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© PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural. ISSN 1695-7121 Revista de Turismo y Patrimonio Cultural PAS S www.pasosonline.org Vol. 12 N.º 1. págs. 187-197. 2014 Uma aldeia milenar da Ribeira Lima: a sacralização do seu espaço paroquial Carlos A. Brochado de Almeida* Universidade do Porto Instituto Superior da Maia (Portugal) Resumo: O turismo cultural não vive só de realidades físicas, alimenta-se também da chamada cultura imaterial presente em cada recanto, em cada terra, em cada espaço geográfico. Ora a Ribeira Lima é um espaço privilegiado para analisarmos tais pressupostos, já que por aqui se entrecruzam festas e romarias com práticas outrora tidas como pagãs. O povo cristão tanto procura a romaria da Senhora da Agonia ou da Senhora da Peneda como participa activamente nas Feiras Novas de Ponte de Lima, uma realidade onde o sagrado tão bem se casa com o profano. É este mesmo povo que corre a pedir a proteção dos tauma-turgos contra a peste, a fome, a guerra e as doenças de ossos (São Sebastião, São Roque e Santo Amaro), do mesmo modo que se protege com amuletos e ervas contra bruxas e feiticeiras, dos maus olhados e dos vizinhos invejosos. É este mesmo povo que bem cedo, nos alvores do II milénio, traçou os limites das suas paróquias e tratou de as proteger, bem como às suas casas e bens com os mais diversos símbolos, uns cristãos, outros oriundos de práticas bem mais ancestrais. Qualquer paróquia da Ribeira Lima serviria de exemplo, mas escolhemos a Santa Leocádia de Geraz do Lima, do município de Viana do Castelo, porque o ano de 2013 é o milenário da sua fundação. Palavras-chave: Cultura imaterial; identidades; sistemas de representação A millennial village of Ribeira de Lima: the sacralization of its parish space Abstract: cultural tourism does not live on physical realities alone; it also feeds on the so called imma-terial culture, present on every corner, in each land, in each geographical space. Ribeira Lima is a privi-leged space to analyze such presuppositions, since here feasts and processions are blended with practices that were once considered pagan. The christian people both seeks the Senhora (Our Lady) da Agonia or Senhora da Peneda processions, and actively takes part in the Feiras Novas (New Fairs) of Ponte de Lima, a reality where the sacred is so well combined with the secular. It is this very people who hastens to ask for the protection of thaumaturges against plague, famine, war and bones’ ailments (Saint Sebastian, Saint Roque and Saint Amaro), also protecting itself with amulets and herbs against witches and sorcerers, against evil eye and envious neighbours. It was this people who, early on, at the dawn of the II Millennium, has drawn the limits of its parishes, and took steps in order to protect them, as well as its homes and property, with the most diverse symbols, some christian, some originating in far more ancestral practices. Any parish of Ribeira Lima would serve as an example, but we chose Santa Leocádia de Geraz do Lima, of the municipality of Viana do Castelo, because 2013 is the millennial of its foundation. Key Words: Immaterial culture, identities, representation systems * Professor da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e do Instituto Superior da Maia – ISMAI (Portugal); investigador principal do CEDTUR – Centro de estudos de Desenvolvimento Turístico/ISMAI e do CETRAD – Centro de estudos Transdisciplinares para o Desenvolvimento (uI&D 4011 da Fundação para a Ciência e a Tecnologia – Por-tugal); E -mail: calmeida@letras.up.pt PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 12(1). 2014 ISSN 1695-7121 188 Uma aldeia milenar … 1. A delimitação do espaço paroquial O povoamento da Ribeira Lima sempre foi disperso e as paróquias surgiram quando um pequeno grupo de lavradores espalhados pelo ager sentiram a necessidade de terem uma identidade comum. Uma paróquia medieva era o somatório de pessoas, de terras agrícolas, de terrenos de monte e de floresta. A isto chamou Ferreira de Almeida a trilogia ager- -souto -monte, explicando, muito bem, que todos eles eram mais que necessários para que houvesse equilíbrio entre os moradores (Almeida,1981, 203 -204). Dos campos agrícolas vinha a subsistência da casa de lavoura, mas esta precisava dos matos, das pastagens, da floresta, do monte, dos sítios onde brotava a água para cobrir as mais diversas necessidades. Enquanto os terrenos agrícolas e de floresta eram à data já privados, as áreas de monte permaneceram comunitárias durante muitos séculos e em certa medida ainda hoje o são, porque era nelas que os moradores procuravam os matos, a pedra e espaços de pastorícia. Foi com a finalidade de defender interesses comuns que nasceu a ideia de delimitar o terri-tório de cada comunidade. De um modo geral as paróquias medievas procuraram traçar os seus limites pelo cume dos montes, pelas linhas de água mais proeminentes e quando não as havia escolheram -se marcas antigas que se sabiam existir e que por isso mesmo eram identifica-das e respeitadas. É assim que entram neste domínio as antas ou mamôas, os menhires, as grandes penedias isoladas, os castros e caste-los localizados nos pontos altos e estratégicos dos montes. Quando nada disto havia, nomea-damente, no meio das agras arroteadas e apla-nadas, sem outros acidentes que não fossem as árvores, quase sempre de fugaz existência, os limites foram estabelecidos com recurso a mar-cos de pedra, bem visíveis e identificáveis. A sacralização do território, mormente o paroquial, desde a Idade Média que se fez cons-truindo igrejas e capelas, levantando cruzes e cruzeiros, gravando nas penedias que circundam o aro da paróquia, sinais apotropaicos capazes de esconjurarem as maléficas influências que pro-curavam alterar e se possível destruir a a comu-nidade que vivia sob a proteção dos símbolos cristãos. Foi dentro desta linha de pensamento que a organização paroquial centrou a sua con-vivência religiosa em redor da sua ecclesia, tal como em torno das capelas que a devoção popu-lar foi erguendo na berma dos caminhos e nos altos dos montes que rodeiam à aldeia. Umas, com o fito de reverenciar os santos sua devoção; outras, para esconjurar as forças demoníacas que se acoitavam nas quebradas dos montes e no interior de velhos habitas da Proto -História, tidos como lugares de especial predileção de certas forças que no início da Alta Idade Média, São Martinho de Dume considerou como demo-níacas, entidades que os homens da Baixa Idade Média acabaram por transformar em feiticeiras, bruxas e mouras: “porque encender velas junto a las piedras y a los árboles y a las fuentes y en las encrucijadas, ¿qué otra cosa es sino culto al diablo? Observar la adivinación y los agüeros, así como los días de los ídolos, ¿qué otra cosa es sino el culto del diablo? (López Pereira, 1996). O medo, o temor que tais figuras, indepen-dentemente da sua forma e modo de atuar, influíam no espírito de populações pouco letra-das e impregnadas de um cristianismo eivado de fortes reminiscências de anteriores religiões, agora tidas por pagãs, conduziram à proliferação de simbólicas capazes de esconjurar as forças maléficas, tidas como mandatadas pelo diabo. Foi assim que nasceram as ferraduras e as cru-zes, a par de outros símbolos religiosos grava-dos nos penedos que rodeiam a freguesia, sinal visível que o espaço comunitário estava sob a proteção de Deus. Como bem o entendeu Carlos A. Ferreira de Almeida, mais que cristianizar ou sacralizar “as cruzes e outros sinais amuléticos, gravados em penedos em redor da povoação e nas encruzilhadas, destinavam ‑se a proteger e a exorcizar o território dos entes maléficos” (Almeida, 1981, 207). Os sinais cruciformes embora possam ser entendidos como manifestações anteriores ao cristianismo, raramente o serão em Portugal e sobretudo no espaço minhoto. A simbologia dos homens da Proto -História do Noroeste Penin-sular não comportava tais sinais e tão pouco a dos romanos e dos hispano -romanos não cristia-nizados. Até à morte de Cristo, a cruz era vista como símbolo pejorativo, nada digno e tão pouco dignificante, mas tudo mudou com os primeiros cristão. A cruz passou a ser símbolo de fé, de sal-vação, de orgulho, mas também de proteção e de definição de espaços territoriais de comunidades irmanadas nos mesmos princípios, embora cada uma tivesse a sua própria ecclesia. Era nela que morava o patrono da comunidade, tantas vezes acompanhado das suas próprias relíquias. A sua missão primordial era proteger os vivos, mas quando a morte os levava, era no espaço eclesial que os seus corpos eram depositados à espera da ressurreição. Desde cedo que as paróquias do Entre -Douro- -e -Minho definiram os seus espaços territoriais, os demarcaram e os defenderam, por vezes à PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 12(1). 