das peixarias que é possível, para os donos de embarcação, manterem, mesmo fora do período de pesca, um rendimento significativamente mais alto do que o daqueles que não possuem embarcação. No entanto, essa atividade, como quase todas as outras em Coroa Vermelha, tem variação relevante de acordo com a sazonalidade da atividade turística, justamente porque tanto a venda para os próprios índios em Coroa Vermelha, quanto para turistas e/ou provedores de serviços turísticos, depende do ritmo da “temporada” turística. A respeito do faturamento das peixarias, os proprietários asseguram conseguir um faturamento mínimo semanal em torno de R$ 500,00, mesmo nos períodos de baixa temporada turística e/ou fora da época de pesca. PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural. 13 (1). 2015 ISSN 1695-7121 Sandro Campos Neves 135 Os outros tipos de pesca são realizados comumente como atividades complementares à própria pesca de alto‑mar ou à atividade artesanal. Os dois tipos realizados em maré baixa são considerados os mais tradicionais. Em relação ao assunto, seo Liberato afirma que no tempo “dos índios antigos” não se pescava em embarcações e que a prática só se tornou mais comum depois que houve o deslocamento para Coroa Vermelha. Embora existam relatos de pescaria desde os tempos de Barra Velha5 (CARVALHO, 1977), com embarcações, as saídas para alto‑mar, consideradas mais produtivas, são atribuídas à vivência em Coroa Vermelha. A pesca de maré baixa é praticada sob duas formas principais entre os Pataxó em Coroa Vermelha. A primeira delas é mediante o uso de rede de armação: são armadas redes de pesca próprias para a atividade, na praia, durante a noite, quando a maré começa a subir. As redes são sustentadas geralmente por pedaços de madeira esticados em uma faixa de 1 (um) a 2 (dois) metros. Retorna‑se às redes no fim da madrugada ou nas primeiras horas. Segundo o levantamento realizado entre os pescadores o segundo tipo de pesca é realizada nas horas da madrugada imediatamente anteriores ao nascimento do sol, quando a maré está baixando, para recolher os peixes que permaneceram presos na rede. Aproveita‑se a maré em transição de alta para baixa da beira da praia para montar armadilhas, utilizando‑se latas de ferro e fogo abastecido a querosene como iluminação necessária à realização da pescaria de pequenos peixes. Os resultados são pouco significativos em termos econômicos, de modo que os pescadores não foram capazes de precisá‑los em quilos ou pecuniariamente, o que torna claro se tratar de pesca exclusivamente para subsistência. A pesca é uma atividade de expressão reduzida na aldeia de Coroa Vermelha tanto em relação ao número de GD´s que nela se envolvem de maneira mais sistemática, quanto em relação a seus resultados financeiros. Por essa razão é que considero apropriado analisá‑la como atividade praticada como complemento de outras, sobretudo pelos pescadores que não possuem embarcação. Embora aqueles diretamente envolvidos a tenham como atividade quase exclusiva, dada a dedicação de tempo requerida, sobretudo a de alto‑mar, os GD´s usualmente possuem ao menos uma outra atividade. Além disso, os pescadores eventualmente se engajam em outras atividades mais lucrativas, quando surgem oportunidades. Entre essas outras atividades, algumas destacadas entre os pescadores são a construção civil, trabalhos com turismo em Coroa Vermelha e outras ocupações propiciadas pela FUNAI6 e, ou, FUNASA7. No entanto, todos esses trabalhos são vistos como ocupações temporárias, aos quais se costuma recorrer por falta de melhor opção. José Carlos, um dos pescadores que participaram do levantamento, relata já ter trabalhado como motorista para a FUNAI e para a escola indígena. Ele afirma que, inclusive, ganhava mais dinheiro com essas funções, mas que prefere sempre trabalhar com a pesca ou com o artesanato por conta própria porque “não gosta de viver cativo”. Quando solicitei maiores explicações sobre o que seria viver cativo, disse que não gostava de ficar preso a horários ou receber ordens de terceiros sobre como fazer o seu trabalho. «Sei fazer meu serviço, não precisa ninguém ficar me dizendo o que tenho de fazer, por isso eu prefiro trabalhar sozinho, porque eu escolho a que horas tenho que fazer as coisas […] às vezes também, quando você trabalha nessas coisas de ter chefe, se precisar fazer alguma coisa para mulher ou se precisar viajar, ver os parentes, tem que ficar preso ao horário do chefe, fica na dependência do outro pra fazer suas coisas, não gosto de viver assim.» Conforme comentado inicialmente essa não foi a única vez que ouvi a expressão “índio não gosta de viver cativo”, enunciada por distintos sujeitos e em situações diversas. Trata‑se de uma expressão de uso local relativamente corrente, que traduz uma percepção a respeito de um modo de vida avaliado negativamente. Ser Pataxó em Coroa Vermelha significa reproduzir‑se (biológica e socialmente) dentro de um contexto de condições específicas para as quais, embora se viva em situação de constante pressão em relação à subsistência, o trabalho não constitui o núcleo do sentido da vida. Viajar para visitar os parentes em outras aldeias, viagens que podem requerer um ou mais dias, ou podem levar meses, cuidar dos familiares e mesmo se envolver em atividades do movimento indígena, como as retomadas8 (ASSIS, 2004), são compromissos que podem implicar a paralisação das atividades produtivas. A eles se confere importância maior do que à acumulação de bens ou mesmo às atividades de subsistência, em certos casos, uma vez que há sempre a expectativa de contar com a rede de solidariedade dos próprios parentes para suprir as demandas de subsistência quando há outras necessidades tidas por mais prementes. Parece ser justamente a alimentação dessa rede de solidariedade, representada pelas relações de parentesco, uma das mais fortes instâncias a sobrepujar em importância a atividade econômica cotidiana. PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural. 13 (1). 2015 ISSN 1695-7121 136 “O Índio não gosta de ficar cativo” As atividades de pesca, não estão entre as mais produtivas para os Pataxó de Coroa Vermelha. No entanto, gozam de um status extremamente importante no que diz respeito à sua relação com a tradição. Tanto para pescadores quanto para outros índios da aldeia de Coroa Vermelha a atividade guarda relação fundamental com a tradição indígena. A fabricação de redes, a prática das modalidades de pesca mais artesanais ligadas aos ciclos da maré e mesmo a prática da pesca em embarcações no alto‑mar são valorizadas como atividades de ensino e transmissão da tradição aos mais jovens. Todos os pescadores abordados no levantamento ou em outras ocasiões manifestaram essa posição. Por essa razão, além da questão econômica propriamente dita, é que se criou em Coroa Vermelha uma cooperativa de pescadores indígenas. Essa cooperativa, nas palavras de Seo Benedito, serve tanto para “ajuntar” os pescadores indígenas da Coroa Vermelha “na hora de pescar e vender o pescado”, quanto para “não deixar morrer a tradição da pesca”. A última parte da afirmação remete, de forma simbólica, a um conflito geracional que será tratado ao longo da discussão a respeito de todas as atividades econômicas da aldeia de Coroa Vermelha. Para os mais velhos da aldeia, a atual geração, embora tenha sido beneficiada pela facilidade de acesso à escola, tendo escola própria na aldeia, melhor alimentação, serviços de saúde e um conjunto de outros benefícios ligados à ideia de qualidade de vida, não tem interesse pelo trabalho e, portanto, não cultiva as tradições indígenas. São vários os relatos, conforme atesta o trabalho de Miranda (2009), de adultos e idosos em Coroa Vermelha queixando‑se de que, se no passado as condições de vida os obrigavam a trabalhar desde a infância para ajudar a família, era através do trabalho que aprendiam as coisas da vida, a tradição. Atualmente há um questionamento ao modo de vida dos mais jovens, considerado “muito relaxado”. Ademais, porque “não querem saber de nada”, também não aprendem e exercitam a tradição indígena. Essa situação se reflete na formulação de uma queixa a respeito do cuidado, não observado pelos mais jovens, com as tradições ligadas às diversas atividades econômicas, não sendo diferente com a pesca. Seo Benedito afirma que “hoje em dia é difícil arrumar um ajudante pra pesca, se você perguntar a um desses meninos se ele quer ganhar um dinheirinho e ajudar a fazer a uma rede de pesca para aprender, eles não querem. Nem meus filhos querem.” Dessa forma, os mais velhos pressupõem haver desinteresse, por parte dos mais jovens, pelas atividades tradicionais de trabalho e subsistência, e, por outro lado, grande expectativa de melhoria de vida. Tal expectativa é proporcionada, de um lado, pelas novas positivas condições educacionais, com alguns índios ascendendo às universidades públicas do estado, e de outro, em relação às possibilidades de subsistência decorrentes das atividades turísticas, consideradas por muitos como mais leves. Nas palavras de Seo Benedito: […] eu acho certo os menino quererem estudar, porque é isso que vai dar uma condição melhor para eles, mas eles não estudam o dia inteiro, podiam ajudar um pouco a trabalhar com as coisas da pesca. Assim eles vão aprendendo as coisas e, se precisar um dia, ele sabe fazer alguma coisa, então não passa necessidade. Quem sabe trabalhar, de fome não morre […] O conflito geracional estabelecido tem relação direta com a questão da manutenção da tradição. Para os mais velhos, a manutenção do modo de vida depende do ensino, transmitido através do trabalho concreto, nas diversas atividades econômicas, e do recíproco aprendizado dos modos próprios de fazer. Vale observar que estou considerando tradição como “ação culturalmente apropriada” (TOREN, 1988 p.712 minha tradução). Cristina Toren demonstra, em sua análise do contexto fijiano, que a noção de tradição deve ser analisada a partir de seu significado local, isto é, o que os fijianos consideram “a maneira local de fazer”. Procurarei demonstrar, ao longo da análise que será desenvolvida acerca das atividades econômicas e sua relação com a tradição, que essa concepção pode ser aproximada a algumas formas de pensar a tradição entre os Pataxó. 3. A agricultura A agricultura é considerada, entre os Pataxó, a atividade econômica mais tradicional. De acordo com esse discurso, os índios de Barra Velha, no período de isolamento enfrentado sobreviveram graças ao plantio de roças realizado na aldeia. Segundo o mesmo discurso, a roça é, então, a atividade econômica que demarcou, preliminarmente, a indianidade Pataxó. Se atualmente procura‑se a tradição no artesanato, foi a roça o critério utilizado anteriormente. PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural. 13 (1). 2015 ISSN 1695-7121 Sandro Campos Neves 137 No entanto, na Coroa Vermelha atual a roça não está entre as atividades mais importantes, estando estas ligadas ao turismo. Embora um número consideravelmente grande dos GD`s ‑‑ 10 (Dez) dos 31 (Trinta e um) que participaram do levantamento ‑‑ tenha afirmado fazer algum tipo de agricultura, pode‑se perceber, na quantificação dessa atividade, que ela é utilizada complementarmente à produção e comercialização do artesanato. Além disso, importa destacar que a agricultura é bastante variada, não havendo especialização em nenhum gênero que possa ser destacado como indicativo de que se venda algo do excedente, admitida a existência de excedente. Nenhum dos GD´s entrevistados afirmou ter como atividade principal a agricultura. Basicamente, as roças são plantadas com o intuito de atender às necessidades da subsistência nos períodos em que, eventualmente, o artesanato não seja suficiente. Os tipos de roça plantados são de características variadas. A região da aldeia onde as roças têm importância destacada estende‑se da região conhecida como “do campo” até o bairro do Karajá. A região mais próxima à praia, como já relatei, é dominada pelo artesanato e pesca, havendo menor índice de plantio de roças. Colabora para essa situação o tipo de solo que no entorno da praia é menos propício ao plantio, bem como os tipos de habitação. No bairro do Karajá, sobretudo, mas também em menor escala na região “do campo”, as casas possuem quintais maiores, maior área livre em relação à área construída, com o intuito mesmo de liberar espaço do quintal para o plantio. Esse tipo de construção é mais extensamente possível no bairro do Karajá, pois existe uma menor pressão e disputa pelo espaço do que na região da praia. Na praia, em função da proximidade com o centro turístico e da necessidade de maior parte dos índios de viverem do comércio de artesanato, a disputa pelo espaço é maior e as habitações consequentemente restringem‑se à área construída, faltando, assim, o espaço que poderia ser utilizado para o plantio, que é ocupado por outra residência contigua ou semi‑contígua. Essa configuração está, pois, relacionada fortemente à estruturação econômica do território. Algumas das famílias mais antigas que chegaram à Coroa Vermelha se estabeleceram na região de praia do entorno do centro de artesanato. Essa situação deixou como alternativas às famílias que chegaram posteriormente o bairro do Karajá e a região do campo, mais distantes do centro de artesanato, obviamente com exceções. Também as famílias mais antigas são as proprietárias de lojas de