2014 ISSN 1695-7121 Carlos A. Brochado de Almeida 189 custa de lutas, por vezes sangrentas e de que-relas judiciais. A documentação medieval mais antiga rara-mente fala em cruzes nos limites das freguesias, pois o normal é afirmar -se que a divisão se fazia pelos “suos terminos et divisones antiquas” o que equivale dizer que a definição do território paro-quial tem raízes, em muitos casos, num tempo anterior ao começo da nacionalidade portuguesa. As que conhecemos estão relacionadas com os coutos, como é o caso do de Mazarefes (Conde de São Payo, 1925/26, 136 -155), mas como os limites deles podiam coincidir com os de uma paróquia, não custa aceitar que as tais divisões antigas se tivessem materializado em marcos e naturalmente em cruzes que eram gravadas em lajes e penedos. O texto mais antigo que conhecemos e que faz menção a cruzes tidas como marcas de divisão de territorial, é o Paroquial Suevo, um documento de 569 no qual são mencionadas 134 paróquias agrupadas em 13 dioceses. Neste texto faz -se referência, entre outras coisas, a castros, a cur-sos de água e a cruzes: “ad illo Castro de Rio de Lua et inde vertitur ad illas cruces”(Liber Fidei, doc. 11). A documentação referente ao uso das cruzes só volta a ser profícua a partir do século XVI, quando nasceu a ideia de fazer -se um levanta-mento exaustivo das propriedades que faziam parte do património de cada paróquia. A descri-ção dos bens fundiários determinou também, em paralelo, a definição dos limites territoriais de cada uma, havendo para isso a necessidade dos mesmos serem fixados, retificados ou ratificados em consonância com as autoridades eclesiásti-cas confinantes. De acordo com as regras então determinadas uma comissão que comportava os párocos das freguesias envolvidas, mais um representante da diocese servido por um escri-vão encarregado de elaborar o documento que vinculava todas as partes, determinava os limi-tes e mandava colocar marcos, do mais variado tipo e tamanho, muitos deles contendo símbolos e as iniciais alusivas a cada uma das paróquias intervenientes. Em sítios onde havia penedos ou lajes tidos como inamovíveis, foram então gra-vadas e em certos casos reavivados símbolos, quase sempre cruciformes, que passaram a ser entendidos como marcas de limite paroquial. Ora são precisamente essas, tal como os marcos, que por motivos vários foram desaparecendo dos sítios que ainda hoje definem os territórios das freguesias e que, a existirem, ajudam a dirimir querelas judiciais entre paróquias desavindas. Tal como as demais paróquias da Ribeira Lima, também a de Santa Leocádia procurou estabelecer, cedo, os seus limites territoriais de acordo com os suas vizinhas e que são as seguintes: São Salvador de Vitorino das Donas, São Miguel da Facha, São Tiago de Poiares, Nossa Senhora da Expectação de Carvoeiro, São Mamede de Deocriste, Santa Marinha de Moreira de Geraz do Lima e Santa Maria de Geraz do Lima. Não sabemos quando se estabe-leceram os primeiros limites, mas acreditamos que foi no começo do II milénio, quando o vale foi repartido pelas três ou quatro paróquias, caso se junte às três do antigo concelho de Geraz do Lima, a de São Pedro de Deião. Os limites oficiais desta paróquia são docu-mentados desde 1549. Foi nesta data que se confirmaram os limites com São Salvador de Vitorino das Donas e nos anos seguintes com as demais freguesias. Sintomático é as marcas divisórias serem feitas à base de cruzes grava-das em penedos ou em marcos. Senão vejamos os seguintes exemplos. O limite de Santa Leocádia com Santo Estevão da Facha ocorre em vários sítios, mas um deles localiza -se no monte onde esteve o Castelo de São Miguel, também conhe-cido por Castelo de Aguiar: “O limite dentre estas freguesias de Santa Leocádia e São Miguel da Facha começa de partir e demarcar na coroa do castelo, num penedo que está em cima, com uma cruz bem feita”. O segundo exemplo fomos colhê -lo no Tombo de Santiago de Poiares que explicita e muito bem que na Fonte do Trilho “homens bons e testemunhas implantaram um marco com uma cruz em cima”. O terceiro exem-plo está nos limites meridionais desta paróquia, por alturas da portela de Fornelos, com o marco divisório ali colocado a explicitar claramente que aquela também era a divisão com o Couto de Carvoeiro em 1666(Viana, 2008, 16 -21). 2. A sacralização interna do espaço paro-quial Com os limites definidos e protegida com a aposição de cruzes nos penedos e nos marcos, a paróquia podia e devia avançar para a sacraliza-ção do seu espaço interno, porque a igreja, por si só, não chegava para proteger toda a área e todas as casas dispersas por agras, quebradas e encostas. As cruzes colocadas nos penedos que circundavam a paróquia deveriam funcio-nar como uma cinta protetora, que impedisse os seres maléficos e seus agentes de entrar no espaço comunitário e sobretudo de se instalarem em sítios ermos e esconsos de onde partiam, sobretudo de noite e em dias de tempestade, a infernizar a vida dos pobres camponeses. Os PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 12(1). 2014 ISSN 1695-7121 190 Uma aldeia milenar … sítios ideais para se acoitarem eram os altos dos montes, os antigos povoados e castelos, as anti-gas sepulturas, as fontes, as encruzilhadas dos caminhos e mesmo os moinhos. Por isso, para se protegerem de bruxas, de feiticeiras, de mouras encantadas, de almas penadas, de toda a sorte de seres demoníacos, causadores de tempesta-des, de trovoadas, da queda de nevões e da for-mação de geadas, de chuvas intensas e de verões bem estivais, de pragas, de pestes que dizima-vam homens e animais, o homem limiano tudo fez para que o espaço da sua paróquia e da sua casa ficasse sob proteção divina (Giordano, 1979; Rodriguez Lopez, 1979; Taboada Chivite, 1980; Vasconcelos, 1980; Viana, 2002, Campelo, 2007). Os homens da Idade Média tudo fizeram para proteger o espaço sagrado da sua comunidade daqueles seres que São Martinho de Dume ape-lidou de mulheres demónios, sob o disfarce de sereias, ninfas, dianas, lâmias, mouras encan-tadas, de toda a sorte de seres mitológicos que tinham à sua guarda tesouros encantados e não raras vezes enlouqueciam os homens com falsas promessas de enriquecimento(Lima, 1960). Uma das formas de sacralizar o espaço interno de uma paróquia foi a construção de capelas ou ermidas. A capela, é basicamente um pequeno templo religioso erguido num espaço fora da igreja, mas na sua génese está a palavra que designava o manto de São Martinho, a cappella, relíquia sobre a qual os reis francos faziam os seus juramentos e que era guardado num edi-fício designado por cappella. Mais de acordo com a realidade está a palavra ermida, que na sua origem designa um sítio ermo. Ora muitas das capelas do Entre -Douro -e -Minho foram ini-cialmente levantadas em lugares ermos, sob a invocação dos santos mais em voga e das muitas invocações de Nossa Senhora. As capelas surgiram para a apoio do culto, mas e sobretudo porque os moradores mais distantes da igreja sentiam -se desprotegidos e à mercê de tidas aquelas forças negativas que se supunham habitar em locais onde o símbolo da cruz não se fazia sentir. Por isso não será de estranhar que muitas destas ermidas/cape-las tenham sido erguidas sobre velhos castros e castelos, sítios tidos como habitados por mouras encantadas e forças destruidoras. Basta olhar para o panorama da Ribeira Lima e perceber- -se que Santo Ovídio foi morar para o cimo de um castro em Arcozelo e que Santa Maria Madalena, Nossa Senhora da Conceição, São João, Santo Estevão, São Silvestre, Santa Luzia, Nossa Senhora do Crasto, só para citar os mais óbvios, ocuparam e santificaram antigos locais ocupados por velhos castros da Idade do Ferro. No aro paroquial de Santa Leocádia houve em tempos idos duas capelas que já não exis-tem, mas das quais subsiste a sua memória. No cimo do Monte do Castelo houve uma ermida dedicada a São Miguel, o patrono das hostes celestes sendo orago normalmente escolhido para as capelas que se construíam no interior ou na periferia dos castelos medievais. Na bouça de Santo Tirso houve uma capela dedicada a este santo originário da Ásia menor onde foi mar-tirizado em tempo do imperador Décio. Outra provável capela houve em Fontelas, caso o topó-nimo São Romão derive de uma ermida ou de um campo que foi pertença do convento de São Romão de Neiva. De qualquer modo trata -se de um diácono oriundo de Cesareia ou Antioquia e porque convertia muitos pagãos para o cristia-nismo através da pregação, foi -lhe inicialmente cortada a língua e depois martirizado em 303. As demais capelas da paróquia são mais recentes e inserem -se numa prática que começou a divulgar -se com o início da época moderna. A capela da Senhora da Guia é a mais saliente de todas, fruto de uma devoção especial por parte dos paroquianos desde o já longínquo ano de 1571, quando João do Rego a mandou levantar (Viana, 2008, 67). Seguiram -se outras, normal-mente adstritas a casas senhoriais, muitas delas com sacerdotes na família ou com capelães, que celebravam ofícios divinos, realizavam algumas das efemérides mais importantes da vida fami-liar, mas que também serviam para irradiar para o exterior a importância e a projeção que a casa tinha no meio social. A sacralização do espaço interno de uma paróquia continuou e foi incentivado com a construção de cruzeiros. Estes foram ergui-dos nos altos dos montes para purgar espaços tidos como malfazejos, nas encruzilhadas dos caminhos, nos sítios onde houve morte humana e nos espaços adjacentes às capelas e à igreja paroquial. A morte que ocorria fora do contexto familiar era vista com temor pelos parentes e paroquia-nos e com reticências por parte do clero. Para F. Ariès “a morte feia e vil não é apenas na Idade Média a morte súbita e absurda, como a de Gaheris, é também a morte clandestina que não teve testemunhas nem cerimónias, a do viajante no caminho, do afogado no rio, do desconhecido cujo cadáver se descobre à beira de um campo” (Ariès, 1988, 20). Ora se folhearmos os livros de óbitos desta paróquia vamos lá encontrar, pelo menos dois casos paradigmáticos e elucidativos, em que o abade redator do livro coloca a tónica na causa das respectivas mortes, precisamente porque elas não ocorreram dentro do espaço PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 12(1). 2014 ISSN 1695-7121 Carlos A. Brochado de Almeida 191 familiar. Em 1728, aos 22 dias de Abril “levou Deos desta vida digo = se achou morto em hum caminho junto do lugar de Ventozo cahido sobre hum rego de pouca agoa Domingos Gonçalves morador no ditto lugar, dandose conta ao Dou‑tor Provizor na forma devida. Ele mandou dar sepultura eclesiástica, que lhe foi dada nesta igreja aos vinte e hum dias do ditto mez e anno” (ADV, L. Óbitos). No segundo caso a morte acorreu por afogamento no Rio Lima em 1675 “Aos seis dias do mes de Fevereiro de mil e seis sentos e setenta e sinco falleceo afogada no Rio Lima M(ari)a molher de G(onçal)o Enes” (ADV, L. Misto). Sem dúvida que estas duas mortes foram comentadas e olhadas com desconfiança pelos paroquianos de Santa Leocádia e até prova-velmente trataram de exorcizar o local onde as mortes ocorreram, sobretudo a do lugar de Ven-toso, talvez com uma cruz, talvez com flores e velas acesas. Terras havia em que o local onde uma pessoa morria, era assinalado com pedras que as pessoas que por lá passavam, aí coloca-vam (Sarmento, 1998, 41). Também se ergueram cruzeiros com o intuito de fomentar e até exacerbar o patriotismo popu-lar através dos cruzeiros ditos dos Centenários. O de Santa Leocádia, levantado na parte alta do Carvalhal e a meio caminho para o Monte do Castelo (Viana, 2008, 89), é um bom exemplo de uma sociedade que, em certa altura, mistu-rou sentimentos religiosos com política ativa. Postado em ponto alto, este cruzeiro é um farol para quem o vislumbra de longe e um símbolo da religiosidade de uma comunidade que conti-nua viva e com a sua fé reforçada. O sítio onde havia um cruzeiro passou a ser o sítio onde fregueses levavam os santos prote-tores em procissão festiva anual, quando os fla-gelos atingiam e martirizavam regiões inteiras: pestes, secas, chuvas excessivas, pragas que devastavam searas e hortas. Ia -se em romagem de penitência pedir clemência e ajuda contra forças que não se entendiam e tão pouco domi-navam. Ficaram célebres os cruzeiros postados em frente ou nas imediações de capelas dedica-das a São Sebastião, como símbolos de uma luta intensa contra a peste, um dos maiores flagelos que atingiu a humanidade e que tiveram grave repercussão na ponta final do século XVI. Embora o seu uso seja anterior, foi das dire-tivas do Concílio de Trento, que os cruzeiros passaram a estar presentes em todas as paró-quias portuguesas. Foi a partir dessa altura que no espaço adjacente e normalmente frontal à porta principal da igreja e das capelas mais representativas, passou a haver um cruzeiro que remata quase sempre na figura de Cristo Cruci-ficado, por vezes acompanhado, na face oposta por Nossa Senhora. Desta tipologia é cruzeiro da Capela de Nossa Senhora da Guia, um digno representante de uma devoção que ultrapassa em muito o simples ato da sacralização de um espaço (Almeida et alii, 2013). Foi a devotio moderna quem fomentou a ideia de se criarem réplicas do Calvário de Jerusalém. Foi dentro desta mística, plenamente assumida ao longo dos séculos XVII e XVIII, que nasce-ram os calvários e as vias -sacras (Almeida, 2012, 127). Ambos estão presentes em muitas das paró-quias da Ribeira Lima, postados em outeiros de fácil acesso, mas na maior parte dos casos eles circunscreveram -se ao interior dos adros, seja com a totalidade das cruzes das catorze estações ou reduzidas às três que foram levantadas no Gólgota. Numa fase posterior as cruzes da via- -sacra passaram para o interior da igreja e das principais capelas, passando a ocupar as paredes do corpo central, dispostas desde a porta princi-pal até ao arco -cruzeiro. Paralelamente criou -se uma imaginária condizente com as cenas do Cal-vário que foi colocado em lugares de destaque nas igrejas, normalmente num altar, mas que também passava por representações da Pietá ou mais complexas como os trípticos formados por Cristo Crucificado, Nossa Senhora das Dores e São João Evangelista. No caso vertente da igreja de Santa Leocádia, o tríptico que está na sacristia tem, para além do Cristo Crucificado, cuja haste da cruz está espetada numa elevação decorada com uma caveira, as imagens de Nossa Senhora das Dores e de Nossa Senhora da Pie-dade ou Pietá (Viana, 2008, 58). Na sua génese a via -sacra procurava recriar os passos da Paixão de Cristo na sua caminhada para o Calvário. Por isso, espaçadamente, as cruzes eram colocadas ao longo de um caminho para rematar numa elevação onde se erguiam as três cruzes do Calvário. Em Santa Leocádia também assim foi, porque o seu calvário esteve inicialmente situado num pequeno outeiro a poente do lugar do Feijoal. Mais tarde viria a ser “transferido” para a confluência dos lugares do Carvalhal, Ponte e Subvilar onde se encon-tram um conjunto de quatro cruzes lideradas pelo “cruzeiro vermelho”. As restantes cruzes distribuíam -se ao longo do caminho que se estende até à igreja paroquial onde a cerimó-nia processional quaresmal começava. Era este calvário o destino das procissões quaresmais, nomeadamente, a do Ecce Homo. Presentemente aqui termina a procissão de domingo de Ramos (Viana, 2008, 89). PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 12(1). 2014 ISSN 1695-7121 192 Uma aldeia milenar … Uma outra forma de sacralizar o território passou pela colocação de pequenos nichos na berma dos caminhos mais calcorreados. Foram embutidos nas paredes das propriedades, nas casas de habitação, nos adros das igrejas, na entrada de pontes com a intenção de sacralizar um sítio e ao mesmo tempo de pedir orações pela alma daqueles que já tendo morrido expiavam no Purgatório as faltas cometidas em vida. Tec-nicamente um nicho de alminhas é composto por uma edícula onde há um painel em madeira, chapa e mais recentemente, em azulejo. Raras são as vezes que não estão coroadas com uma cruz, evidente ou disfarçada consoante os casos. O culto das Almas do Purgatório nasceu na Idade Média, quando se estruturou a base teo-lógica que defendia a existência do Purgatório, mas só verdadeiramente e após o Concílio de Trento (Almeida et alii, 2013) é que esta devoção invadiu, verdadeiramente e em pleno, o espaço paroquial. No interior das igrejas foi criado o Altar das Almas com painéis e figurados alusi-vos à representação das almas que expiam no Purgatório, pelas chamas, as faltas cometidas em vida. Ali, quase sempre pontifica a figura do arcanjo São Miguel. Em consonância nasceram as Confrarias das Almas cujo fim último era pugnar, através da oração, pelos morriam, não esquecendo que uma das obras de misericórdia era acompanhar e enterrar os mortos. Fora da igreja este culto espalhou -se pelo aro da fregue-sia, tornando -se, ao longo dos séculos XVIII e XIX numa autêntica devoção popular. Nos nichos das alminhas havia sempre um painel alusivo ao Purgatório. O suporte era quase sempre uma tábua de madeira, mas também se passou a usar a chapa metálica e mais recentemente o azulejo onde as imagens já se apresentam mais estereotipadas. A figura central reproduzida é Cristo Crucificado ou São Miguel munido de espada e balança. Outras figuras presentes são Nossa Senhora do Carmo, São Francisco, Santo António e outros santos do devocional popular. Na parte inferior estão as almas entre chamas à espera que os anjos as levam para o Céu (Almeida et alii, 2013). As alminhas de Santa Leocádia existem e marcam o panorama religioso da paróquia1, tal como existem certos nichos devocionais ligados ao culto de Nossa Senhora. Uns e outros refle-tem a mentalidade popular de procurar em cer-tos certas figuras da hagiografia religiosa, pro-tetores e intercessores contra os males que nos afligem. Se em tempos mais recuados, quando as pestes grassavam ferozmente pelo território, se recorria a São Roque e sobretudo a São Sebas-tião, as dificuldades da vida atual fazem os cris-tãos a direcionarem os seus pedidos para Nossa Senhora da Guia ou para a Senhora de Fátima. À capela de Nossa Senhora da Guia não faltam as romagens e os pedidos de auxílio expressos nos ex -votos que ali se guardam. São Sebastião tem o seu culto no interior da igreja paroquial, mas tempos houve em que a população ia em romagem processional, com cruz paroquial e bandeiras alçadas, à capela de São Sebastião situada na vizinha freguesia de Santa Maria no dia da sua festa (Viana, 2008, 229). Devoção também muito popular entre as gen-tes do Minho é aquela que se relaciona com São Brás, mártir cristão advogado contra as dores de garganta. A sua imagem conserva -se na igreja e o seu culto está diretamente relacionado com a ativi-dade agrícola, com os lavradores sujeitos ao frio e às intempéries capazes de conduzir a debili-dades que estão na origem de gripes e consti-pações, as quais colocam em risco a saúde de quem diariamente convive com as diferenças climáticas que o Homem está longe de controlar e muito menos dominar. Uma outra forma de exorcizar e de proteger o território paroquial dos males que o podiam abastardar senão mesmo destruir, foi a organi-zação de manifestações colectivas – cercos, cla-mores, ladainhas, procissões – que envolviam a comunidade, sem ter de passar, necessaria-mente, pelo seu epicentro, que é a igreja. O local de destino dos clamores eram sempre os pontos mais altos e distantes da paróquia, enquanto os cercos privilegiavam os campos semeados. Em qualquer dos casos, o que se pretendia com tais manifestações que incluíam ladainhas, rezas, não raras vezes barulhos ensurdecedores fei-tos para afugentar toda a sorte de insectos, o excesso de passarada e as doenças que quando infestavam uma seara, a derrotavam por com-pleto, era pedir a proteção divina contra todos estes malefícios. O barulho produzido, destinado a afugentar toda a sorte de malefícios, o caso vertente os que implicavam com a actividade agrária, tem fundamentação bíblica na figura de Josué quando, para conquistar Jericó aconselha que “todo o povo irromperá em grande clamor e a muralha da cidade desabará” (AT, Liv. Josue, 6,6,5). Não esquecer que, segundo a mentalidade das épocas medieval e moderna, todas estas anomalias provinham da malvadez de certos agentes demoníacos que teimavam em levar a humanidade a rebelar -se contra o seu Criador. Convirá também ter presente, que o insucesso de um bom ano agrícola arrastava para a fome PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 12(1). 2014 ISSN 1695-7121 Carlos A. Brochado de Almeida 193 e para a incerteza toda uma população que vivia e comungava da ruralidade. Por isso ao sol e à chuva, em doses certas, juntavam -se os medos ancestrais trazidos por certas mágicas que tinham e deviam ser exorcizadas. Por isso se rezava, faziam -se promessas, sacralizava -se o território por todos os meios que as populações considerassem legítimos, mesmo que tais prá-ticas, fossem tidos como pouco ou mesmo nada religiosamente ortodoxas. Dentro desta linha de pensamento não espanta que hábitos, tidos como nada condizentes com a doutrina cristã no começo da Alta Idade Média por São Martinho de Dume, fossem novamente considerados como impróprios e condenados pelas Constituições Episcopais de Braga em 1538 e nas do Porto em 1585. De acordo com estas duas normas era proibido acorrer aos outeiros com clamores, ladainhas e afins, tal com o não era permitido circundar, processionalmente, penedos tidos como amuléticos, devido aos sinais que tinham gravados. Uns seguramente antigos, outros mais recentes, mas ambos tidos como linguagem do diabo e dos seus agentes. A solução encontrada por parte dos bispos diocesanos, foi autorizar a construção de ermidas em tais locais ou, em hipótese mais simplificada, a ereção de um cru-zeiro (Braga, 1943; Almeida, 1984). Com tais medidas, para a hierarquia católica, aqueles sítios ficavam a coberto das mistificações demo-níacas e acabava -se com um tipo de manifesta-ção, que era mais folclórica que propriamente de fé religiosa. As restrições e mesmo as proibições impostas a certas manifestações de duvidoso carácter reli-gioso, não atingiram as procissões, fossem