artesanato, deixando às famílias instaladas posteriormente outro gênero de comercialização de artesanato, que abordarei a seguir. Assim, como o tipo de comércio praticado sem a propriedade de uma loja é menos eficaz para prover o sustento, encontram‑se outras saídas, que podem ser a pesca ou a agricultura, bem como outras ocupações formais ou informas na própria aldeia ou nas cidades de Porto Seguro e Santa Cruz Cabrália. Em relação ao tipo de plantio que se faz na aldeia, o mesmo apresenta‑se bastante variado, cingindo‑se, no entanto, aos cultivos mais utilizados. Em primeiro lugar estão feijão, mandioca (macaxeira), milho, quiabo, alface e couve. Logo a seguir vem o plantio de frutas, geralmente de árvores frutíferas comuns na região, tais como mamão, banana, cacau, abacaxi e laranja. Para a complementação da alimentação são geralmente comprados o arroz, a carne, peixes e/ou frutos do mar. De todos os GD´s que participaram do levantamento apenas um realiza, combinadamente, pesca, agricultura e artesanato, sendo, porém, a pesca a atividade principal. O tipo de roça praticado pelos Pataxó em Coroa Vermelha compõe‑se, em todos os casos observados, de uma área livre de construção ou de utilização residencial que pode variar entre 4 (quatro) e 12 (Doze) ou mais metros quadrados. Nessa área, geralmente predominam as árvores, frutíferas e/ou produtoras de matéria‑prima para o artesanato. Entre as árvores, a depender da maior ou menor necessidade de exposição ao sol, são encaixadas as fileiras de plantios de verduras e leguminosas como alface, couve e quiabo. Em algumas casas existe ainda o plantio de mandioca (macaxeira), realizada na parte mais distante da residência e geralmente mais próxima à área de mata que, usualmente, circunda as plantações. O trabalho na roça é geralmente praticado pelo adulto mais velho da casa. Trata‑se de uma atividade apreciada pelos mais velhos, muito provavelmente por ser uma ocupação à qual sempre se dedicaram, com maior ou menor regularidade, ademais de exigir um esforço relativamente menor do que outros tipos de atividade, tais como a pesca e a confecção de artesanato de madeira, que envolve maquinário. O conflito geracional mencionado na atividade pesqueira também se manifesta na atividade agrícola. Os mais velhos questionam as gerações mais jovens, usualmente aquelas em idade escolar, a respeito não exatamente da sua frequência à escola, mas da destinação que dão ao tempo livre fora da escola, no qual não está incluída a realização das chamadas atividades tradicionais, o que compromete a sua reprodução. A esse respeito Seo Manuel Siriri, um dos mais antigos moradores da região e conhecido pelo plantio variado da sua roça, queixa‑se que os mais jovens; “não querem aprender a fazer roça, porque tem outras coisas que chamam mais a atenção deles”. De acordo com a sua percepção, isso seria ruim porque “perde os conhecimento que nós temos da roça, das plantas.” Em relação ao assunto, Capimbará, que há alguns anos desenvolve, entre os alunos da escola, um trabalho que ele define como PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural. 13 (1). 2015 ISSN 1695-7121 138 “O Índio não gosta de ficar cativo” “de preservação ambiental” e que se caracteriza por buscar repassar o conhecimento sobre as plantas, menciona que “não só os alunos, mas hoje em dia os professores da escola não sabem nada das plantas, não sabe ensinar aos alunos, porque eles mesmos não sabem”. Essa questão, que se manifesta em relação também ao artesanato, a qual tratarei logo a seguir, parece apontar para o suposto de que a maneira como se tem encarado, atualmente, a idéia de infância e juventude entre os Pataxó tem mudado significativamente. Miranda (2010) demonstrou, em seu trabalho, o desacordo que ocorre em relação ao aprendizado das principais atividades econômicas. Para ela, sendo esse um fundamento do processo de socialização indígena, o abandono que ele sofre dos mais jovens é sentido pelos mais velhos como abandono da tradição. Essa situação demonstra relação com a massificação da ideologia, por parte de instituições como UNICEF e outras, dedicadas à erradicação do trabalho infantil, de que “criança é para brincar”. No entanto, essa filosofia se revela bastante contraditória com a tradição Pataxó, na qual colaborar com o trabalho adulto é um dos principais instrumentos de educação e socialização das crianças através das quais se aprende a cultura Pataxó. Os gêneros plantados, como se pode perceber, são os mais comuns na dieta local, havendo grande variedade e pequena quantidade. Os Pataxó que participaram do levantamento tiveram grande dificuldade em quantificar o que colhem das roças, o que suponho constituir mais um indício de que a totalidade do que se planta é usada para a alimentação do próprio GD ou do grupo familiar mais próximo. Assim é que caracterizo o plantio de roças com uma atividade de subsistência voltada, ao mesmo tempo, para o exercício da socialidade, tanto aquela praticada no âmbito mais estrito do parentesco quanto da entreajuda na comunidade. Assim, o plantio de roças é uma das formas emblemáticas da socialidade local. É bastante comum que daquilo que é plantado, grande parte seja dividida com os parentes mais próximos residentes na aldeia, pelo que são comuns as trocas e visitas entre parentes, com o intuito de compartilhar gêneros alimentícios colhidos na roça da família. Essa é, inclusive, uma estratégia de manutenção da variedade à mesa. Em um dos casos que presenciei durante a pesquisa de campo, uma família, que plantava grande quantidade de árvores frutíferas, trocava constantemente, com primos residentes no próprio bairro do Karajá, frutas por alguns legumes que não plantava, tais como quiabo e alface. Em outro caso, uma família que possuía grande roça abastecia os parentes mais próximos com todo tipo de gênero alimentício proveniente da roça da família, i.e., legumes, verduras e frutas. Essa situação de praticamente prover alimentação para outra família ocorria porque a primeira, que plantava grande roça, considerava a segunda, dedicada a uma atividade artesanal de pequeno porte, menos favorecida e que “precisa alguém dar comida para eles, porque não tem condição”. Essa é outra dimensão da importância simbólica que se atribui à roça: além de ser ela considerada a primeira atividade sistemática de subsistência dos Pataxó, se lhe atribui, atualmente, o papel de mantenedora de um nível nutricional mínimo para todas as famílias. Mesmo as famílias que não plantam, eventualmente por alguma dificuldade momentânea ou por se dedicarem a outra atividade, recebem dividendos da roça dos parentes, formando, assim, uma rede de solidariedade e entreajuda. 4. A produção doméstica do artesanato e as oficinas Todo o conjunto de atividades analisados até aqui, incluindo o que se seguirá, é fundamental para compreender o funcionamento da atividade turística para os Pataxó em Coroa Vermelha. Tendo em vista sua sazonalidade, bem como as dificuldades no que diz respeito à geração de novos postos de trabalho, dada a relativa estagnação no crescimento do destino Porto Seguro de modo geral, os Pataxó, embora em muitos casos desejassem viver apenas do turismo precisam exercer outras atividades econômicas. Não obstante, tais atividades exercem um papel essencial na visão dos índios sobre a manutenção da tradição, o que, de certo modo, justifica o interesse turístico nos índios da região. Isto é, paradoxalmente, muitos desejam viver do turismo, mas acreditam que sem a manutenção da tradição, implicada no exercício das outras atividades, o turismo seja inviável, pois “os turistas não iam se interessar em conhecê‑los”. Em relação à produção do artesanato apresentarei, a seguir, dados relativos ao levantamento realizado. Dele fizeram parte os dados apresentados sobre pesca e roça, referem‑se ao levantamento entre GD´s da aldeia e foi realizado com o intuito de compreender as principais atividades econômicas e como se organizam na aldeia9. Procurarei, ao longo desta seção, à medida que apresento os dados, abordar essa diferenciação e explicar não apenas sua razão de ser, mas também as condicionantes que ela estabelece para a economia local. Tratarei, primeiramente, do artesanato produzido pelos diversos GD´s de diversos pontos da PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural. 13 (1). 2015 ISSN 1695-7121 Sandro Campos Neves 139 aldeia, reunindo dados relativos a GD´s da região do centro de artesanato, do campo e do bairro Karajá. Em seguida, tratarei do artesanato produzido e, principalmente comercializado, pelos proprietários de lojas no centro de artesanato. Dos 31 (Trinta e um) GD´s que participaram do primeiro levantamento, 24 (Vinte e quatro) descreveram como principal atividade econômica o artesanato, ao passo que, tal como visto, os 7 (sete) restantes caracterizaram como sendo a pesca, nenhum identificando a roça como atividade principal. Obviamente, desses 24 (Vinte e quatro) nem todos se dedicam apenas a essa atividade, havendo 10 (Dez) que também plantam roça e 1 (um) que se dedica às três, tendo como atividade principal a pesca, daí haver sido contabilizado entre os 7 (sete) que afirmam ter na pesca a atividade principal. No entanto, o fato de 10 (Dez) afirmarem fazer também o plantio de roças demonstra, para além da posição privilegiada que se atribui à roça, a necessidade de complementação da renda. Essa situação contrasta com a da maior parte dos proprietários de lojas no centro de artesanato, como será visto, já que esses parecem tê‑las como atividade exclusiva na quase totalidade dos casos. Dessa forma, os GD´s entrevistados no primeiro levantamento dos 31, são em grande maioria, mas com exceções, não proprietários de lojas. Esse quadro, verificado com mais frequência no bairro Karajá e na região do campo, é resultado da situação, já destacada, do crescimento da aldeia que tornou impossível que todos tivessem acesso às lojas. Ainda assim, entre aqueles que não tiveram acesso às lojas, a maior parte vive do artesanato. Essa situação colaborou, como demonstrarei a seguir, para uma especialização dos proprietários de lojas que, atualmente, se transmutam em revendedores do artesanato produzido por outras famílias e possuem uma produção própria bastante pequena. Em relação ao levantamento realizado nos GD´s, dos 24 (Vinte e quatro) que têm no artesanato a atividade principal, apenas 5 (Cinco) eram proprietários de lojas. Os 19 (Dezenove) restantes produziam para a revenda de terceiros ou para a venda na praia. A venda de artesanato de forma ambulante, na praia, tem se tornado cada vez menos efetiva, posto que os turistas preferem comprar no centro de artesanato e, frequentemente, manifestam incômodo com a abordagem para a compra do artesanato na praia. Ainda assim, dos 19 (Dezenove) GD´s, nada menos do que 15 (Quinze) disseram vender alguma parte de sua produção na praia. No entanto, essa parte ali vendida torna‑se cada vez menos significativa para a subsistência doméstica, ao passo que a comercialização para revendedores cresce em importância. Desses 15 (Quinze) produtores, 14 (Quatorze) afirmaram que a maior parte da renda procede da venda para revendedores indígenas ou não. Todos os 14 (Quatorze) vendem para comerciantes indígenas, mas 8 (Oito) afirmaram ainda ter como maiores clientes comerciantes não indígenas. Esses comerciantes, inclusive, não seriam apenas da região de Porto Seguro e Santa Cruz Cabrália como supus a princípio, mas de diversas regiões do estado, tais como Salvador, Vitória da Conquista e Teixeira Freitas, como de outros estados, aparecendo em alguns casos Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro. Suponho que essa rede poderia ser ainda mais desdobrada, mas os entrevistados para o levantamento não manifestaram grande interesse por saber para onde o artesanato era escoado depois de remetido aos compradores. Em geral remetem quantidades significativas de artesanato, através dos correios ou por transporte fretado, aos mesmos compradores, fregueses frequentes. Usualmente, na contratação de transportes fretados, os compradores se encarregam das despesas. Essa situação colaborou para que eu procurasse compreender sob quais formas se organiza, dentro da aldeia de Coroa Vermelha, essa produção que começa a ser comercializada para fora da aldeia. Quando cheguei a Coroa Vermelha supunha que a totalidade do artesanato produzido na aldeia o fosse nos GD´s através do trabalho apenas manual e com a participação apenas dos cohabitantes de cada casa. À medida que me aprofundava na pesquisa de campo e com o auxílio desse primeiro levantamento, comecei a perceber que havia uma produção bastante significativa realizada, cada vez mais, com a participação de diversos GD´s. O maior símbolo dessa nova modalidade de produção, em oposição à modalidade anterior e bastante reduzida relatada por Carvalho (1977) ou mesmo à produção mais significativa relatada por Grunewald (1999), é a oficina. Encontrei, durante o período de campo, a totalidade 8 (Oito) oficinas de porte médio, excluída a grande oficina organizada pela associação de artesãos de Coroa Vermelha e as mais de 30 (Trinta) pequenas oficinas encontradas em casas de artesãos para fabricação da produção individual. Todos os 24 (Vinte e quatro) artesãos dos GD´s entrevistados possuem, em casa, pequenas oficinas compostas por uma lixadeira elétrica e, em alguns casos, até de um torno para a fabricação de gamelas. As pequenas oficinas destinam‑se à produção do artesanato em madeira como gamelas, petisqueiras, conchas, garfos e inúmeras miudezas, que serão descritas, em maior detalhe, quando relatar a comercialização nas lojas. Produzidas em pequeno número, essas peças de madeira são comercializadas individualmente com indígenas proprietários de lojas, no centro de artesanato ou com outros lojistas de Coroa Vermelha PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural. 13 (1). 