elas penitenciais ou festivas. Estas sempre foram e são -no ainda, uma fórmula de exteriorização da fé católica, aliás numa vinculação que já está bem expressa no Antigo Testamento, quando Josué ordenou a conquista da Terra de Canaã: “Tomai a arca da aliança e ide com ela adiante do povo” (AT, Josué, 3,5,6). A procissão é uma caminhada feita por pes-soas, sob uma determinada ordem e cerimonial. É um ritual entrincheirado em recordações muito antigas, pois todos os povos da bacia mediterrânica, com egípcios e mesopotâmicos à cabeça, as organizavam e faziam em honra dos deuses que presidiam às respetivas comu-nidades. As procissões incorporavam o povo e as figuras mais gradas, com a classe sacerdotal à cabeça, percorrendo as principais artérias da povoação, quando não eram mesmo fluviais, caso das que se realizavam no Rio Nilo. Tanto aí como noutras festividades, o deus saía em pro-cissão para recarregar energias dos raios solares que o envolviam enquanto era transportado aos ombros dos seus sacerdotes. Como escreveu Pierre Sanchis a procissão “é uma epifania publicamente triunfante, e correla‑tivamente, uma sacralização do espaço” (Sanchis, 1983,120). Por isso a procissão católica faz -se fora da igreja ou da capela, com bandeiras e de estandartes, com cruzes içadas, com lanternas e círios acesos, com andores que levam as ima-gens dos santos que “habitam” na igreja e nas capelas da paróquia, com figurantes que recriam os passos da vida do santo que se comemora ou vestidos de acordo com as promessas feitas indi-vidualmente, com o clero devidamente resguar-dado sob o dossel do pálio. Atrás, na retaguarda, tal como na antiguidade clássica, caminha o povo rezando e pedindo ao santo da sua devo-ção a sua intercessão junto de Deus. Em tempos do cristianismo nascente nestas paragens, o III Concílio de Braga reunido no ano de 675 convi-dava os bispos a participarem na procissão, a pé, levando consigo as relíquias dos santos2. Mais tarde seriam substituídas pela pequena cruz que tem no seu interior um pequeno fragmento do Santo Lenho. A procissão sempre foi um ato de enorme repercussão social, onde os mais diversos corpos do tecido comunitário participavam. Nas mani-festações urbanas, nomeadamente na procissão do Corpo de Deus, participavam toda a sorte de corporações de ofícios a par das autoridades instituídas (Gonçalves, 1984, 69 -89), com o rei a participar na procissão da capital. Em toda a cristandade a procissão das pro-cissões sempre foi a do Corpus Christi. Esta realiza -se 60 dias após a Páscoa e foi criada em 1264 e decretada em 1269 pelo papa Urbano IV, tendo enormes repercussões nos principais cen-tros urbanos, porque a componente civil e polí-tica participava ativamente na sua realização, enquanto nos meios menos urbanos, nomeada-mente nos rurais, era a única festa da qual a componente lúdica da romaria não fazia parte. Em Santa Leocádia a festa do Corpo de Deus já é mencionada no ano de 1735, a par de outras de carácter mais popular como a de São Sebastião e de São Brás, bem como a do Corpo Santo ou de São Pedro Gonçalves Telmo (Viana, 2008, 227), cuja representação gráfica está bem expressa na pintura que se conserva numa edícula patente na parede interior da igreja paroquial3. A docu-mentação referente a esta paróquia diz -nos ainda que aqui se realizavam outras festividades que podiam ter ou não uma procissão, uma das quais era a de Nossa senhora da Guia, hoje tida como a festa maior da paróquia. Entre outras destacamos outras manifestações públicas que PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 12(1). 2014 ISSN 1695-7121 194 Uma aldeia milenar … vêm descritas no livro de Usos e Costumes do abade João Álvares Pereira, segundo o qual, por volta de 1701, se realizavam as seguintes procis-sões: das ladainhas, da sexta -feira santa, de São Sebastião, do Corpus Christi e a das Bulas. De acordo com o referido texto a procissão das ladainhas realizava -se em Maio, sendo o pároco obrigado a dar três voltas em redor da igreja “cantando a ladainha com os fregueses com as preces até o fim”. Era igualmente obri-gado a fazer o mesmo todas as sextas -feiras da Quaresma, excepto a Sexta -feira Santa que “neste dia não ha ladainha nesta igreja”. Acon-tecia também haver procissão para a capela de São Sebastião, no dia da sua festa, tal como havia outras nos dias em que os padroeiros de Santa Maria e de Santa Marinha de Moreira realizavam a sua festa. No dia da festa de Santa Leocádia era a vez destas paróquias retribuírem, com as suas cruzes processionais a visita ante-riormente feita Viana, 2008, 295 -297). Até ao século XVI eram raras as paróquias que tinham sacrário, mais a presença perma-nente do Santíssimo Sacramento. Verdadeira-mente não sabemos quando foi instituído nesta paróquia, mas sabe -se que já existia em 1630 de acordo com um dos Capítulos de Visita feita à paróquia (Viana, 2008, 153). A presença do Santíssimo Sacramento exigia a permanência constante de uma lâmpada alimentada a azeite o qual provinha de legados atribuídos ou das oliveiras que foi determinado plantar no adro de cada igreja. Nesta paróquia, de acordo com o Tombo de 1552, sabe -se que já havia três olivei-ras no respectivo adro, daí que se presuma que a presença do Santíssimo seja uma realidade no decorrer do século XVI. Era daqui que partia o “viático” para os doentes das paróquias do con-celho de Geraz, antes da instituição dos respec-tivos sacrários (Viana, 2008, 154). A presença da luz da lâmpada do sacrário era um elemento reverencial, mas também um símbolo da presença de Cristo naquele local. Sendo Cristo a luz do mundo, nada mais natural a sua presença que é multiplicada nas muitas velas que se acendem nos altares sempre que há cerimónias religiosas e naturalmente no círio pascal que no presente se encontra junto da pia baptismal. 3. A voz do sino Se não há paróquia sem igreja, dificilmente poder -se -á entender esta sem a sua torre sineira. O uso de instrumentos metálicos capazes de produzirem sons metálicos é muito anterior ao aparecimento do cristianismo, pois a Arqueolo-gia regista -os em sociedades mediterrânicas bem anteriores ao nascimento de Jesus Cristo. Entre elas estão os Judeus do Antigo Testamento quando, a propósito das vestes sacerdotais que Aarão tinha de envergar nos actos oficiais, foi determinado o seguinte: “Farás o manto do efod inteiramente de púrpura violácea... Aarão vesti ‑lo ‑á para exercer as suas funções; quando entrar no santuário, diante do Senhor, e quando sair ouvir ‑se ‑á o som das campainhas, para que ele não morra” (AT, Ex, 28,35). Para além dos hebreus também os romanos usaram as cam-painhas nas mais diversas funções, fossem elas religiosas ou civis, no caso vertente quando pre-tendiam anunciar a abertura das termas e dos mercados. No seguimento das mais diversas acultu-rações, também o ocidente peninsular passou a usá -las, já que estão registadas em diversas escavações arqueológicas. A par delas há tam-bém os pequenos chocalhos para animais que mais não são que uma forma divergente, da sonora campainha de uso mais pessoal e inti-mista (Centeno, 2011, 116). Foi a descoberta do bronze, uma liga metálica que reúne estanho e cobre, quem propiciou o fabrico destes pequenos objectos e permitiu tirar partido da sonoridade quando a hierarquia religiosa cristã os começou a aplicar nas igrejas como forma de chamamento dos fiéis ao culto. Os primórdios deve ser procu-rado nos tempos mais remotos do cristianismo oficial (século IV) quando os protótipos dos sinos actuais começaram a fazer parte das constru-ções religiosas onde se celebravam os mistérios da morte e redenção de Jesus Cristo. Embora se diga que foi após a liberdade de culto orde-nada pelo imperador Constantino que as igrejas começaram a incorporar o sino como elemento, a convicção é que tais notícias são vagas e carecem de verdadeira confirmação. No entanto é comum afirmar -se que o “primeiro” sino apareceu numa igreja de Nola (Itália) pelo ano de 431, portanto cerca de um século após a declaração de 313 que ficou consagrada como Édito de Milão. O uso nas igrejas e demais templos cristãos terá sido gradual ao longo da Alta Idade Média, sabendo -se que no século VIII a torre da basí-lica constantiniana do Vaticano tinha já o seu sino e que a partir do século VIII rara seria a igreja e catedral que não estivesse equipada com tal objecto sonoro (Almeida, 1966, 342). Para o efeito construíram -se torres ou campanários, umas adossadas ao tramo principal das igrejas, outras separadas fisicamente delas, tanto na frente como na retaguarda. Sempre que possí-vel foram erguidas mais altas que a restante PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 12(1). 2014 ISSN 1695-7121 Carlos A. Brochado de Almeida 195 construção para que o som se propagasse o mais distante possível e se tornasse audível aos cren-tes espalhados pelo espaço físico da paróquia e assim pudessem acorrer ao seu chamamento. Com o rodar dos séculos também as capelas, das maiores às mais humildes, incorporaram um ou mais sinos de menores proporções, colocados, não em torres sineiras que ficaram reservadas paras as igrejas, basílicas e santuários, mas em pequenas edículas dispostas lateralmente sobre uma das cornijas ou então sobre a empena prin-cipal, sobre a porta principal do templo. Esta solução foi também, muitas vezes aplicada nas igreja românicas e posteriormente nas de traça quinhentista como ainda é possível ver -se em algumas das construções que na Ribeira Lima chegaram ao tempo presente. Na opinião de Ferreira de Almeida se “uma igreja, um campanário ou uma sineira são os sinais da autonomia de uma povoação” (Almeida, 1966), o som dos sinos, para além do aspecto prático e funcional, encerra a magia da proteção divina, porque o som que dele emana esvoaça por todo o aro paroquial. É, por isso mesmo, uma outra forma de sacralização do espaço. O som do sino é sagrado porque foi benzido, e é tido como apotropaico, porque emana do espaço reverencial que é a igreja ou a capela e estende o seu manto protector até onde se consegue propa-gar. Ao ouvir a sua voz, o povo cristão sente -se duplamente protegido. Pela cruz que está pos-tada no alto da torre ou da empena da igreja e pelas ondas sonoras do sino que envolvem quem as ouve e que que são uma eficaz profilaxia contra toda a sorte de malefícios espalhados e difundidos pelas forças demoníacas. Durante séculos o campanário pautou e regu-lou a vida da comunidade. Diariamente o som do sino intervém na vida comunitária através do toque das Avés Marias ou seja da Hora do Angelus, que relembra, por três vezes (6, 12 e 18 horas) o momento que o anjo anunciou a Maria que ia ser mãe do Sal-vador. O toque do sino, pela manhã, também lem-brava aos homens do campo que era hora de iniciarem as suas actividades diárias, que para muitos deles começava com a missa matinal. Marcava, também, o fim da quadra nocturna, tida como espaço das trevas e da escuridão e que por isso mesmo era propícia à circulação e difusão de tudo o que era manifestamente hostil ao bom povo de Deus. O toque do sino pelo raiar da aurora tinha o condão de afugentar todos os seres maléficos que se acoitavam na noite, indicando aos paroquianos que os caminhos da aldeia voltavam a estar seguros, porque e entre-tanto a luz começava a raiar e tais forças obscu-ras que tinham horror à claridade, símbolo da pureza e da felicidade, voltavam a esconder -se até ao toque das Trindades. O som do sino ao meio -dia, para além de lembrar aos cristãos que o momento era de ora-ção e de agradecimento ao Senhor pelas graças concedidas, recordava, também, ao povo que trabalhava nos campos, que era tempo da pausa para o jantar, fosse ele em casa ou no campo. Era também o momento da sesta, que se fazia no horário de verão e que só terminava no dia 8 de Setembro dia em que se realizava a festa em honra de Nossa Senhora das Necessidades. Ao toque das Trindades, também apelidado de toque das Almas, cessava todo o labor nos campos, havendo o especial cuidado de não trazer gado atrelado aos carros depois dessa hora por ser manifestamente perigoso para os humanos sair da órbita dos bovinos. Ao findar o toque dos sinos, de acordo com a crença popu-lar, abriam -se os portas do inferno e do alto dos montes e das brenhas mais fundas saiam as bruxas, as feiticeiras, as almas penadas e toda uma série de seres infestantes e diabolicamente perigosos para quem se aventurasse a caminhar pela noite, sem a proteção da cruz e de uma luz. Aliás, depois do toque das Trindades era usual os namorados separarem -se e as pessoas da casa ficarem inquietas com retardatários. É que a noite é para os animais selvagens e para os espíritos e ambos são demasiadamente perigo-sos qua do agem no seu meio natural (Almeida, 1966, 340). É à voz do sino que os cristãos vão para a igreja assistir aos ofícios divinos. Diariamente chama -os para a missa e para outros momentos litúrgicos que podem não ter momento fixo, mas que se multiplicam em certos dias do ano, nome-adamente na Páscoa, quando os sinos dão as três badaladas comemorativas da morte do Jesus Cristo e repicam festivamente no momento da Aleluia ou seja da Ressurreição. É através da voz do sino que a comunidade sabe do passamento de um dos seus membros, que são convidados a acompanhar o defunto à sua última morada e hora em que se realizam as cerimónias fúnebres. O som do sino é festiva, conciliadora, pun-gente, mas também protectora e congregante. Em momentos de calamidades, era o sino que chamava os cristãos à oração, às procis-sões penitenciais, aos cercos e clamores, à pro-cissão festiva em honra dos santos protectores. Acreditava -se, que à poderosa voz do sino, as tempestades amainavam e a trovoada e o gra-nizo iam para outras paragens, porque eram PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 12(1). 2014 ISSN 1695-7121 196 Uma aldeia milenar … comandadas, segundo certa crença popular, por entidades maléficas (Almrida, 1966, 350 -351). Finalmente era à voz do sino que os fregueses se reuniam no adro da igreja em momentos de crise, quando a paz e a segurança da aldeia corria o risco se ser seriamente alterada. Tem-pos houve em que os ataques dos vikings e dos sarracenos alteravam a pacatez das populações rurais ribeirinhas do Rio Lima. Com a separa-ção física o reino leonês, os motivos de preocu-pação passaram a ser outros: os enredos entre a nobreza regional, as disputas entre castelhanos e portugueses, as intromissões de franceses e ingleses na política peninsular, as guerras civis, as revoltas populares da 2ª metade do século XIX com a Maria da Fonte à cabeça, o bandi-tismo corporizado na figura de Zé do Telhado e nas outras malta de ladrões que actuavam por todo o Entre -Douro -e -Minho. Finalmente era à voz do sino que tocava a rebate que os camponeses se reuniam para acu-dir aos fogos que grassavam nos montes com o fim de revitalizar os pastos, mas que, quando descontrolados, ameaçavam casas e campos com cereal, mais as medas e palheiros, ambos bens preciosos para alimento dos gados em períodos de inverno. Se o som do sino era garantia de protecção para os humanos, o som da campainha ou do chocalho tinha a mesma função junto do gado. Desde tempos imemoriais que pastores e agri-cultores, nas mais diversas partes da bacia mediterrânica rodearam o pescoço com os mais diversos motivos amuléticos, sobressaindo entre eles as campainhas ou chocalhos. Desde o Minho às Astúrias o chocalho pendente do pescoço dos animais ou do jugo, quando de trata de bovinos atrelados, tinham como finalidade exercer a mais ampla protecção possível contra os maus olhados e males de inveja. Bibliografia Almeida, Carlos A. Brochado de 2012 “Santuários de Peregrinação do Entre Douro e Minho Barroco”. Em Oliveira, Auré-lio; Gonçalves, Eduardo; Pereira, Varico (Eds.), O Barroco em Portugal e no Brasil, Maia: ISMAI. Almeida, Carlos A. B.; Gonçalves, Mário C. S.; Almeida, Ana Paula A. R. de 2013 Fé e Religiosidade Popular em Ponte de Lima. Cruzeiros, Vias –Sacras, Nichos e Alminhas. Ponte de Lima: Câmara Municipal de Ponte de Lima. Almeida, Carlos Alberto Ferreira de 1966 “Carácter Mágico do Toque das Campai-nhas” Revista de Etnografia, 6(2). Almeida, Carlos A. Ferreira de 1981 “Território Paroquial No Entre-Douro-e- Minho. Sua Sacralização”. Nova Renascença, 2. Ariès, Philippe 1988 O Homem perante a Morte. Mem Martins: Publ. Europa-América, vol.1. Braga, Alberto Vieira 1943 Cercos e Clamores. Braga: [s.e]. Campelo, Álvaro 2007 Património imaterial de ponte de lim., Ponte de Lima: [s.e.]. Conde de São Payo, D. António 1925 “Dois Documentos Anteriores à Naciona-lidade, os Coutos de Paradela e Mazarefes”. O Archeólogo Português, 27. Centeno, Rui M. S. 2011 O Castro de Romariz, Aveiro/Sta Maria da Feira. Santa Maria da Feira:[s.e.]. Giordano, Oronzo 1979 Religiosidad Popular en la Alta Edad Media. Madrid: Gredos. Gonçalves, Iria 1984-85 “As festas do ‘Corpus Cristi’ do Porto na segunda metade do séc. XV: A participação do Concelho”. Estudos Medievais, 5-6. Lima, Fernando de Castro Pires de 1958-59 “São Martinho de Braga e as Mulheres Demónios”. Bracara Augusta. 9-10. Martinho 1996 “De corectione rusticorum”. 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ADV (Arquivo Distrital de Viana do Castelo), Livro de Óbitos, nº 1 (1722-1748), fl. 42, cota 3.19.2.33. ADV (Arquivo Distrital de Viana do Cas-telo), Livro Misto (1666-1722), fl. 136, cota 3.19.2.19. Liber Fidei Recibido: 17/07/2013 Reenviado: 22/10/2013 Aceptado: 05/12/2013 Sometido a evaluación por pares anónimos
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Título y subtítulo | Uma aldeia milenar da Ribeira Lima: a sacralização do seu espaço paroquial |
Autor principal | Brochado de Almeida, Carlos A. |
Publicación fuente | Pasos. Revista de turismo y patrimonio cultural |
Numeración | Volumen 12. Número 1 |
Sección | Artículos |
Tipo de documento | Artículo |
Lugar de publicación | El Sauzal, Tenerife |
Editorial | Universidad de La Laguna |
Fecha | 2014-01 |
Páginas | pp. 187-197 |
Materias | Turismo ; Patrimonio cultural ; Publicaciones periódicas |
Enlaces relacionados | Página web: http://todopatrimonio.com/revistas/101-pasos-revista-de-turismo-y-patrimonio-cultural |
Copyright | http://biblioteca.ulpgc.es/avisomdc |
Formato digital | |
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Texto | © PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural. ISSN 1695-7121 Revista de Turismo y Patrimonio Cultural PAS S www.pasosonline.org Vol. 12 N.º 1. págs. 187-197. 2014 Uma aldeia milenar da Ribeira Lima: a sacralização do seu espaço paroquial Carlos A. Brochado de Almeida* Universidade do Porto Instituto Superior da Maia (Portugal) Resumo: O turismo cultural não vive só de realidades físicas, alimenta-se também da chamada cultura imaterial presente em cada recanto, em cada terra, em cada espaço geográfico. Ora a Ribeira Lima é um espaço privilegiado para analisarmos tais pressupostos, já que por aqui se entrecruzam festas e romarias com práticas outrora tidas como pagãs. O povo cristão tanto procura a romaria da Senhora da Agonia ou da Senhora da Peneda como participa activamente nas Feiras Novas de Ponte de Lima, uma realidade onde o sagrado tão bem se casa com o profano. É este mesmo povo que corre a pedir a proteção dos tauma-turgos contra a peste, a fome, a guerra e as doenças de ossos (São Sebastião, São Roque e Santo Amaro), do mesmo modo que se protege com amuletos e ervas contra bruxas e feiticeiras, dos maus olhados e dos vizinhos invejosos. É este mesmo povo que bem cedo, nos alvores do II milénio, traçou os limites das suas paróquias e tratou de as proteger, bem como às suas casas e bens com os mais diversos símbolos, uns cristãos, outros oriundos de práticas bem mais ancestrais. Qualquer paróquia da Ribeira Lima serviria de exemplo, mas escolhemos a Santa Leocádia de Geraz do Lima, do município de Viana do Castelo, porque o ano de 2013 é o milenário da sua fundação. Palavras-chave: Cultura imaterial; identidades; sistemas de representação A millennial village of Ribeira de Lima: the sacralization of its parish space Abstract: cultural tourism does not live on physical realities alone; it also feeds on the so called imma-terial culture, present on every corner, in each land, in each geographical space. Ribeira Lima is a privi-leged space to analyze such presuppositions, since here feasts and processions are blended with practices that were once considered pagan. The christian people both seeks the Senhora (Our Lady) da Agonia or Senhora da Peneda processions, and actively takes part in the Feiras Novas (New Fairs) of Ponte de Lima, a reality where the sacred is so well combined with the secular. It is this very people who hastens to ask for the protection of thaumaturges against plague, famine, war and bones’ ailments (Saint Sebastian, Saint Roque and Saint Amaro), also protecting itself with amulets and herbs against witches and sorcerers, against evil eye and envious neighbours. It was this people who, early on, at the dawn of the II Millennium, has drawn the limits of its parishes, and took steps in order to protect them, as well as its homes and property, with the most diverse symbols, some christian, some originating in far more ancestral practices. Any parish of Ribeira Lima would serve as an example, but we chose Santa Leocádia de Geraz do Lima, of the municipality of Viana do Castelo, because 2013 is the millennial of its foundation. Key Words: Immaterial culture, identities, representation systems * Professor da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e do Instituto Superior da Maia – ISMAI (Portugal); investigador principal do CEDTUR – Centro de estudos de Desenvolvimento Turístico/ISMAI e do CETRAD – Centro de estudos Transdisciplinares para o Desenvolvimento (uI&D 4011 da Fundação para a Ciência e a Tecnologia – Por-tugal); E -mail: calmeida@letras.up.pt PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 12(1). 