2015 ISSN 1695-7121 140 “O Índio não gosta de ficar cativo” e na região do campo. As pequenas oficinas são o motor da produção artesanal da Coroa Vermelha atual e superam, largamente, em importância a produção manual de outros artesanatos, tais como colares, pulseiras, brincos e cocares produzidos de matéria‑prima local, a exemplo de sementes e penas. Além dessas pequenas oficinas, existem as de médio porte que, em geral, envolvem o serviço cooperado de diversos GD´s, usualmente relacionados pelo parentesco, que pode ser estendido para além do núcleo familiar mais próximo, e produção em grande escala para os padrões locais. Identifiquei três GD´s de irmãos, incluídos aí os filhos de cada um deles e o pai, em regime de cooperação no entorno do centro de artesanato, e em outro caso, encontrado no bairro do Karajá, uma composição de 4 GD´s de tio e sobrinhos. Essas oficinas trabalham com uma produção espontânea, mas atendem também, em grande medida, encomendas grandes feitas por clientes proprietários de lojas no centro de artesanato ou de fora da aldeia. As encomendas são usualmente compostas de mais de uma centena de gamelas, petisqueiras, ou de utensílios como garfos, colheres e conchas. É bastante comum também que comerciantes indígenas recorram a essas oficinas para comprar materiais que sobraram da produção, para o atendimento de encomendas. O trabalho de produção é geralmente dividido igualmente entre os participantes, assim como os custos e os lucros. Por essa razão é que se prefere o trabalho em família, onde todos colaboram para a compra das máquinas, com os custos de produção e com o trabalho, tornando possível a divisão equânime dos lucros. Encontrei apenas uma dessas oficinas de médio porte que trabalha com a contratação de trabalho de terceiros. Naquele caso a situação era motivada pela ausência de parentes próximos na aldeia de Coroa Vermelha. Dessa forma, o proprietário da oficina era o único proprietário das máquinas e arcava com os custos da produção, ficando também com os lucros e pagando salário aos funcionários, geralmente por empreitada. Ele dedicava‑se sozinho à produção cotidiana, contratando mão de obra apenas para atender a encomendas maiores. Nas oficinas, ao mesmo tempo em que se exercita a participação e colaboração familiar, também são desencadeados conflitos. Diversas foram as oportunidades em que presenciei, assim como são diversos os relatos de brigas entre parentes em torno das questões relacionadas à oficina ou de querelas que, motivadas por fatores externos ao trabalho na oficina, influenciam, negativamente, o trabalho. As situações mais comuns são as de suspeitas relativas à distribuição dos lucros ou divisão dos custos. Como o trabalho possui um grau baixo de organização fiscal, não havendo contratos, contabilidade organizada, estabelecimento de contrapartidas da sociedade, amortização de maquinário e outras atividades comuns que cercam a produção em larga escala em nossa sociedade, subsistem também conflitos a esse respeito. Presenciei situações, por exemplo, em que tendo sido uma encomenda iniciada e depois cancelada pelos clientes, estabeleceu‑se entre os irmãos uma grande polêmica a respeito de quem era o responsável pela situação e sobre como iriam agir a respeito do que já fora produzido. Como consideravam difícil comercializar rapidamente a encomenda específica de utensílios de cozinha para outros comerciantes, brigavam pela atribuição de responsabilidade pelos custos de produção de parte da encomenda frustrada. Nesse caso, a situação acabou solucionada pela sugestão da mulher de um dos irmãos de enviarem a produção para que um tio, residente em Barra Velha, realizasse a comercialização. Acompanhei também casos em que, tendo os parentes se confrontado por questão alheia ao trabalho da oficina, nesse caso uma briga familiar envolvendo relacionamento das cônjuges de dois primos, e decididos a desfazer a pareceria, desentendiam‑se, agora, a respeito dos custos de cada envolvido no processo e como seriam devolvidos àqueles que queriam sair da parceria, os investimentos feitos. Nesse caso, o tio, responsável maior pela oficina, acabou por restituir a um deles a sua parte na sociedade, através de uma quantia que julgou satisfatória, ficando acordado que parte desse valor seria descontada dos lucros do outro primo na produção da oficina. Essas situações são usualmente, conforme os dois casos demonstram, contornadas pela própria proximidade das famílias, que encontram formas de satisfazer, ao menos parcialmente, aos envolvidos no conflito e retomar a normalidade do convívio familiar. Assim, se por um lado, em contraste com a sociedade não indígena e por força do que poderia ser caracterizado como informalidade da atividade, existe maior número de conflitos, também em contraste com a sociedade não indígena os conflitos são mais rapidamente resolvidos, em geral com maior nível de satisfação entre as partes, em decorrência das relações de parentesco. A solidariedade, por outro lado, é também fortemente exercitada nas oficinas através do trabalho. Não apenas se estabelece solidarie-dade em torno dos compromissos assumidos com encomendas e com o serviço cotidiano, mas também porque nas oficinas sempre há vagas para um parente em condição econômica precária e que precisa, prementemente, trabalhar, bem como há boa vontade entre os participantes para ajudar financeiramente os parentes em apuros financeiros. Além disso, essa atividade mantém uma complementaridade forte com a atividade das roças, havendo parentes que não estando dedicados à oficina familiar, colaboram PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural. 13 (1). 2015 ISSN 1695-7121 Sandro Campos Neves 141 com os GD´s através do fornecimento de gêneros alimentícios colhidos de sua roça. Esse oferecimento costuma ser retribuído com colaborações financeiras, tanto para o próprio plantio, quanto para prover as necessidades da família. Em relação ao ritmo de trabalho nas oficinas, embora bastante forte, sobretudo quando existem encomendas, e também de caráter rígido no que concerne ao trabalho com a madeira, manifesta‑se a questão que resumi na expressão “índio não gosta de ficar cativo”, retirada da fala do pescador José Carlos e repetida, em algumas situações, quando eu indagava sobre o trabalho formal. Para eles, a frase constitui o resumo de um modo de vida que, como já demonstrei, enfatiza relações de parentesco, solidariedade e amizade e orienta‑se para a procura da felicidade pessoal não necessariamente vinculada ao sucesso profissional. Esse modo de vida, embora compreenda o trabalho como questão fundamental para a sobrevivência, recusa‑se a admiti‑lo, como ocorre na sociedade não indígena, como pedra de toque desse modo de vida. O papel do trabalho e as representações a ele vinculadas parecem dirigir‑se aos movimentos de exercício da tradição e manutenção e reforço das solidariedades de parentesco e sociais. Nas oficinas manifesta‑se também a questão da manutenção da tradição. Em relação ao tipo de artesanato produzido, as oficinas obviamente não se dedicam àquele artesanato ao qual se costuma atribuir o “selo” da tradição local, os colares, sobretudo, mas também pulseiras e brincos feitos de semente. No entanto, as oficinas tratam de um artesanato que se tornou tradicional por força de sua procura no circuito turístico, dado que as peças chamam a atenção de turistas e comerciantes não apenas pela beleza, mas pela possibilidade de uso prático. Obviamente, não desconsidero a visão de tradicionalidade vinculada a esse artesanato. Inclusive, alguns índios reforçam sua ligação com um momento ainda anterior aos colares, pulseiras e brincos, em que os próprios Pataxó produziam seus utensílios domésticos de matéria‑prima da mata. A respeito dessa questão, também os artesãos, nas oficinas, queixam‑se de que os mais jovens não procuram conservar essa modalidade de trabalho, preferindo entreter‑se com outras atividades, geralmente recreativas, orientadas para fora do mundo que se considera ser o do trabalho. Essa questão é tratada não apenas como uma característica negativa da geração atual, mas como um perigo para a tradição e para todo o modo de vida. Como é possível perceber, para os artesãos, está em jogo não apenas a sobrevivência, mas a conservação de um modo tradicional de trabalhar, em parceria com o grupo familiar e mediante o exercício de relações de solidariedade e entreajuda no âmbito do parentesco. 5. Conclusões Ao longo do trabalho procurei demonstrar os nexos estabelecidos entre as atividades econômicas exercidas pelos Pataxó em Coroa Vermelha e os sentidos que se atribui à tradição e ao trabalho. Os Pataxó organizam o conjunto de suas atividades econômicas em um eixo hierárquico baseado em critérios de tradicionalidade. A hierarquia resultante desse processo é compreendida de formas diferentes pelos diversos atores sociais, inclusive por sua maior ou menor ligação com elas, e identificam tradições recentes e tradições tidas como imemoriais. Todo esse conjunto de percepções sobre trabalho e tradição, no entanto, faz emergir aspectos consi-derados fundamentais do modo de vida indígena. Aspectos como o entendimento de que o trabalho é um instrumento de aprendizado e exercício da tradição, bem como o de que o mundo do trabalho não está em uma esfera hierarquicamente superior em relação à vida pessoal, antes, ele serve à manutenção e reforço das relações de parentesco e afinidade. Essas percepções permitem deslindar inicialmente a compreensão de uma sociedade estruturada de forma a priorizar relações pessoais e o exercício da vida comunitária como centro da vida social e que transforma o trabalho em instrumento para esses fins, ao contrário do que as pressões econômicas sofridas por esse povo poderiam fazer parecer, que esta fosse uma sociedade sufocada pelas pressões da subsistência. Tal pressuposição é sintetizada pelos nativos através da idealização de que não deveriam possuir trabalhos estruturados por uma rotina diária inquebrantável, traduzida na expressão “índio não gosta de ficar cativo”. Ademais disso encontra‑se a relação desta discussão com a realidade turística. O turismo se tornou uma das atividades econômicas mais importantes para os Pataxó. No entanto, por um lado a atividade não é capaz de suprir as necessidades de toda a comunidade em Coroa Vermelha ou mesmo de prover uma parte de sustento a todos, estando desigualmente distribuída em termos de emprego e geração de renda. Por outro lado, o turismo paradoxalmente depende das outras atividades econômicas, uma vez que é através delas, na visão dos Pataxó, que se mantém a tradição e, ainda na visão dos Pataxó, é esta última que pode ser considerada o grande atrativo turístico dos índios da região. PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural. 13 (1). 2015 ISSN 1695-7121 142 “O Índio não gosta de ficar cativo” Ainda que se possa dizer que a necessidade premente da sobrevivência seja uma força a submeter essa sociedade à exploração por outras, sua configuração permite, por exemplo, desconstruir a perspectiva ocidental que toma por natural a acumulação capitalista de bens como finalidade última. Se os bens possuem sentido para os Pataxó é unicamente em sua qualidade de mecanismos mediadores de relações sociais tidas como mais relevantes. Da mesma forma, se o trabalho tem um sentido para os Pataxó é principalmente por sua qualidade de mantenedor da tradição e instrumento de socialização. Assim, a compreensão dos sentidos do trabalho permite compreender uma sociedade que poem a funcionar os objetos das sociedades ocidentais em seu sistema social com base em uma cosmologia local que deles se apropria, promovendo a indianização do mundo dos brancos. Bibliografia Bussab, W.O.; Morettin, P.A. 1987. “Estatística Básica.” 4ª Edição. Atual Editora. São Paulo, SP. 1987. Carvalho, M. R. G. 1977. “Os Pataxó de Barra Velha: seu subsistema econômico”. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós‑Graduação em Ciências Sociais, UFBA, Salvador. Carvalho, M. R. G. & Sampaio, J. A. L. 1992. “Parecer sobre o Estatuto Histórico‑Legal das Áreas Indígenas Pataxó do Extremo Sul da Bahia.” Salvador, 20 p. Chayanov, A V. – 1966. “The Theory of Peasant Economy”. The American Economic Association, Homewood‑Ilinois. Kohler, F. S/D. “Uma Gênese Pataxó: o massacre de 51”. Sem indicação de referência da publicação. Miranda, S.S. 2006. “A construção da identidade Pataxó: práticas e significados da experiência cotidiana entre crianças de Coroa Vermelha.” Trabalho de Conclusão de Curso, Universidade Federal da Bahia, Salvador. Miranda, S.S. 2010. “Aprendendo a Ser Pataxó: um olhar etnográfico sobre as habilidades produtivas das crianças de Coroa Vermelha, Bahia.” 244f. 2009. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós Graduação em Antropologia, Universidade Federal da Bahia, Salvador. Neves, S.C. 2011. “Produção, Circulação e Significados do Artesanato Pataxó no Contexto Turístico da aldeia de Coroa Vermelha, Santa Cruz Cabrália‑BA.” Pasos. v.9(3) Special Issue p. 45‑58. Sahlins, M. 1978. “Stone Age Economics.” Tavistock Publications, London. Sampaio, J. A. L. 1996. “”Sob o signo da cruz.” Relatório circunstanciado de identificação e delimitação da terra indígena Pataxó de Coroa Vermelha.” Salvador. Toren, C. 1988. “Making the present, revealing the past: The mutability and continuity of tradition as process.” In: Man, New Series, v.23 n.4 Royal Anthropologic Institute of Great Britain and Ireland, pp.696‑717. Woortmann, K. 1967. “Grupo Doméstico e Parentesco num Vale da Amazônia.” Revista do Museu Paulista, Nova Série, Vol. XVII: 209 ‑377. Notas 1 Trata‑se do tipo de pesca com embarcações em que os pescadores procuram um ponto específico em alto mar para atirar as redes e após aguardar o tempo necessário para o aprisionamento dos mesmos arrastam a rede por alguns metros de forma a tornar possível puxar os peixes para dentro da embarcação, normalmente através de algum tipo de grua, mas em muitos casos utilizando apenas a força humana. PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural. 13 (1). 2015 ISSN 1695-7121 Sandro Campos Neves 143 2 Nesse tipo de pesca se utiliza o momento de maré baixa, durante a madrugada, para ir até a praia e construir uma armadilha utilizando latas de ferro de modo que seja possível capturar peixes retidos pela maré. 3 Nesse caso se utiliza também o período de maré baixa, nas partes mais secas da praia, para armar redes com objetivo de capturar também peixes retidos na maré, trata‑se de um tipo alternativo do mesmo mecanismo da forma de pesca anterior. 4 Este último tipo refere‑se à pesca em embarcações em alto mar, mas com o mergulho dos pescadores, é aquela praticada de forma mais restrita. 5 A aldeia Pataxó de Barra Velha é considerada o território original dos Pataxó atuais, chamada de aldeia‑mãe. Trata‑se da região em que no século XIX os Pataxó foram aldeados, no contexto da dominação colonial, junto com as restantes populações indígenas da região. Do resultado das misturas culturais desses povos foi formada a população e a cultura Pataxó atual. Assim, quando remete‑se à aldeia de Barra Velha a ideia que está em jogo é do máximo de tradicionalidade Pataxó. Sobre o assunto ver mais em Carvalho (1977), Carvalho e Sampaio (1992), Sampaio (1996) e Kohler (s/d). 6 Fundação Nacional do Índio – órgão da ação indigenista brasileira. Comumente a FUNAI emprega índios para exercer as mais diversas funções relacionadas à ação indigenista – motoristas, assessores, mateiros, etc. 7 Fundação Nacional da Saúde – órgão ligado ao Ministério da Saúde, com atuação destacada entre populações indígenas brasileiras e que comumente emprega também índios em funções diversas de auxílo a suas atividades em aldeias e entre populações indígenas. 8 Refiro‑me aqui às chamadas “ retomadas” de terra. Nome pelo qual os índios designam um tipo de ação quanto ao reconhecimento de seus direitos orginários à terra, que consiste em recuperar a posse de terras tradicionalmente ocupadas pelas populações através do recurso de ocupação e resistência no território, obrigando a interferência das autoridades ligadas à questão e subsidiariamente ao estudo legal e histórico a respeito do efetivo direito indígena à posse da terra. Recibido: 24/10/2013 Reenviado: 03/05/2014 Aceptado: 03/06/2014 Sometido a evaluación por pares anónimos
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Calificación | |
Título y subtítulo | “O índio não gosta de ficar cativo”: trabalho e tradição nas atividades econômicas dos Pataxó da Aldeia de Coroa Vermelha |
Autor principal | Campos Neves, Sandro |
Publicación fuente | Pasos. Revista de turismo y patrimonio cultural |
Numeración | Volumen 13. Número 1 |
Sección | Artículos |
Tipo de documento | Artículo |
Lugar de publicación | El Sauzal, Tenerife |
Editorial | Universidad de La Laguna |
Fecha | 2015-01 |
Páginas | p. 131-144 |
Materias | Turismo ; Patrimonio cultural ; Publicaciones periódicas |
Enlaces relacionados | Página web: http://todopatrimonio.com/revistas/101-pasos-revista-de-turismo-y-patrimonio-cultural |
Copyright | http://biblioteca.ulpgc.es/avisomdc |
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Texto | © PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural. ISSN 1695-7121 Vol. 13 N.o 1. Págs. 131-143. 2015 www .pasosonline.org Resumo: O presente artigo trata das representações dos índios Pataxó da aldeia de Coroa Vermelha, município de Santa Cruz Cabrália, no estado da Bahia/Brasil a respeito do trabalho e de suas atividades econômicas. Apresenta reflexão a respeito dos entendimentos nativos dessas atividades, terminando por referir‑se à compreensão construída pelos índios sobre o trabalho e sua relação com a tradição. O artigo é re-sultado da pesquisa de doutoramento, com trabalho de campo realizado entre 2008 e 2011, que versou sobre a apropriação do turismo pelos índios como atividade econômica principal e as transformações realizadas na forma de praticar a atividade turística, no processo que descrevo como de indianização do turismo. A etnogra-fia realizada pretende investigar as configurações da relação entre economia e tradição contextualizadas por uma visão interna, isto é, descrita nos termos apresentados pelos índios, da categoria tradição. Palavras-Chave: Índios, Pataxó, Coroa Vermelha, Atividades Econômicas, Representações. “The Indian does not like being captive”: Labor and Tradition in Pataxó Economic Activities in the Village of Coroa Vermelha Abstract: This paper deals with the representations of Pataxó Indians of the village of Coroa Vermelha, municipality of Santa Cruz Cabrália, in the state of Bahia / Brazil about work and their economic activi-ties. Presents reflections on the native understandings of these activities and concluding to refer to the understanding built by indians about the work and its relation with the tradition. The article is the result of doctoral research, with fieldwork conducted between 2008 and 2011, which expounded upon appropriation by the Indians of tourism as main economic activity and the changes made in the form of practicing tourism, wich in the process I describe as indianization of tourism. The ethnography aims to investigate the settings of the relationship between economics and tradition contextualized by an inner vision, that is, described in the terms presented by the indians, of the category tradition. Key Words: Indians, Pataxó, Coroa Vermelha, Economic Activities, Representations. “O Índio não gosta de ficar cativo”: Trabalho e Tradição nas Atividades Econômicas dos Pataxó da Aldeia de Coroa Vermelha Sandro Campos Neves* Universidade Federal de Juiz de Fora (Brasil) Sandro Campos Neves * Doutor em Antropologia PPGA/UFBA , Mestre em Cultura e Turismo UESC/UFBA, Bacharel em Turismo UFJF; E‑mail: sandrocamposneves@yahoo.com.br 1. Introdução No presente artigo apresento resultados da pesquisa de campo empreendida entre os Pataxó de Coroa Vermelha, no município de Santa Cruz Cabrália, estado da Bahia/Brasil a respeito do processo de apropriação indígena do turismo. A aldeia pataxó de Coroa Vermelha se localiza a aproximadamente 17 km do centro do município de Porto Seguro, do qual dista cerca de 8 km, e faz parte do município de Santa Cruz Cabrália. Até então considerada apenas um bairro de Santa Cruz Cabrália, a região foi reconhecida e demarcada como Terra Indígena em 1996. A partir dessa data, a Terra Indígena Coroa Vermelha passou a se constituir de uma área de 1.420 hectares às margens da BR 367, na praia de PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural. 13 (1). 2015 ISSN 1695-7121 132 “O Índio não gosta de ficar cativo” Coroa Vermelha, denominada Gleba B, e uma área de 72 hectares, distante cerca de 7 km da praia de Coroa Vermelha em direção à Mata. (SAMPAIO, 1996) Este trabalho refere‑se principalmente à gleba A da demarcação da T.I. Coroa Vermelha, isto é, a região de praia cortada pela BR 367. Optei por, esquematicamente, dividir as áreas da TI Coroa Vermelha em três partes para facilitar o entendimento a respeito da divisão entre região turística e região não turística. Assim, compreenderei a TI Coroa Vermelha como estando dividida entre a região da Praia, composta basicamente pelo chamado Parque Indígena (Praia, Cruz do Descobrimento, Estacionamento e Centro de Artesanato); a região de mata, composta basicamente pela Gleba B da demarcação ou Reserva da Jaqueira; e as casas residenciais, dispostas ao longo do bairro do Karajá e em grande parte da Avenida beira‑mar. Essas regiões podem ser analisadas a partir de uma escala de turistização que, embora não seja estanque, varia de uma região extremamente turistificada até uma região tida como interdita ao turismo. A região que estou chamando de praia, e que corresponde ao chamado Parque Indígena, é a região altamente turistificada e, embora existam ali residências, é principalmente ocupada por lojas de arte-sanato e outras edificações consideradas fundamentalmente turísticas. A região que estou designando Mata corresponde à gleba B da demarcação da TI, bem como os caminhos que lhe dão acesso através da aldeia de Coroa Vermelha. Essa área é medianamente turistificada, pois, embora tenha como vocação essencial a visitação turística, recebe um fluxo controlado em relação a horários, tempo de permanência e número de visitantes, diferentemente da área de praia que recebe um fluxo desordenado e fortemente influenciado por agentes externos à aldeia de Coroa Vermelha. Por fim, a área das casas, contigua à região “de praia” no sentido Porto Seguro‑Santa Cruz Cabrália, é considerada interdita aos turistas. Ainda que não haja nenhuma separação visível entre ela e a região de praia, os Pataxó consideram que a área das casas não é de interesse do fluxo turístico e buscam manter os turistas afastados, para preservação da vida privada e dos laços comunitários. Desde os anos 1970, em decorrência de melhorias significativas na malha rodoviária brasileira na porção costeira da região Nordeste, sobretudo a conclusão de trechos das rodovias BR 101 e 367, os índios da aldeia de Coroa Vermelha habituaram‑se a receber crescente afluência de turistas em seu território. Habitantes pré‑coloniais da região de interior contigua à costa atlântica do estado da Bahia, os Pataxó passaram por diversos processos de dominação interétnica que levaram à desestabilização de costumes e tradições locais e sua consequente reconfiguração à luz tanto da cosmologia indígena quanto das injunções do novo contexto social. Nesse processo os Pataxó reconfiguraram sua tradição, bem como o entendimento que se possui dela, num processo que incluiu a perda e tentativa de reconstituição de uma língua própria, a reconfiguração da produção artesanal local e de todo o conjunto de atividades econômicas por eles exercidas com finalidade de subsistência, bem como das representações que se faz destas na relação com a tradição. O objeto do presente trabalho incide, sobretudo, nas atividades econômicas de subsistência e as representações que os índios expressam sobre as mesmas em relação com a categoria tradição. Aborda processos de reconfiguração da tradição indígena e sua adaptação e estabilização cosmológica. Trata‑se, portanto, de um esforço no sentido de compreender a construção da ideia de tradição entre os Pataxó na medida mesma em que essa ideia liga‑se ao tipo de atividade econômica exercida, classificadas em uma hierarquia de atividades mais tradicionais e menos tradicionais, prefigurando uma hierarquia da indianidade Pataxó. Tal hierarquia divide tradições pretensamente imemoriais e tradições recentes, numa escala que parte da roça (agricultura) e pesca, consideradas tradições imemoriais, e culmina no artesanato, considerado recente em seu formato atual e vocação comercial ‑ em oposição a um artesanato imemorial de vocação para o uso doméstico e outras características ‑ e no comércio, normalmente remetido às décadas de 1960 e 1970. Todo o empreendimento de análise está fortemente ligado à questão da atividade turística. Em última instância o turismo acaba por ser, na região, o responsável por fluxos humanos que precipitam modificações que já vinham se dando por outros meios, mas que encontram na atividade turística resposta econômica fundamental. Assim, faz‑se mister desde já esclarecer o ponto de vista aqui adotado, segundo o qual o turismo não é o agente principal da mudança. As transformações na tradição aqui relatadas têm, antes, o turismo como pano de fundo. Tratam‑se de modificações entendidas pelos próprios índios como pertinentes à discussão conceitual do que seja tradição, isto é, do que são os objetos tradicionais. Assim, o turismo surge como resposta econômica capaz de propiciar uma releitura da tradição e através deste movimento ocorre uma revisão de todo o repertório daquilo que é chamado de tradicional, incluindo as atividades econômicas de subsistência. Neste artigo tratarei, então, das modificações nas representações sobre a tradição e as atividades econômicas, compreendendo‑as como ligadas aos fluxos econômicos da atividade econômica que se tornou mais relevante, o turismo. PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural. 13 (1). 2015 ISSN 1695-7121 Sandro Campos Neves 133 Durante o período de campo realizei levantamento em 31 Grupos Domésticos (GD´s) da aldeia de Coroa Vermelha com a finalidade de obter um mapeamento extenso sobre as atividades econômicas praticadas na aldeia. Adoto no presente trabalho uma definição de grupo doméstico que os considera como sendo compostos por uma família nuclear (CHAYANOV,1966; SAHLINS, 1978). Ainda assim, como demonstra Woortman (1967 p. 11), os grupos domésticos estão unidos por “redes de parentesco e compadrio, formas de reciprocidade, padrões de herança, casamento e residência” que complexificam sua conformação. Detalharei ao longo do texto a forma como esses conjuntos de relações afetam a composição dos GD´s Pataxó. De toda forma, dos 31 GD´s analisados a totalidade é composta por famílias nucleares, embora por vezes comportem diferentes conjuntos geracionais. Complementarmente, realizei levantamento em 28 das 300 lojas do centro de artesanato indígena na praia de Coroa Vermelha, com o intuito de compreender o funcionamento do artesanato naquela parte específica da aldeia. Essa separação entre os dois levantamentos, não obstante ambos abordem a questão do artesanato, deve‑se ao fato de que a forma como se organiza a produção e comercialização do artesanato tem características diversas se o foco incidir sobre as famílias organizadas por sistemas produtivos diversos, que são apenas produtoras de artesanato; as que são produtoras e possuem lojas; e as que possuem lojas e compram a maior parte da produção artesanal. Nesta seção tratarei dos resultados desses dois levantamentos utilizados como ferramentas complementares à observação participante realizada. Fato a ser destacado é que o número relativamente pequeno do universo amostral abordado no levantamento, mantido seu rigor estatístico (BUSSAB, 1987), se deveu à grande extensão do questionário apresentado, uma vez que busquei levantar dados sobre diversos aspectos da sociedade. Os dados estatísticos produzidos e apresentados estarão cotejados pela observação participante, através da qual foi possível observar um número maior de GD´s, mas com menor possibilidade de quantificação do resultado. Ao longo dos esforços envidados para a produção de dados sobre as atividades econômicas foi sempre comum ouvir dos índios, em resposta à questão sobre quais tipos de atividades econômicas exerciam e as razões da escolha de atividade, a frase “O Índio não gosta de ficar cativo”. Ela fazia alusão à preferência massiva dos Pataxó por empregos autônomos, com baixo grau de formalização e alto grau de liberdade e flexibilidade nas escolhas dos horários de trabalho e do próprio ritmo de produção. Essa frase, no entanto, parece esconder outros significados importantes, como, por exemplo, que a desvalorização do trabalho como empregado de outrem tem relação com um histórico pessoal de exploração. Sempre que ouvida, ela me pareceu servir como uma justificativa prévia, daquele tipo que é construída depois de muito ter que responder à mesma questão, quanto ao modo de vida indígena na região. A valorização da liberdade, a escolha do melhor horário, do melhor dia e até da melhor época do ano para dedicar‑se às atividades produtivas é uma forma de os Pataxó reagirem aos freqüentes questionamentos a eles direcionados, pela sociedade regional, juntamente com as categorias acusatórias usualmente dirigidas a povos indígenas, tais como indolentes e preguiçosos, entre outras. Essa situação, tal como procurarei demonstrar, reflete a construção de um modo de vida em que outras relações e atividades são sobrevalorizadas em relação à ética do trabalho que supostamente vige na sociedade “dos brancos”, e cuja finalidade clara é prover sustento e não, contrariamente, constituir o sustentáculo ideológico de um modo de vida. Embora seja relevante salientar que as atividades econômicas, o conhecimento tido como tradicional nelas empregado e sua transmissão sejam importantes sustentáculos ideológicos da sociedade, em sua definição de tradição, o que pretendi afirmar anteriormente foi que a ética do trabalho em si não é valorizada. O trabalho só tem sentido para os Pataxó como meio, por um lado de sobrevivência e, por outro, de transmissão e elaboração da tradição, isto é, o trabalho nunca é justificado por si só como edificante, como a ideologia das sociedades ocidentais faz supor que nelas seja. Deste modo, exercer certo trabalho é menos importante do que o modo como ele é exercido. A forma de exercer determinada atividade, consoante a prática tida por tradicional, é que é decisiva para o valor que se atribui ao trabalho. Ademais, a valorização de uma rotina flexível de trabalho pode ser considerada característica de populações organizadas por regimes de produção baseados em ciclos naturais como demonstra Woortman (1967) a respeito tanto de índios quanto de camponeses no Brasil. 2. A pesca Os GD´s dedicados à pesca exercem essa atividade como exclusiva ou complementar à produção e comercialização de artesanato. São poucos aqueles que praticam a pesca em conjunto com a roça, dada a dificuldade de conciliar o tempo necessário à execução dos dois tipos de atividade econômica. PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural. 13 (1). 2015 ISSN 1695-7121 134 “O Índio não gosta de ficar cativo” A pesca exige longos períodos de afastamento da residência por parte de um ou vários membros do GD, dificultando o plantio e cultivo sistemático de roças, salvo o eventual cultivo de algumas árvores frutíferas, tal como encontrei no único caso dos 7 (sete) GD´s predominantemente dedicados à pesca que participaram do levantamento. Destes mesmos 7 (sete) GD´s, 4 (quatro) exerciam complementarmente a atividade artesanal. Nesses casos, os componentes que não participam das atividades de pesca, as mulheres e as crianças até os 12 anos, é que são os responsáveis pela atividade artesanal. Deste modo, a pesca exerce nestes GD`s um papel de complementaridade com a atividade turística. Em alguns o resultado econômico predominante advém da pesca e em outros do turismo, mas as atividades são co‑dependentes em relação aos períodos de dedicação e aos membros da família empregados. Entre os GD´s dedicados à pesca há 4 (quatro) modalidades diferentes da atividade. São elas: a pesca com embarcações em alto‑mar, utilizando redes de arrasto1; a pesca artesanal realizada na maré baixa com latas de ferro e tochas2; a pesca com redes de armação, praticada em maré seca3; e a pesca em alto mar com mergulho, utilizando ou não equipamentos de respiração artificial4. Para além dessas modalidades de pesca, pratica‑se ainda em Coroa Vermelha a coleta de frutos do mar, na maré baixa. Em relação ao primeiro tipo, a pesca com embarcações em alto‑mar, há dois tipos de praticantes que se diferenciam em função da propriedade ou não da embarcação. Dos 7 (sete) GD´s pesquisados, apenas dois possuem embarcações. Essa situação pode ser proporcionalmente representativa do conjunto da aldeia, pois o número de pataxós proprietários de embarcações é, de fato, muito pequeno em toda a aldeia. Para os que possuem embarcação, a pesca em alto‑mar é, está claro, muito mais produtiva, uma vez que não há necessidade de divisão proporcional dos resultados da pesca. Para aqueles que não possuem embarcações, a pesca é realizada em barco alheio, havendo a divisão proporcional dos resultados da pesca: o proprietário do barco retém um mínimo de 50% do lucro líquido, retirados gastos com combustível e outros gastos operacionais, do que é pescado. Essa modalidade de pesca de alto‑mar é realizada, geralmente, com um número mínimo de 5 (cinco) tripulantes por embarcação, o que, a depender do arranjo realizado em cada situação, faz com que os 4 (quatro) tripulantes restantes tenham que dividir entre si 50% ou menos dos resultados obtidos. Essa condição reflete‑se nos números financeiros absolutos da atividade. Enquanto um proprietário de embarcação que pesca em família pode obter, de acordo com o levantamento, até R$ 3.000,00 (três mil reais) por saída ao mar, para os que não possuem embarcação esse valor pode girar em torno de R$ 250,00 (Duzentos e cinqüenta reais) a R$ 350,00 (Trezentos e cinqüenta reais) nas épocas de baixa e até R$ 500,00 (Quinhentos reais) nas épocas de boa pescaria. Nesses dois últimos casos, a pesca pode ser caracterizada como uma atividade de mera subsistência e adicionalmente precária. Por essa razão, inclusive, é que grande número daqueles que fazem pesca de alto‑mar sem possuir embarcação própria, praticam, quando não embarcados, outros tipos de pesca na maré baixa. Pescador antigo em Coroa Vermelha Sr Liberato relata sobre essa questão, “na pesca é assim, quando é época, tem fartura de comida na mesa, quando não é...passa fome.” Embora vista como prática tradicional e como saída econômica viável, dada a localização costeira da aldeia, a pesca é vista como alternativa das mais áridas para a sobrevivência local e costuma ser praticada pelas famílias em condição financeira mais precária. Ainda assim, a atividade é praticada e defendida com orgulhos pelos pescadores Pataxó, que vêem a si mesmo como mantenedores da tradição, inclusive por dispor‑se ao trabalho árduo e com precária tecnologia, tida como característica dos “tempos antigos”. Nesse sentido, há inclusive significativa valorização dessa categoria de trabalhadores entre todos os índios da aldeia. Não raramente são apontados como exemplos por outros índios, sempre tendo em conta a percepção de que preservar a pesca significa preservar a tradição. Além da questão da propriedade dos barcos, há, entre os proprietários, a prática complementar do comércio direto do pescado. Assim, os dois GD´s que participaram do levantamento e possuem embarcação própria são também donos de peixarias em Coroa Vermelha. Essas peixarias vendem, geralmente, para os próprios índios, mas eventualmente podem vender também para turistas e participar da atividade turística fornecendo pescado a proprietários de quiosques de praia e restaurantes da região. É através das peixarias que é possível, para os donos de embarcação, manterem, mesmo fora do período de pesca, um rendimento significativamente mais alto do que o daqueles que não possuem embarcação. No entanto, essa atividade, como quase todas as outras em Coroa Vermelha, tem variação relevante de acordo com a sazonalidade da atividade turística, justamente porque tanto a venda para os próprios índios em Coroa Vermelha, quanto para turistas e/ou provedores de serviços turísticos, depende do ritmo da “temporada” turística. A respeito do faturamento das peixarias, os proprietários asseguram conseguir um faturamento mínimo semanal em torno de R$ 500,00, mesmo nos períodos de baixa temporada turística e/ou fora da época de pesca. PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural. 13 (1). 2015 ISSN 1695-7121 Sandro Campos Neves 135 Os outros tipos de pesca são realizados comumente como atividades complementares à própria pesca de alto‑mar ou à atividade artesanal. Os dois tipos realizados em maré baixa são considerados os mais tradicionais. Em relação ao assunto, seo Liberato afirma que no tempo “dos índios antigos” não se pescava em embarcações e que a prática só se tornou mais comum depois que houve o deslocamento para Coroa Vermelha. Embora existam relatos de pescaria desde os tempos de Barra Velha5 (CARVALHO, 1977), com embarcações, as saídas para alto‑mar, consideradas mais produtivas, são atribuídas à vivência em Coroa Vermelha. A pesca de maré baixa é praticada sob duas formas principais entre os Pataxó em Coroa Vermelha. A primeira delas é mediante o uso de rede de armação: são armadas redes de pesca próprias para a atividade, na praia, durante a noite, quando a maré começa a subir. As redes são sustentadas geralmente por pedaços de madeira esticados em uma faixa de 1 (um) a 2 (dois) metros. Retorna‑se às redes no fim da madrugada ou nas primeiras horas. Segundo o levantamento realizado entre os pescadores o segundo tipo de pesca é realizada nas horas da madrugada imediatamente anteriores ao nascimento do sol, quando a maré está baixando, para recolher os peixes que permaneceram presos na rede. Aproveita‑se a maré em transição de alta para baixa da beira da praia para montar armadilhas, utilizando‑se latas de ferro e fogo abastecido a querosene como iluminação necessária à realização da pescaria de pequenos peixes. Os resultados são pouco significativos em termos econômicos, de modo que os pescadores não foram capazes de precisá‑los em quilos ou pecuniariamente, o que torna claro se tratar de pesca exclusivamente para subsistência. A pesca é uma atividade de expressão reduzida na aldeia de Coroa Vermelha tanto em relação ao número de GD´s que nela se envolvem de maneira mais sistemática, quanto em relação a seus resultados financeiros. Por essa razão é que considero apropriado analisá‑la como atividade praticada como complemento de outras, sobretudo pelos pescadores que não possuem embarcação. Embora aqueles diretamente envolvidos a tenham como atividade quase exclusiva, dada a dedicação de tempo requerida, sobretudo a de alto‑mar, os GD´s usualmente possuem ao menos uma outra atividade. Além disso, os pescadores eventualmente se engajam em outras atividades mais lucrativas, quando surgem oportunidades. Entre essas outras atividades, algumas destacadas entre os pescadores são a construção civil, trabalhos com turismo em Coroa Vermelha e outras ocupações propiciadas pela FUNAI6 e, ou, FUNASA7. No entanto, todos esses trabalhos são vistos como