2014 ISSN 1695-7121 188 Uma aldeia milenar … 1. A delimitação do espaço paroquial O povoamento da Ribeira Lima sempre foi disperso e as paróquias surgiram quando um pequeno grupo de lavradores espalhados pelo ager sentiram a necessidade de terem uma identidade comum. Uma paróquia medieva era o somatório de pessoas, de terras agrícolas, de terrenos de monte e de floresta. A isto chamou Ferreira de Almeida a trilogia ager- -souto -monte, explicando, muito bem, que todos eles eram mais que necessários para que houvesse equilíbrio entre os moradores (Almeida,1981, 203 -204). Dos campos agrícolas vinha a subsistência da casa de lavoura, mas esta precisava dos matos, das pastagens, da floresta, do monte, dos sítios onde brotava a água para cobrir as mais diversas necessidades. Enquanto os terrenos agrícolas e de floresta eram à data já privados, as áreas de monte permaneceram comunitárias durante muitos séculos e em certa medida ainda hoje o são, porque era nelas que os moradores procuravam os matos, a pedra e espaços de pastorícia. Foi com a finalidade de defender interesses comuns que nasceu a ideia de delimitar o terri-tório de cada comunidade. De um modo geral as paróquias medievas procuraram traçar os seus limites pelo cume dos montes, pelas linhas de água mais proeminentes e quando não as havia escolheram -se marcas antigas que se sabiam existir e que por isso mesmo eram identifica-das e respeitadas. É assim que entram neste domínio as antas ou mamôas, os menhires, as grandes penedias isoladas, os castros e caste-los localizados nos pontos altos e estratégicos dos montes. Quando nada disto havia, nomea-damente, no meio das agras arroteadas e apla-nadas, sem outros acidentes que não fossem as árvores, quase sempre de fugaz existência, os limites foram estabelecidos com recurso a mar-cos de pedra, bem visíveis e identificáveis. A sacralização do território, mormente o paroquial, desde a Idade Média que se fez cons-truindo igrejas e capelas, levantando cruzes e cruzeiros, gravando nas penedias que circundam o aro da paróquia, sinais apotropaicos capazes de esconjurarem as maléficas influências que pro-curavam alterar e se possível destruir a a comu-nidade que vivia sob a proteção dos símbolos cristãos. Foi dentro desta linha de pensamento que a organização paroquial centrou a sua con-vivência religiosa em redor da sua ecclesia, tal como em torno das capelas que a devoção popu-lar foi erguendo na berma dos caminhos e nos altos dos montes que rodeiam à aldeia. Umas, com o fito de reverenciar os santos sua devoção; outras, para esconjurar as forças demoníacas que se acoitavam nas quebradas dos montes e no interior de velhos habitas da Proto -História, tidos como lugares de especial predileção de certas forças que no início da Alta Idade Média, São Martinho de Dume considerou como demo-níacas, entidades que os homens da Baixa Idade Média acabaram por transformar em feiticeiras, bruxas e mouras: “porque encender velas junto a las piedras y a los árboles y a las fuentes y en las encrucijadas, ¿qué otra cosa es sino culto al diablo? Observar la adivinación y los agüeros, así como los días de los ídolos, ¿qué otra cosa es sino el culto del diablo? (López Pereira, 1996). O medo, o temor que tais figuras, indepen-dentemente da sua forma e modo de atuar, influíam no espírito de populações pouco letra-das e impregnadas de um cristianismo eivado de fortes reminiscências de anteriores religiões, agora tidas por pagãs, conduziram à proliferação de simbólicas capazes de esconjurar as forças maléficas, tidas como mandatadas pelo diabo. Foi assim que nasceram as ferraduras e as cru-zes, a par de outros símbolos religiosos grava-dos nos penedos que rodeiam a freguesia, sinal visível que o espaço comunitário estava sob a proteção de Deus. Como bem o entendeu Carlos A. Ferreira de Almeida, mais que cristianizar ou sacralizar “as cruzes e outros sinais amuléticos, gravados em penedos em redor da povoação e nas encruzilhadas, destinavam ‑se a proteger e a exorcizar o território dos entes maléficos” (Almeida, 1981, 207). Os sinais cruciformes embora possam ser entendidos como manifestações anteriores ao cristianismo, raramente o serão em Portugal e sobretudo no espaço minhoto. A simbologia dos homens da Proto -História do Noroeste Penin-sular não comportava tais sinais e tão pouco a dos romanos e dos hispano -romanos não cristia-nizados. Até à morte de Cristo, a cruz era vista como símbolo pejorativo, nada digno e tão pouco dignificante, mas tudo mudou com os primeiros cristão. A cruz passou a ser símbolo de fé, de sal-vação, de orgulho, mas também de proteção e de definição de espaços territoriais de comunidades irmanadas nos mesmos princípios, embora cada uma tivesse a sua própria ecclesia. Era nela que morava o patrono da comunidade, tantas vezes acompanhado das suas próprias relíquias. A sua missão primordial era proteger os vivos, mas quando a morte os levava, era no espaço eclesial que os seus corpos eram depositados à espera da ressurreição. Desde cedo que as paróquias do Entre -Douro- -e -Minho definiram os seus espaços territoriais, os demarcaram e os defenderam, por vezes à PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 12(1). 2014 ISSN 1695-7121 Carlos A. Brochado de Almeida 189 custa de lutas, por vezes sangrentas e de que-relas judiciais. A documentação medieval mais antiga rara-mente fala em cruzes nos limites das freguesias, pois o normal é afirmar -se que a divisão se fazia pelos “suos terminos et divisones antiquas” o que equivale dizer que a definição do território paro-quial tem raízes, em muitos casos, num tempo anterior ao começo da nacionalidade portuguesa. As que conhecemos estão relacionadas com os coutos, como é o caso do de Mazarefes (Conde de São Payo, 1925/26, 136 -155), mas como os limites deles podiam coincidir com os de uma paróquia, não custa aceitar que as tais divisões antigas se tivessem materializado em marcos e naturalmente em cruzes que eram gravadas em lajes e penedos. O texto mais antigo que conhecemos e que faz menção a cruzes tidas como marcas de divisão de territorial, é o Paroquial Suevo, um documento de 569 no qual são mencionadas 134 paróquias agrupadas em 13 dioceses. Neste texto faz -se referência, entre outras coisas, a castros, a cur-sos de água e a cruzes: “ad illo Castro de Rio de Lua et inde vertitur ad illas cruces”(Liber Fidei, doc. 11). A documentação referente ao uso das cruzes só volta a ser profícua a partir do século XVI, quando nasceu a ideia de fazer -se um levanta-mento exaustivo das propriedades que faziam parte do património de cada paróquia. A descri-ção dos bens fundiários determinou também, em paralelo, a definição dos limites territoriais de cada uma, havendo para isso a necessidade dos mesmos serem fixados, retificados ou ratificados em consonância com as autoridades eclesiásti-cas confinantes. De acordo com as regras então determinadas uma comissão que comportava os párocos das freguesias envolvidas, mais um representante da diocese servido por um escri-vão encarregado de elaborar o documento que vinculava todas as partes, determinava os limi-tes e mandava colocar marcos, do mais variado tipo e tamanho, muitos deles contendo símbolos e as iniciais alusivas a cada uma das paróquias intervenientes. Em sítios onde havia penedos ou lajes tidos como inamovíveis, foram então gra-vadas e em certos casos reavivados símbolos, quase sempre cruciformes, que passaram a ser entendidos como marcas de limite paroquial. Ora são precisamente essas, tal como os marcos, que por motivos vários foram desaparecendo dos sítios que ainda hoje definem os territórios das freguesias e que, a existirem, ajudam a dirimir querelas judiciais entre paróquias desavindas. Tal como as demais paróquias da Ribeira Lima, também a de Santa Leocádia procurou estabelecer, cedo, os seus limites territoriais de acordo com os suas vizinhas e que são as seguintes: São Salvador de Vitorino das Donas, São Miguel da Facha, São Tiago de Poiares, Nossa Senhora da Expectação de Carvoeiro, São Mamede de Deocriste, Santa Marinha de Moreira de Geraz do Lima e Santa Maria de Geraz do Lima. Não sabemos quando se estabe-leceram os primeiros limites, mas acreditamos que foi no começo do II milénio, quando o vale foi repartido pelas três ou quatro paróquias, caso se junte às três do antigo concelho de Geraz do Lima, a de São Pedro de Deião. Os limites oficiais desta paróquia são docu-mentados desde 1549. Foi nesta data que se confirmaram os limites com São Salvador de Vitorino das Donas e nos anos seguintes com as demais freguesias. Sintomático é as marcas divisórias serem feitas à base de cruzes grava-das em penedos ou em marcos. Senão vejamos os seguintes exemplos. O limite de Santa Leocádia com Santo Estevão da Facha ocorre em vários sítios, mas um deles localiza -se no monte onde esteve o Castelo de São Miguel, também conhe-cido por Castelo de Aguiar: “O limite dentre estas freguesias de Santa Leocádia e São Miguel da Facha começa de partir e demarcar na coroa do castelo, num penedo que está em cima, com uma cruz bem feita”. O segundo exemplo fomos colhê -lo no Tombo de Santiago de Poiares que explicita e muito bem que na Fonte do Trilho “homens bons e testemunhas implantaram um marco com uma cruz em cima”. O terceiro exem-plo está nos limites meridionais desta paróquia, por alturas da portela de Fornelos, com o marco divisório ali colocado a explicitar claramente que aquela também era a divisão com o Couto de Carvoeiro em 1666(Viana, 2008, 16 -21). 2. A sacralização interna do espaço paro-quial Com os limites definidos e protegida com a aposição de cruzes nos penedos e nos marcos, a paróquia podia e devia avançar para a sacraliza-ção do seu espaço interno, porque a igreja, por si só, não chegava para proteger toda a área e todas as casas dispersas por agras, quebradas e encostas. As cruzes colocadas nos penedos que circundavam a paróquia deveriam funcio-nar como uma cinta protetora, que impedisse os seres maléficos e seus agentes de entrar no espaço comunitário e sobretudo de se instalarem em sítios ermos e esconsos de onde partiam, sobretudo de noite e em dias de tempestade, a infernizar a vida dos pobres camponeses. Os PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 12(1). 2014 ISSN 1695-7121 190 Uma aldeia milenar … sítios ideais para se acoitarem eram os altos dos montes, os antigos povoados e castelos, as anti-gas sepulturas, as fontes, as encruzilhadas dos caminhos e mesmo os moinhos. Por isso, para se protegerem de bruxas, de feiticeiras, de mouras encantadas, de almas penadas, de toda a sorte de seres demoníacos, causadores de tempesta-des, de trovoadas, da queda de nevões e da for-mação de geadas, de chuvas intensas e de verões bem estivais, de pragas, de pestes que dizima-vam homens e animais, o homem limiano tudo fez para que o espaço da sua paróquia e da sua casa ficasse sob proteção divina (Giordano, 1979; Rodriguez Lopez, 1979; Taboada Chivite, 1980; Vasconcelos, 1980; Viana, 2002, Campelo, 2007). Os homens da Idade Média tudo fizeram para proteger o espaço sagrado da sua comunidade daqueles seres que São Martinho de Dume ape-lidou de mulheres demónios, sob o disfarce de sereias, ninfas, dianas, lâmias, mouras encan-tadas, de toda a sorte de seres mitológicos que tinham à sua guarda tesouros encantados e não raras vezes enlouqueciam os homens com falsas promessas de enriquecimento(Lima, 1960). Uma das formas de sacralizar o espaço interno de uma paróquia foi a construção de capelas ou ermidas. A capela, é basicamente um pequeno templo religioso erguido num espaço fora da igreja, mas na sua génese está a palavra que designava o manto de São Martinho, a cappella, relíquia sobre a qual os reis francos faziam os seus juramentos e que era guardado num edi-fício designado por cappella. Mais de acordo com a realidade está a palavra ermida, que na sua origem designa um sítio ermo. Ora muitas das capelas do Entre -Douro -e -Minho foram ini-cialmente levantadas em lugares ermos, sob a invocação dos santos mais em voga e das muitas invocações de Nossa Senhora. As capelas surgiram para a apoio do culto, mas e sobretudo porque os moradores mais distantes da igreja sentiam -se desprotegidos e à mercê de tidas aquelas forças negativas que se supunham habitar em locais onde o símbolo da cruz não se fazia sentir. Por isso não será de estranhar que muitas destas ermidas/cape-las tenham sido erguidas sobre velhos castros e castelos, sítios tidos como habitados por mouras encantadas e forças destruidoras. Basta olhar para o panorama da Ribeira Lima e perceber- -se que Santo Ovídio foi morar para o cimo de um castro em Arcozelo e que Santa Maria Madalena, Nossa Senhora da Conceição, São João, Santo Estevão, São Silvestre, Santa Luzia, Nossa Senhora do Crasto, só para citar os mais óbvios, ocuparam e santificaram antigos locais ocupados por velhos castros da Idade do Ferro. No aro paroquial de Santa Leocádia houve em tempos idos duas capelas que já não exis-tem, mas das quais subsiste a sua memória. No cimo do Monte do Castelo houve uma ermida dedicada a São Miguel, o patrono das hostes celestes sendo orago normalmente escolhido para as capelas que se construíam no interior ou na periferia dos castelos medievais. Na bouça de Santo Tirso houve uma capela dedicada a este santo originário da Ásia menor onde foi mar-tirizado em tempo do imperador Décio. Outra provável capela houve em Fontelas, caso o topó-nimo São Romão derive de uma ermida ou de um campo que foi pertença do convento de São Romão de Neiva. De qualquer modo trata -se de um diácono oriundo de Cesareia ou Antioquia e porque convertia muitos pagãos para o cristia-nismo através da pregação, foi -lhe inicialmente cortada a língua e depois martirizado em 303. As demais capelas da paróquia são mais recentes e inserem -se numa prática que começou a divulgar -se com o início da época moderna. A capela da Senhora da Guia é a mais saliente de todas, fruto de uma devoção especial por parte dos paroquianos desde o já longínquo ano de 1571, quando João do Rego a mandou levantar (Viana, 2008, 67). Seguiram -se outras, normal-mente adstritas a casas senhoriais, muitas delas com sacerdotes na família ou com capelães, que celebravam ofícios divinos, realizavam algumas das efemérides mais importantes da vida fami-liar, mas que também serviam para irradiar para o exterior a importância e a projeção que a casa tinha no meio social. A sacralização do espaço interno de uma paróquia continuou e foi incentivado com a construção de cruzeiros. Estes foram ergui-dos nos altos dos montes para purgar espaços tidos como malfazejos, nas encruzilhadas dos caminhos, nos sítios onde houve morte humana e nos espaços adjacentes às capelas e à igreja paroquial. A morte que ocorria fora do contexto familiar era vista com temor pelos parentes e paroquia-nos e com reticências por parte do clero. Para F. Ariès “a morte feia e vil não é apenas na Idade Média a morte súbita e absurda, como a de Gaheris, é também a morte clandestina que não teve testemunhas nem cerimónias, a do viajante no caminho, do afogado no rio, do desconhecido cujo cadáver se descobre à beira de um campo” (Ariès, 1988, 20). Ora se folhearmos os livros de óbitos desta paróquia vamos lá encontrar, pelo menos dois casos paradigmáticos e elucidativos, em que o abade redator do livro coloca a tónica na causa das respectivas mortes, precisamente porque elas não ocorreram dentro do espaço PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 12(1). 2014 ISSN 1695-7121 Carlos A. Brochado de Almeida 191 familiar. Em 1728, aos 22 dias de Abril “levou Deos desta vida digo = se achou morto em hum caminho junto do lugar de Ventozo cahido sobre hum rego de pouca agoa Domingos Gonçalves morador no ditto lugar, dandose conta ao Dou‑tor Provizor na forma devida. Ele mandou dar sepultura eclesiástica, que lhe foi dada nesta igreja aos vinte e hum dias do ditto mez e anno” (ADV, L. Óbitos). No segundo caso a morte acorreu por afogamento no Rio Lima em 1675 “Aos seis dias do mes de Fevereiro de mil e seis sentos e setenta e sinco falleceo afogada no Rio Lima M(ari)a molher de G(onçal)o Enes” (ADV, L. Misto). Sem dúvida que estas duas mortes foram comentadas e olhadas com desconfiança pelos paroquianos de Santa Leocádia e até prova-velmente trataram de exorcizar o local onde as mortes ocorreram, sobretudo a do lugar de Ven-toso, talvez com uma cruz, talvez com flores e velas acesas. Terras havia em que o local onde uma pessoa morria, era assinalado com pedras que as pessoas que por lá passavam, aí coloca-vam (Sarmento, 1998, 41). Também se ergueram cruzeiros com o intuito de fomentar e até exacerbar o patriotismo popu-lar através dos cruzeiros ditos dos Centenários. O de Santa Leocádia, levantado na parte alta do Carvalhal e a meio caminho para o Monte do Castelo (Viana, 2008, 89), é um bom exemplo de uma sociedade que, em certa altura, mistu-rou sentimentos religiosos com política ativa. Postado em ponto alto, este cruzeiro é um farol para quem o vislumbra de longe e um símbolo da religiosidade de uma comunidade que conti-nua viva e com a sua fé reforçada. O sítio onde havia um cruzeiro passou a ser o sítio onde fregueses levavam os santos prote-tores em procissão festiva anual, quando os fla-gelos atingiam e martirizavam regiões inteiras: pestes, secas, chuvas excessivas, pragas que devastavam searas e hortas. Ia -se em romagem de penitência pedir clemência e ajuda contra forças que não se entendiam e tão pouco domi-navam. Ficaram célebres os cruzeiros postados em frente ou nas imediações de capelas dedica-das a São Sebastião, como símbolos de uma luta intensa contra a peste, um dos maiores flagelos que atingiu a humanidade e que tiveram grave repercussão na ponta final do século XVI. Embora o seu uso seja anterior, foi das dire-tivas do Concílio de Trento, que os cruzeiros passaram a estar presentes em todas as paró-quias portuguesas. Foi a partir dessa altura que no espaço adjacente e normalmente frontal à porta principal da igreja e das capelas mais representativas, passou a haver um cruzeiro que remata quase sempre na figura de Cristo Cruci-ficado, por vezes acompanhado, na face oposta por Nossa Senhora. Desta tipologia é cruzeiro da Capela de Nossa Senhora da Guia, um digno representante de uma devoção que ultrapassa em muito o simples ato da sacralização de um espaço (Almeida et alii, 2013). Foi a devotio moderna quem fomentou a ideia de se criarem réplicas do Calvário de Jerusalém. Foi dentro desta mística, plenamente assumida ao longo dos séculos XVII e XVIII, que nasce-ram os calvários e as vias -sacras (Almeida, 2012, 127). Ambos estão presentes em muitas das paró-quias da Ribeira Lima, postados em outeiros de fácil acesso, mas na maior parte dos casos eles circunscreveram -se ao interior dos adros, seja com a totalidade das cruzes das catorze estações ou reduzidas às três que foram levantadas no Gólgota. Numa fase posterior as cruzes da via- -sacra passaram para o interior da igreja e das principais capelas, passando a ocupar as paredes do corpo central, dispostas desde a porta princi-pal até ao arco -cruzeiro. Paralelamente criou -se uma imaginária condizente com as cenas do Cal-vário que foi colocado em lugares de destaque nas igrejas, normalmente num altar, mas que também passava por representações da Pietá ou mais complexas como os trípticos formados por Cristo Crucificado, Nossa Senhora das Dores e São João Evangelista. No caso vertente da igreja de Santa Leocádia, o tríptico que está na sacristia tem, para além do Cristo Crucificado, cuja haste da cruz está espetada numa elevação decorada com uma caveira, as imagens de Nossa Senhora das Dores e de Nossa Senhora da Pie-dade ou Pietá (Viana, 2008, 58). Na sua génese a via -sacra procurava recriar os passos da Paixão de Cristo na sua caminhada para o Calvário. Por isso, espaçadamente, as cruzes eram colocadas ao longo de um caminho para rematar numa elevação onde se erguiam as três cruzes do Calvário. Em Santa Leocádia também assim foi, porque o seu calvário esteve inicialmente situado num pequeno outeiro a poente do lugar do Feijoal. Mais tarde viria a ser “transferido” para a confluência dos lugares do Carvalhal, Ponte e Subvilar onde se encon-tram um conjunto de quatro cruzes lideradas pelo “cruzeiro vermelho”. As restantes cruzes distribuíam -se ao longo do caminho que se estende até à igreja paroquial onde a cerimó-nia processional quaresmal começava. Era este calvário o destino das procissões quaresmais, nomeadamente, a do Ecce Homo. Presentemente aqui termina a procissão de domingo de Ramos (Viana, 2008, 89). PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 12(1). 