ocupações temporárias, aos quais se costuma recorrer por falta de melhor opção. José Carlos, um dos pescadores que participaram do levantamento, relata já ter trabalhado como motorista para a FUNAI e para a escola indígena. Ele afirma que, inclusive, ganhava mais dinheiro com essas funções, mas que prefere sempre trabalhar com a pesca ou com o artesanato por conta própria porque “não gosta de viver cativo”. Quando solicitei maiores explicações sobre o que seria viver cativo, disse que não gostava de ficar preso a horários ou receber ordens de terceiros sobre como fazer o seu trabalho. «Sei fazer meu serviço, não precisa ninguém ficar me dizendo o que tenho de fazer, por isso eu prefiro trabalhar sozinho, porque eu escolho a que horas tenho que fazer as coisas […] às vezes também, quando você trabalha nessas coisas de ter chefe, se precisar fazer alguma coisa para mulher ou se precisar viajar, ver os parentes, tem que ficar preso ao horário do chefe, fica na dependência do outro pra fazer suas coisas, não gosto de viver assim.» Conforme comentado inicialmente essa não foi a única vez que ouvi a expressão “índio não gosta de viver cativo”, enunciada por distintos sujeitos e em situações diversas. Trata‑se de uma expressão de uso local relativamente corrente, que traduz uma percepção a respeito de um modo de vida avaliado negativamente. Ser Pataxó em Coroa Vermelha significa reproduzir‑se (biológica e socialmente) dentro de um contexto de condições específicas para as quais, embora se viva em situação de constante pressão em relação à subsistência, o trabalho não constitui o núcleo do sentido da vida. Viajar para visitar os parentes em outras aldeias, viagens que podem requerer um ou mais dias, ou podem levar meses, cuidar dos familiares e mesmo se envolver em atividades do movimento indígena, como as retomadas8 (ASSIS, 2004), são compromissos que podem implicar a paralisação das atividades produtivas. A eles se confere importância maior do que à acumulação de bens ou mesmo às atividades de subsistência, em certos casos, uma vez que há sempre a expectativa de contar com a rede de solidariedade dos próprios parentes para suprir as demandas de subsistência quando há outras necessidades tidas por mais prementes. Parece ser justamente a alimentação dessa rede de solidariedade, representada pelas relações de parentesco, uma das mais fortes instâncias a sobrepujar em importância a atividade econômica cotidiana. PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural. 13 (1). 2015 ISSN 1695-7121 136 “O Índio não gosta de ficar cativo” As atividades de pesca, não estão entre as mais produtivas para os Pataxó de Coroa Vermelha. No entanto, gozam de um status extremamente importante no que diz respeito à sua relação com a tradição. Tanto para pescadores quanto para outros índios da aldeia de Coroa Vermelha a atividade guarda relação fundamental com a tradição indígena. A fabricação de redes, a prática das modalidades de pesca mais artesanais ligadas aos ciclos da maré e mesmo a prática da pesca em embarcações no alto‑mar são valorizadas como atividades de ensino e transmissão da tradição aos mais jovens. Todos os pescadores abordados no levantamento ou em outras ocasiões manifestaram essa posição. Por essa razão, além da questão econômica propriamente dita, é que se criou em Coroa Vermelha uma cooperativa de pescadores indígenas. Essa cooperativa, nas palavras de Seo Benedito, serve tanto para “ajuntar” os pescadores indígenas da Coroa Vermelha “na hora de pescar e vender o pescado”, quanto para “não deixar morrer a tradição da pesca”. A última parte da afirmação remete, de forma simbólica, a um conflito geracional que será tratado ao longo da discussão a respeito de todas as atividades econômicas da aldeia de Coroa Vermelha. Para os mais velhos da aldeia, a atual geração, embora tenha sido beneficiada pela facilidade de acesso à escola, tendo escola própria na aldeia, melhor alimentação, serviços de saúde e um conjunto de outros benefícios ligados à ideia de qualidade de vida, não tem interesse pelo trabalho e, portanto, não cultiva as tradições indígenas. São vários os relatos, conforme atesta o trabalho de Miranda (2009), de adultos e idosos em Coroa Vermelha queixando‑se de que, se no passado as condições de vida os obrigavam a trabalhar desde a infância para ajudar a família, era através do trabalho que aprendiam as coisas da vida, a tradição. Atualmente há um questionamento ao modo de vida dos mais jovens, considerado “muito relaxado”. Ademais, porque “não querem saber de nada”, também não aprendem e exercitam a tradição indígena. Essa situação se reflete na formulação de uma queixa a respeito do cuidado, não observado pelos mais jovens, com as tradições ligadas às diversas atividades econômicas, não sendo diferente com a pesca. Seo Benedito afirma que “hoje em dia é difícil arrumar um ajudante pra pesca, se você perguntar a um desses meninos se ele quer ganhar um dinheirinho e ajudar a fazer a uma rede de pesca para aprender, eles não querem. Nem meus filhos querem.” Dessa forma, os mais velhos pressupõem haver desinteresse, por parte dos mais jovens, pelas atividades tradicionais de trabalho e subsistência, e, por outro lado, grande expectativa de melhoria de vida. Tal expectativa é proporcionada, de um lado, pelas novas positivas condições educacionais, com alguns índios ascendendo às universidades públicas do estado, e de outro, em relação às possibilidades de subsistência decorrentes das atividades turísticas, consideradas por muitos como mais leves. Nas palavras de Seo Benedito: […] eu acho certo os menino quererem estudar, porque é isso que vai dar uma condição melhor para eles, mas eles não estudam o dia inteiro, podiam ajudar um pouco a trabalhar com as coisas da pesca. Assim eles vão aprendendo as coisas e, se precisar um dia, ele sabe fazer alguma coisa, então não passa necessidade. Quem sabe trabalhar, de fome não morre […] O conflito geracional estabelecido tem relação direta com a questão da manutenção da tradição. Para os mais velhos, a manutenção do modo de vida depende do ensino, transmitido através do trabalho concreto, nas diversas atividades econômicas, e do recíproco aprendizado dos modos próprios de fazer. Vale observar que estou considerando tradição como “ação culturalmente apropriada” (TOREN, 1988 p.712 minha tradução). Cristina Toren demonstra, em sua análise do contexto fijiano, que a noção de tradição deve ser analisada a partir de seu significado local, isto é, o que os fijianos consideram “a maneira local de fazer”. Procurarei demonstrar, ao longo da análise que será desenvolvida acerca das atividades econômicas e sua relação com a tradição, que essa concepção pode ser aproximada a algumas formas de pensar a tradição entre os Pataxó. 3. A agricultura A agricultura é considerada, entre os Pataxó, a atividade econômica mais tradicional. De acordo com esse discurso, os índios de Barra Velha, no período de isolamento enfrentado sobreviveram graças ao plantio de roças realizado na aldeia. Segundo o mesmo discurso, a roça é, então, a atividade econômica que demarcou, preliminarmente, a indianidade Pataxó. Se atualmente procura‑se a tradição no artesanato, foi a roça o critério utilizado anteriormente. PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural. 13 (1). 2015 ISSN 1695-7121 Sandro Campos Neves 137 No entanto, na Coroa Vermelha atual a roça não está entre as atividades mais importantes, estando estas ligadas ao turismo. Embora um número consideravelmente grande dos GD`s ‑‑ 10 (Dez) dos 31 (Trinta e um) que participaram do levantamento ‑‑ tenha afirmado fazer algum tipo de agricultura, pode‑se perceber, na quantificação dessa atividade, que ela é utilizada complementarmente à produção e comercialização do artesanato. Além disso, importa destacar que a agricultura é bastante variada, não havendo especialização em nenhum gênero que possa ser destacado como indicativo de que se venda algo do excedente, admitida a existência de excedente. Nenhum dos GD´s entrevistados afirmou ter como atividade principal a agricultura. Basicamente, as roças são plantadas com o intuito de atender às necessidades da subsistência nos períodos em que, eventualmente, o artesanato não seja suficiente. Os tipos de roça plantados são de características variadas. A região da aldeia onde as roças têm importância destacada estende‑se da região conhecida como “do campo” até o bairro do Karajá. A região mais próxima à praia, como já relatei, é dominada pelo artesanato e pesca, havendo menor índice de plantio de roças. Colabora para essa situação o tipo de solo que no entorno da praia é menos propício ao plantio, bem como os tipos de habitação. No bairro do Karajá, sobretudo, mas também em menor escala na região “do campo”, as casas possuem quintais maiores, maior área livre em relação à área construída, com o intuito mesmo de liberar espaço do quintal para o plantio. Esse tipo de construção é mais extensamente possível no bairro do Karajá, pois existe uma menor pressão e disputa pelo espaço do que na região da praia. Na praia, em função da proximidade com o centro turístico e da necessidade de maior parte dos índios de viverem do comércio de artesanato, a disputa pelo espaço é maior e as habitações consequentemente restringem‑se à área construída, faltando, assim, o espaço que poderia ser utilizado para o plantio, que é ocupado por outra residência contigua ou semi‑contígua. Essa configuração está, pois, relacionada fortemente à estruturação econômica do território. Algumas das famílias mais antigas que chegaram à Coroa Vermelha se estabeleceram na região de praia do entorno do centro de artesanato. Essa situação deixou como alternativas às famílias que chegaram posteriormente o bairro do Karajá e a região do campo, mais distantes do centro de artesanato, obviamente com exceções. Também as famílias mais antigas são as proprietárias de lojas de artesanato, deixando às famílias instaladas posteriormente outro gênero de comercialização de artesanato, que abordarei a seguir. Assim, como o tipo de comércio praticado sem a propriedade de uma loja é menos eficaz para prover o sustento, encontram‑se outras saídas, que podem ser a pesca ou a agricultura, bem como outras ocupações formais ou informas na própria aldeia ou nas cidades de Porto Seguro e Santa Cruz Cabrália. Em relação ao tipo de plantio que se faz na aldeia, o mesmo apresenta‑se bastante variado, cingindo‑se, no entanto, aos cultivos mais utilizados. Em primeiro lugar estão feijão, mandioca (macaxeira), milho, quiabo, alface e couve. Logo a seguir vem o plantio de frutas, geralmente de árvores frutíferas comuns na região, tais como mamão, banana, cacau, abacaxi e laranja. Para a complementação da alimentação são geralmente comprados o arroz, a carne, peixes e/ou frutos do mar. De todos os GD´s que participaram do levantamento apenas um realiza, combinadamente, pesca, agricultura e artesanato, sendo, porém, a pesca a atividade principal. O tipo de roça praticado pelos Pataxó em Coroa Vermelha compõe‑se, em todos os casos observados, de uma área livre de construção ou de utilização residencial que pode variar entre 4 (quatro) e 12 (Doze) ou mais metros quadrados. Nessa área, geralmente predominam as árvores, frutíferas e/ou produtoras de matéria‑prima para o artesanato. Entre as árvores, a depender da maior ou menor necessidade de exposição ao sol, são encaixadas as fileiras de plantios de verduras e leguminosas como alface, couve e quiabo. Em algumas casas existe ainda o plantio de mandioca (macaxeira), realizada na parte mais distante da residência e geralmente mais próxima à área de mata que, usualmente, circunda as plantações. O trabalho na roça é geralmente praticado pelo adulto mais velho da casa. Trata‑se de uma atividade apreciada pelos mais velhos, muito provavelmente por ser uma ocupação à qual sempre se dedicaram, com maior ou menor regularidade, ademais de exigir um esforço relativamente menor do que outros tipos de atividade, tais como a pesca e a confecção de artesanato de madeira, que envolve maquinário. O conflito geracional mencionado na atividade pesqueira também se manifesta na atividade agrícola. Os mais velhos questionam as gerações mais jovens, usualmente aquelas em idade escolar, a respeito não exatamente da sua frequência à escola, mas da destinação que dão ao tempo livre fora da escola, no qual não está incluída a realização das chamadas atividades tradicionais, o que compromete a sua reprodução. A esse respeito Seo Manuel Siriri, um dos mais antigos moradores da região e conhecido pelo plantio variado da sua roça, queixa‑se que os mais jovens; “não querem aprender a fazer roça, porque tem outras coisas que chamam mais a atenção deles”. De acordo com a sua percepção, isso seria ruim porque “perde os conhecimento que nós temos da roça, das plantas.” Em relação ao assunto, Capimbará, que há alguns anos desenvolve, entre os alunos da escola, um trabalho que ele define como PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural. 13 (1). 2015 ISSN 1695-7121 138 “O Índio não gosta de ficar cativo” “de preservação ambiental” e que se caracteriza por buscar repassar o conhecimento sobre as plantas, menciona que “não só os alunos, mas hoje em dia os professores da escola não sabem nada das plantas, não sabe ensinar aos alunos, porque eles mesmos não sabem”. Essa questão, que se manifesta em relação também ao artesanato, a qual tratarei logo a seguir, parece apontar para o suposto de que a maneira como se tem encarado, atualmente, a idéia de infância e juventude entre os Pataxó tem mudado significativamente. Miranda (2010) demonstrou, em seu trabalho, o desacordo que ocorre em relação ao aprendizado das principais atividades econômicas. Para ela, sendo esse um fundamento do processo de socialização indígena, o abandono que ele sofre dos mais jovens é sentido pelos mais velhos como abandono da tradição. Essa situação demonstra relação com a massificação da ideologia, por parte de instituições como UNICEF e outras, dedicadas à erradicação do trabalho infantil, de que “criança é para brincar”. No entanto, essa filosofia se revela bastante contraditória com a tradição Pataxó, na qual colaborar com o trabalho adulto é um dos principais instrumentos de educação e socialização das crianças através das quais se aprende a cultura Pataxó. Os gêneros plantados, como se pode perceber, são os mais comuns na dieta local, havendo grande variedade e pequena quantidade. Os Pataxó que participaram do levantamento tiveram grande dificuldade em quantificar o que colhem das roças, o que suponho constituir mais um indício de que a totalidade do que se planta é usada para a alimentação do próprio GD ou do grupo familiar mais próximo. Assim é que caracterizo o plantio de roças com uma atividade de subsistência voltada, ao mesmo tempo, para o exercício da socialidade, tanto aquela praticada no âmbito mais estrito do parentesco quanto da entreajuda na comunidade. Assim, o plantio de roças é uma das formas emblemáticas da socialidade local. É bastante comum que daquilo que é plantado, grande parte seja dividida com os parentes mais próximos residentes na aldeia, pelo que são comuns as trocas e visitas entre parentes, com o intuito de compartilhar gêneros alimentícios colhidos na roça da família. Essa é, inclusive, uma estratégia de manutenção da variedade à mesa. Em um dos casos que presenciei durante a pesquisa de campo, uma família, que plantava grande quantidade de árvores frutíferas, trocava constantemente, com primos residentes no próprio bairro do Karajá, frutas por alguns legumes que não plantava, tais como quiabo e alface. Em outro caso, uma família que possuía grande roça abastecia os parentes mais próximos com todo tipo de gênero alimentício proveniente da roça da família, i.e., legumes, verduras e frutas. Essa situação de praticamente prover alimentação para outra família ocorria porque a primeira, que plantava grande roça, considerava a segunda, dedicada a uma atividade artesanal de pequeno porte, menos favorecida e que “precisa alguém dar comida para eles, porque não tem condição”. Essa é outra dimensão da importância simbólica que se atribui à roça: além de ser ela considerada a primeira atividade sistemática de subsistência dos Pataxó, se lhe atribui, atualmente, o papel de mantenedora de um nível nutricional mínimo para todas as famílias. Mesmo as famílias que não plantam, eventualmente por alguma dificuldade momentânea ou por se dedicarem a outra atividade, recebem dividendos da roça dos parentes, formando, assim, uma rede de solidariedade e entreajuda. 4. A produção doméstica do artesanato e as oficinas Todo o conjunto de atividades analisados até aqui, incluindo o que se seguirá, é fundamental para compreender o funcionamento da atividade turística para os Pataxó em Coroa Vermelha. Tendo em vista sua sazonalidade, bem como as dificuldades no que diz respeito à geração de novos postos de trabalho, dada a relativa estagnação no crescimento do destino Porto Seguro de modo geral, os Pataxó, embora em muitos casos desejassem viver apenas do turismo precisam exercer outras atividades econômicas. Não obstante, tais atividades exercem um papel essencial na visão dos índios sobre a manutenção da tradição, o que, de certo modo, justifica o interesse turístico nos índios da região. Isto é, paradoxalmente, muitos desejam viver do turismo, mas acreditam que sem a manutenção da tradição, implicada no exercício das outras atividades, o turismo seja inviável, pois “os turistas não iam se interessar em conhecê‑los”. Em relação à produção do artesanato apresentarei, a seguir, dados relativos ao levantamento realizado. Dele fizeram parte os dados apresentados sobre pesca e roça, referem‑se ao levantamento entre GD´s da aldeia e foi realizado com o intuito de compreender as principais atividades econômicas e como se organizam na aldeia9. Procurarei, ao longo desta seção, à medida que apresento os dados, abordar essa diferenciação e explicar não apenas sua razão de ser, mas também as condicionantes que ela estabelece para a economia local. Tratarei, primeiramente, do artesanato produzido pelos diversos GD´s de diversos pontos da PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural. 13 (1). 2015 ISSN 1695-7121 Sandro Campos Neves 139 aldeia, reunindo dados relativos a GD´s da região do centro de artesanato, do campo e do bairro Karajá. Em seguida, tratarei do artesanato produzido e, principalmente comercializado, pelos proprietários de lojas no centro de artesanato. Dos 31 (Trinta e um) GD´s que participaram do primeiro levantamento, 24 (Vinte e quatro) descreveram como principal atividade econômica o artesanato, ao passo que, tal como visto, os 7 (sete) restantes caracterizaram como sendo a pesca, nenhum identificando a roça como atividade principal. Obviamente, desses 24 (Vinte e quatro) nem todos se dedicam apenas a essa atividade, havendo 10 (Dez) que também plantam roça e 1 (um) que se dedica às três, tendo como atividade principal a pesca, daí haver sido contabilizado entre os 7 (sete) que afirmam ter na pesca a atividade principal. No entanto, o fato de 10 (Dez) afirmarem fazer também o plantio de roças demonstra, para além da posição privilegiada que se atribui à roça, a necessidade de complementação da renda. Essa situação contrasta com a da maior parte dos proprietários de lojas no centro de artesanato, como será visto, já que esses parecem tê‑las como atividade exclusiva na quase totalidade dos casos. Dessa forma, os GD´s entrevistados no primeiro levantamento dos 31, são em grande maioria, mas com exceções, não proprietários de lojas. Esse quadro, verificado com mais frequência no bairro Karajá e na região do campo, é resultado da situação, já destacada, do crescimento da aldeia que tornou impossível que todos tivessem acesso às lojas. Ainda assim, entre aqueles que não tiveram acesso às lojas, a maior parte vive do artesanato. Essa situação colaborou, como demonstrarei a seguir, para uma especialização dos proprietários de lojas que, atualmente, se transmutam em revendedores do artesanato produzido por outras famílias e possuem uma produção própria bastante pequena. Em relação ao levantamento realizado nos GD´s, dos 24 (Vinte e quatro) que têm no artesanato a atividade principal, apenas 5 (Cinco) eram proprietários de lojas. Os 19 (Dezenove) restantes produziam para a revenda de terceiros ou para a venda na praia. A venda de artesanato de forma ambulante, na praia, tem se tornado cada vez menos efetiva, posto que os turistas preferem comprar no centro de artesanato e, frequentemente, manifestam incômodo com a abordagem para a compra do artesanato na praia. Ainda assim, dos 19 (Dezenove) GD´s, nada menos do que 15 (Quinze) disseram vender alguma parte de sua produção na praia. No entanto, essa parte ali vendida torna‑se cada vez menos significativa para a subsistência doméstica, ao passo que a comercialização para revendedores cresce em importância. Desses 15 (Quinze) produtores, 14 (Quatorze) afirmaram que a maior parte da renda procede da venda para revendedores indígenas ou não. Todos os 14 (Quatorze) vendem para comerciantes indígenas, mas 8 (Oito) afirmaram ainda ter como maiores clientes comerciantes não indígenas. Esses comerciantes, inclusive, não seriam apenas da região de Porto Seguro e Santa Cruz Cabrália como supus a princípio, mas de diversas regiões do estado, tais como Salvador, Vitória da Conquista e Teixeira Freitas, como de outros estados, aparecendo em alguns casos Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro. Suponho que essa rede poderia ser ainda mais desdobrada, mas os entrevistados para o levantamento não manifestaram grande interesse por saber para onde o artesanato era escoado depois de remetido aos compradores. Em geral remetem quantidades significativas de artesanato, através dos correios ou por transporte fretado, aos mesmos compradores, fregueses frequentes. Usualmente, na contratação de transportes fretados, os compradores se encarregam das despesas. Essa situação colaborou para que eu procurasse compreender sob quais formas se organiza, dentro da aldeia de Coroa Vermelha, essa produção que começa a ser comercializada para fora da aldeia. Quando cheguei a Coroa Vermelha supunha que a totalidade do artesanato produzido na aldeia o fosse nos GD´s através do trabalho apenas manual e com a participação apenas dos cohabitantes de cada casa. À medida que me aprofundava na pesquisa de campo e com o auxílio desse primeiro levantamento, comecei a perceber que havia uma produção bastante significativa realizada, cada vez mais, com a participação de diversos GD´s. O maior símbolo dessa nova modalidade de produção, em oposição à modalidade anterior e bastante reduzida relatada por Carvalho (1977) ou mesmo à produção mais significativa relatada por Grunewald (1999), é a oficina. Encontrei, durante o período de campo, a totalidade 8 (Oito) oficinas de porte médio, excluída a grande oficina organizada pela associação de artesãos de Coroa Vermelha e as mais de 30 (Trinta) pequenas oficinas encontradas em casas de artesãos para fabricação da produção individual. Todos os 24 (Vinte e quatro) artesãos dos GD´s entrevistados possuem, em casa, pequenas oficinas compostas por uma lixadeira elétrica e, em alguns casos, até de um torno para a fabricação de gamelas. As pequenas oficinas destinam‑se à produção do artesanato em madeira como gamelas, petisqueiras, conchas, garfos e inúmeras miudezas, que serão descritas, em maior detalhe, quando relatar a comercialização nas lojas. Produzidas em pequeno número, essas peças de madeira são comercializadas individualmente com indígenas proprietários de lojas, no centro de artesanato ou com outros lojistas de Coroa Vermelha PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural. 13 (1). 2015 ISSN 1695-7121 140 “O Índio não gosta de ficar cativo” e na região do campo. As pequenas oficinas são o motor da produção artesanal da Coroa Vermelha atual e superam, largamente, em importância a produção manual de outros artesanatos, tais como colares, pulseiras, brincos e cocares produzidos de matéria‑prima local, a exemplo de sementes e penas. Além dessas pequenas oficinas, existem as de médio porte que, em geral, envolvem o serviço cooperado de diversos GD´s, usualmente relacionados pelo parentesco, que pode ser estendido para além do núcleo familiar mais próximo, e produção em grande escala para os padrões locais. Identifiquei três GD´s de irmãos, incluídos aí os filhos de cada um deles e o pai, em regime de cooperação no entorno do centro de artesanato, e em outro caso, encontrado no bairro do Karajá, uma composição de 4 GD´s de tio e sobrinhos. Essas oficinas trabalham com uma produção espontânea, mas atendem também, em grande medida, encomendas grandes feitas por clientes proprietários de lojas no centro de artesanato ou de fora da aldeia. As encomendas são usualmente compostas de mais de uma centena de gamelas, petisqueiras, ou de utensílios como garfos, colheres e conchas. É bastante comum também que comerciantes indígenas recorram a essas oficinas para comprar materiais que sobraram da produção, para o atendimento de encomendas. O trabalho de produção é geralmente dividido igualmente entre os participantes, assim como os custos e os lucros. Por essa razão é que se prefere o trabalho em família, onde todos colaboram para a compra das máquinas, com os custos de produção e com o trabalho, tornando possível a divisão equânime dos lucros. Encontrei apenas uma dessas oficinas de médio porte que trabalha com a contratação de trabalho de terceiros. Naquele caso a situação era motivada pela ausência de parentes próximos na aldeia de Coroa Vermelha. Dessa forma, o proprietário da oficina era o único proprietário das máquinas e arcava com os custos da produção, ficando também com os lucros e pagando salário aos funcionários, geralmente por empreitada. Ele dedicava‑se sozinho à produção cotidiana, contratando mão de obra apenas para atender a encomendas maiores. Nas oficinas, ao mesmo tempo em que se exercita a participação e colaboração familiar, também são desencadeados conflitos. Diversas foram as oportunidades em que presenciei, assim como são diversos os relatos de brigas entre parentes em torno das questões relacionadas à oficina ou de querelas que, motivadas por fatores externos ao trabalho na oficina, influenciam, negativamente, o trabalho. As situações mais comuns são as de suspeitas relativas à distribuição dos lucros ou divisão dos custos. Como o trabalho possui um grau baixo de organização fiscal, não havendo contratos, contabilidade organizada, estabelecimento de contrapartidas da sociedade, amortização de maquinário e outras atividades comuns que cercam a produção em larga escala em nossa sociedade, subsistem também conflitos a esse respeito. Presenciei situações, por exemplo, em que tendo sido uma encomenda iniciada e depois cancelada pelos clientes, estabeleceu‑se entre os irmãos uma grande polêmica a respeito de quem era o responsável pela situação e sobre como iriam agir a respeito do que já fora produzido. Como consideravam difícil comercializar rapidamente a encomenda específica de utensílios de cozinha para outros comerciantes, brigavam pela atribuição de responsabilidade pelos custos de produção de parte da encomenda frustrada. Nesse caso, a situação acabou solucionada pela sugestão da mulher de um dos irmãos de enviarem a produção para que um tio, residente em Barra Velha, realizasse a comercialização. Acompanhei também casos em que, tendo os parentes se confrontado por questão alheia ao trabalho da oficina, nesse caso uma briga familiar envolvendo relacionamento das cônjuges de dois primos, e decididos a desfazer a pareceria, desentendiam‑se, agora, a respeito dos custos de cada envolvido no processo e como seriam devolvidos àqueles que queriam sair da parceria, os investimentos feitos. Nesse caso, o tio, responsável maior pela oficina, acabou por restituir a um deles a sua parte na sociedade, através de uma quantia que julgou satisfatória, ficando acordado que parte desse valor seria descontada dos lucros do outro primo na produção da oficina. Essas situações são usualmente, conforme os dois casos demonstram, contornadas pela própria proximidade das famílias, que encontram formas de satisfazer, ao menos parcialmente, aos envolvidos no conflito e retomar a normalidade do convívio familiar. Assim, se por um lado, em contraste com a sociedade não indígena e por força do que poderia ser caracterizado como informalidade da atividade, existe maior número de conflitos, também em contraste com a sociedade não indígena os conflitos são mais rapidamente resolvidos, em geral com maior nível de satisfação entre as partes, em decorrência das relações de parentesco. A solidariedade, por outro lado, é também fortemente exercitada nas oficinas através do trabalho. Não apenas se estabelece solidarie-dade em torno dos compromissos assumidos com encomendas e com o serviço cotidiano, mas também porque nas oficinas sempre há vagas para um parente em condição econômica precária e que precisa, prementemente, trabalhar, bem como há boa vontade entre os participantes para ajudar financeiramente os parentes em apuros financeiros. Além disso, essa atividade mantém uma complementaridade forte com a atividade das roças, havendo parentes que não estando dedicados à oficina familiar, colaboram PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural. 13 (1). 2015 ISSN 1695-7121 Sandro Campos Neves 141 com os GD´s através do fornecimento de gêneros alimentícios colhidos de sua roça. Esse oferecimento costuma ser retribuído com colaborações financeiras, tanto para o próprio plantio, quanto para prover as necessidades da família. Em relação ao ritmo de trabalho nas oficinas, embora bastante forte, sobretudo quando existem encomendas, e também de caráter rígido no que concerne ao trabalho com a madeira, manifesta‑se a questão que resumi na expressão “índio não gosta de ficar cativo”, retirada da fala do pescador José Carlos e repetida, em algumas situações, quando eu indagava sobre o trabalho formal. Para eles, a frase constitui o resumo de um modo de vida que, como já demonstrei, enfatiza relações de parentesco, solidariedade e amizade e orienta‑se para a procura da felicidade pessoal não necessariamente vinculada ao sucesso profissional. Esse modo de vida, embora compreenda o trabalho como questão fundamental para a sobrevivência, recusa‑se a admiti‑lo, como ocorre na sociedade não indígena, como pedra de toque desse modo de vida. O papel do trabalho e as representações a ele vinculadas parecem dirigir‑se aos movimentos de exercício da tradição e manutenção e reforço das solidariedades de parentesco e sociais. Nas oficinas manifesta‑se também a questão da manutenção da tradição. Em relação ao tipo de artesanato produzido, as oficinas obviamente não se dedicam àquele artesanato ao qual se costuma atribuir o “selo” da tradição local, os colares, sobretudo, mas também pulseiras e brincos feitos de semente. No entanto, as oficinas tratam de um artesanato que se tornou tradicional por força de sua procura no circuito turístico, dado que as peças chamam a atenção de turistas e comerciantes não apenas pela beleza, mas pela possibilidade de uso prático. Obviamente, não desconsidero a visão de tradicionalidade vinculada a esse artesanato. Inclusive, alguns índios reforçam sua ligação com um momento ainda anterior aos colares, pulseiras e brincos, em que os próprios Pataxó produziam seus utensílios domésticos de matéria‑prima da mata. A respeito dessa questão, também os artesãos, nas oficinas, queixam‑se de que os mais jovens não procuram conservar essa modalidade de trabalho, preferindo entreter‑se com outras atividades, geralmente recreativas, orientadas para fora do mundo que se considera ser o do trabalho. Essa questão é tratada não apenas como uma característica negativa da geração atual, mas como um perigo para a tradição e para todo o modo de vida. Como é possível perceber, para os artesãos, está em jogo não apenas a sobrevivência, mas a conservação de um modo tradicional de trabalhar, em parceria com o grupo familiar e mediante o exercício de relações de solidariedade e entreajuda no âmbito do parentesco. 5. Conclusões Ao longo do trabalho procurei demonstrar os nexos estabelecidos entre as atividades econômicas exercidas pelos Pataxó em Coroa Vermelha e os sentidos que se atribui à tradição e ao trabalho. Os Pataxó organizam o conjunto de suas atividades econômicas em um eixo hierárquico baseado em critérios de tradicionalidade. A hierarquia resultante desse processo é compreendida de formas diferentes pelos diversos atores sociais, inclusive por sua maior ou menor ligação com elas, e identificam tradições recentes e tradições tidas como imemoriais. Todo esse conjunto de percepções sobre trabalho e tradição, no entanto, faz emergir aspectos consi-derados fundamentais do modo de vida indígena. Aspectos como o entendimento de que o trabalho é um instrumento de aprendizado e exercício da tradição, bem como o de que o mundo do trabalho não está em uma esfera hierarquicamente superior em relação à vida pessoal, antes, ele serve à manutenção e reforço das relações de parentesco e afinidade. Essas percepções permitem deslindar inicialmente a compreensão de uma sociedade estruturada de forma a priorizar relações pessoais e o exercício da vida comunitária como centro da vida social e que transforma o trabalho em instrumento para esses fins, ao contrário do que as pressões econômicas sofridas por esse povo poderiam fazer parecer, que esta fosse uma sociedade sufocada pelas pressões da subsistência. Tal pressuposição é sintetizada pelos nativos através da idealização de que não deveriam possuir trabalhos estruturados por uma rotina diária inquebrantável, traduzida na expressão “índio não gosta de ficar cativo”. Ademais disso encontra‑se a relação desta discussão com a realidade turística. O turismo se tornou uma das atividades econômicas mais importantes para os Pataxó. No entanto, por um lado a atividade não é capaz de suprir as necessidades de toda a comunidade em Coroa Vermelha ou mesmo de prover uma parte de sustento a todos, estando desigualmente distribuída em termos de emprego e geração de renda. Por outro lado, o turismo paradoxalmente depende das outras atividades econômicas, uma vez que é através delas, na visão dos Pataxó, que se mantém a tradição e, ainda na visão dos Pataxó, é esta última que pode ser considerada o grande atrativo turístico dos índios da região. PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural. 13 (1). 2015 ISSN 1695-7121 142 “O Índio não gosta de ficar cativo” Ainda que se possa dizer que a necessidade premente da sobrevivência seja uma força a submeter essa sociedade à exploração por outras, sua configuração permite, por exemplo, desconstruir a perspectiva ocidental que toma por natural a acumulação capitalista de bens como finalidade última. Se os bens possuem sentido para os Pataxó é unicamente em sua qualidade de mecanismos mediadores de relações sociais tidas como mais relevantes. Da mesma forma, se o trabalho tem um sentido para os Pataxó é principalmente por sua qualidade de mantenedor da tradição e instrumento de socialização. Assim, a compreensão dos sentidos do trabalho permite compreender uma sociedade que poem a funcionar os objetos das sociedades ocidentais em seu sistema social com base em uma cosmologia local que deles se apropria, promovendo a indianização do mundo dos brancos. Bibliografia Bussab, W.O.; Morettin, P.A. 1987. “Estatística Básica.” 4ª Edição. Atual Editora. São Paulo, SP. 1987. Carvalho, M. R. G. 1977. “Os Pataxó de Barra Velha: seu subsistema econômico”. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós‑Graduação em Ciências Sociais, UFBA, Salvador. Carvalho, M. R. G. & Sampaio, J. A. L. 1992. “Parecer sobre o Estatuto Histórico‑Legal das Áreas Indígenas Pataxó do Extremo Sul da Bahia.” Salvador, 20 p. Chayanov, A V. – 1966. “The Theory of Peasant Economy”. The American Economic Association, Homewood‑Ilinois. Kohler, F. S/D. “Uma Gênese Pataxó: o massacre de 51”. Sem indicação de referência da publicação. Miranda, S.S. 2006. “A construção da identidade Pataxó: práticas e significados da experiência cotidiana entre crianças de Coroa Vermelha.” Trabalho de Conclusão de Curso, Universidade Federal da Bahia, Salvador. Miranda, S.S. 2010. “Aprendendo a Ser Pataxó: um olhar etnográfico sobre as habilidades produtivas das crianças de Coroa Vermelha, Bahia.” 244f. 2009. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós Graduação em Antropologia, Universidade Federal da Bahia, Salvador. Neves, S.C. 2011. “Produção, Circulação e Significados do Artesanato Pataxó no Contexto Turístico da aldeia de Coroa Vermelha, Santa Cruz Cabrália‑BA.” Pasos. v.9(3) Special Issue p. 45‑58. Sahlins, M. 1978. “Stone Age Economics.” Tavistock Publications, London. Sampaio, J. A. L. 1996. “”Sob o signo da cruz.” Relatório circunstanciado de identificação e delimitação da terra indígena Pataxó de Coroa Vermelha.” Salvador. Toren, C. 1988. “Making the present, revealing the past: The mutability and continuity of tradition as process.” In: Man, New Series, v.23 n.4 Royal Anthropologic Institute of Great Britain and Ireland, pp.696‑717. Woortmann, K. 1967. “Grupo Doméstico e Parentesco num Vale da Amazônia.” Revista do Museu Paulista, Nova Série, Vol. XVII: 209 ‑377. Notas 1 Trata‑se do tipo de pesca com embarcações em que os pescadores procuram um ponto específico em alto mar para atirar as redes e após aguardar o tempo necessário para o aprisionamento dos mesmos arrastam a rede por alguns metros de forma a tornar possível puxar os peixes para dentro da embarcação, normalmente através de algum tipo de grua, mas em muitos casos utilizando apenas a força humana. PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural. 13 (1). 2015 ISSN 1695-7121 Sandro Campos Neves 143 2 Nesse tipo de pesca se utiliza o momento de maré baixa, durante a madrugada, para ir até a praia e construir uma armadilha utilizando latas de ferro de modo que seja possível capturar peixes retidos pela maré. 3 Nesse caso se utiliza também o período de maré baixa, nas partes mais secas da praia, para armar redes com objetivo de capturar também peixes retidos na maré, trata‑se de um tipo alternativo do mesmo mecanismo da forma de pesca anterior. 4 Este último tipo refere‑se à pesca em embarcações em alto mar, mas com o mergulho dos pescadores, é aquela praticada de forma mais restrita. 5 A aldeia Pataxó de Barra Velha é considerada o território original dos Pataxó atuais, chamada de aldeia‑mãe. Trata‑se da região em que no século XIX os Pataxó foram aldeados, no contexto da dominação colonial, junto com as restantes populações indígenas da região. Do resultado das misturas culturais desses povos foi formada a população e a cultura Pataxó atual. Assim, quando remete‑se à aldeia de Barra Velha a ideia que está em jogo é do máximo de tradicionalidade Pataxó. Sobre o assunto ver mais em Carvalho (1977), Carvalho e Sampaio (1992), Sampaio (1996) e Kohler (s/d). 6 Fundação Nacional do Índio – órgão da ação indigenista brasileira. Comumente a FUNAI emprega índios para exercer as mais diversas funções relacionadas à ação indigenista – motoristas, assessores, mateiros, etc. 7 Fundação Nacional da Saúde – órgão ligado ao Ministério da Saúde, com atuação destacada entre populações indígenas brasileiras e que comumente emprega também índios em funções diversas de auxílo a suas atividades em aldeias e entre populações indígenas. 8 Refiro‑me aqui às chamadas “ retomadas” de terra. Nome pelo qual os índios designam um tipo de ação quanto ao reconhecimento de seus direitos orginários à terra, que consiste em recuperar a posse de terras tradicionalmente ocupadas pelas populações através do recurso de ocupação e resistência no território, obrigando a interferência das autoridades ligadas à questão e subsidiariamente ao estudo legal e histórico a respeito do efetivo direito indígena à posse da terra. Recibido: 24/10/2013 Reenviado: 03/05/2014 Aceptado: 03/06/2014 Sometido a evaluación por pares anónimos |
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