2014 ISSN 1695-7121 192 Uma aldeia milenar … Uma outra forma de sacralizar o território passou pela colocação de pequenos nichos na berma dos caminhos mais calcorreados. Foram embutidos nas paredes das propriedades, nas casas de habitação, nos adros das igrejas, na entrada de pontes com a intenção de sacralizar um sítio e ao mesmo tempo de pedir orações pela alma daqueles que já tendo morrido expiavam no Purgatório as faltas cometidas em vida. Tec-nicamente um nicho de alminhas é composto por uma edícula onde há um painel em madeira, chapa e mais recentemente, em azulejo. Raras são as vezes que não estão coroadas com uma cruz, evidente ou disfarçada consoante os casos. O culto das Almas do Purgatório nasceu na Idade Média, quando se estruturou a base teo-lógica que defendia a existência do Purgatório, mas só verdadeiramente e após o Concílio de Trento (Almeida et alii, 2013) é que esta devoção invadiu, verdadeiramente e em pleno, o espaço paroquial. No interior das igrejas foi criado o Altar das Almas com painéis e figurados alusi-vos à representação das almas que expiam no Purgatório, pelas chamas, as faltas cometidas em vida. Ali, quase sempre pontifica a figura do arcanjo São Miguel. Em consonância nasceram as Confrarias das Almas cujo fim último era pugnar, através da oração, pelos morriam, não esquecendo que uma das obras de misericórdia era acompanhar e enterrar os mortos. Fora da igreja este culto espalhou -se pelo aro da fregue-sia, tornando -se, ao longo dos séculos XVIII e XIX numa autêntica devoção popular. Nos nichos das alminhas havia sempre um painel alusivo ao Purgatório. O suporte era quase sempre uma tábua de madeira, mas também se passou a usar a chapa metálica e mais recentemente o azulejo onde as imagens já se apresentam mais estereotipadas. A figura central reproduzida é Cristo Crucificado ou São Miguel munido de espada e balança. Outras figuras presentes são Nossa Senhora do Carmo, São Francisco, Santo António e outros santos do devocional popular. Na parte inferior estão as almas entre chamas à espera que os anjos as levam para o Céu (Almeida et alii, 2013). As alminhas de Santa Leocádia existem e marcam o panorama religioso da paróquia1, tal como existem certos nichos devocionais ligados ao culto de Nossa Senhora. Uns e outros refle-tem a mentalidade popular de procurar em cer-tos certas figuras da hagiografia religiosa, pro-tetores e intercessores contra os males que nos afligem. Se em tempos mais recuados, quando as pestes grassavam ferozmente pelo território, se recorria a São Roque e sobretudo a São Sebas-tião, as dificuldades da vida atual fazem os cris-tãos a direcionarem os seus pedidos para Nossa Senhora da Guia ou para a Senhora de Fátima. À capela de Nossa Senhora da Guia não faltam as romagens e os pedidos de auxílio expressos nos ex -votos que ali se guardam. São Sebastião tem o seu culto no interior da igreja paroquial, mas tempos houve em que a população ia em romagem processional, com cruz paroquial e bandeiras alçadas, à capela de São Sebastião situada na vizinha freguesia de Santa Maria no dia da sua festa (Viana, 2008, 229). Devoção também muito popular entre as gen-tes do Minho é aquela que se relaciona com São Brás, mártir cristão advogado contra as dores de garganta. A sua imagem conserva -se na igreja e o seu culto está diretamente relacionado com a ativi-dade agrícola, com os lavradores sujeitos ao frio e às intempéries capazes de conduzir a debili-dades que estão na origem de gripes e consti-pações, as quais colocam em risco a saúde de quem diariamente convive com as diferenças climáticas que o Homem está longe de controlar e muito menos dominar. Uma outra forma de exorcizar e de proteger o território paroquial dos males que o podiam abastardar senão mesmo destruir, foi a organi-zação de manifestações colectivas – cercos, cla-mores, ladainhas, procissões – que envolviam a comunidade, sem ter de passar, necessaria-mente, pelo seu epicentro, que é a igreja. O local de destino dos clamores eram sempre os pontos mais altos e distantes da paróquia, enquanto os cercos privilegiavam os campos semeados. Em qualquer dos casos, o que se pretendia com tais manifestações que incluíam ladainhas, rezas, não raras vezes barulhos ensurdecedores fei-tos para afugentar toda a sorte de insectos, o excesso de passarada e as doenças que quando infestavam uma seara, a derrotavam por com-pleto, era pedir a proteção divina contra todos estes malefícios. O barulho produzido, destinado a afugentar toda a sorte de malefícios, o caso vertente os que implicavam com a actividade agrária, tem fundamentação bíblica na figura de Josué quando, para conquistar Jericó aconselha que “todo o povo irromperá em grande clamor e a muralha da cidade desabará” (AT, Liv. Josue, 6,6,5). Não esquecer que, segundo a mentalidade das épocas medieval e moderna, todas estas anomalias provinham da malvadez de certos agentes demoníacos que teimavam em levar a humanidade a rebelar -se contra o seu Criador. Convirá também ter presente, que o insucesso de um bom ano agrícola arrastava para a fome PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 12(1). 2014 ISSN 1695-7121 Carlos A. Brochado de Almeida 193 e para a incerteza toda uma população que vivia e comungava da ruralidade. Por isso ao sol e à chuva, em doses certas, juntavam -se os medos ancestrais trazidos por certas mágicas que tinham e deviam ser exorcizadas. Por isso se rezava, faziam -se promessas, sacralizava -se o território por todos os meios que as populações considerassem legítimos, mesmo que tais prá-ticas, fossem tidos como pouco ou mesmo nada religiosamente ortodoxas. Dentro desta linha de pensamento não espanta que hábitos, tidos como nada condizentes com a doutrina cristã no começo da Alta Idade Média por São Martinho de Dume, fossem novamente considerados como impróprios e condenados pelas Constituições Episcopais de Braga em 1538 e nas do Porto em 1585. De acordo com estas duas normas era proibido acorrer aos outeiros com clamores, ladainhas e afins, tal com o não era permitido circundar, processionalmente, penedos tidos como amuléticos, devido aos sinais que tinham gravados. Uns seguramente antigos, outros mais recentes, mas ambos tidos como linguagem do diabo e dos seus agentes. A solução encontrada por parte dos bispos diocesanos, foi autorizar a construção de ermidas em tais locais ou, em hipótese mais simplificada, a ereção de um cru-zeiro (Braga, 1943; Almeida, 1984). Com tais medidas, para a hierarquia católica, aqueles sítios ficavam a coberto das mistificações demo-níacas e acabava -se com um tipo de manifesta-ção, que era mais folclórica que propriamente de fé religiosa. As restrições e mesmo as proibições impostas a certas manifestações de duvidoso carácter reli-gioso, não atingiram as procissões, fossem elas penitenciais ou festivas. Estas sempre foram e são -no ainda, uma fórmula de exteriorização da fé católica, aliás numa vinculação que já está bem expressa no Antigo Testamento, quando Josué ordenou a conquista da Terra de Canaã: “Tomai a arca da aliança e ide com ela adiante do povo” (AT, Josué, 3,5,6). A procissão é uma caminhada feita por pes-soas, sob uma determinada ordem e cerimonial. É um ritual entrincheirado em recordações muito antigas, pois todos os povos da bacia mediterrânica, com egípcios e mesopotâmicos à cabeça, as organizavam e faziam em honra dos deuses que presidiam às respetivas comu-nidades. As procissões incorporavam o povo e as figuras mais gradas, com a classe sacerdotal à cabeça, percorrendo as principais artérias da povoação, quando não eram mesmo fluviais, caso das que se realizavam no Rio Nilo. Tanto aí como noutras festividades, o deus saía em pro-cissão para recarregar energias dos raios solares que o envolviam enquanto era transportado aos ombros dos seus sacerdotes. Como escreveu Pierre Sanchis a procissão “é uma epifania publicamente triunfante, e correla‑tivamente, uma sacralização do espaço” (Sanchis, 1983,120). Por isso a procissão católica faz -se fora da igreja ou da capela, com bandeiras e de estandartes, com cruzes içadas, com lanternas e círios acesos, com andores que levam as ima-gens dos santos que “habitam” na igreja e nas capelas da paróquia, com figurantes que recriam os passos da vida do santo que se comemora ou vestidos de acordo com as promessas feitas indi-vidualmente, com o clero devidamente resguar-dado sob o dossel do pálio. Atrás, na retaguarda, tal como na antiguidade clássica, caminha o povo rezando e pedindo ao santo da sua devo-ção a sua intercessão junto de Deus. Em tempos do cristianismo nascente nestas paragens, o III Concílio de Braga reunido no ano de 675 convi-dava os bispos a participarem na procissão, a pé, levando consigo as relíquias dos santos2. Mais tarde seriam substituídas pela pequena cruz que tem no seu interior um pequeno fragmento do Santo Lenho. A procissão sempre foi um ato de enorme repercussão social, onde os mais diversos corpos do tecido comunitário participavam. Nas mani-festações urbanas, nomeadamente na procissão do Corpo de Deus, participavam toda a sorte de corporações de ofícios a par das autoridades instituídas (Gonçalves, 1984, 69 -89), com o rei a participar na procissão da capital. Em toda a cristandade a procissão das pro-cissões sempre foi a do Corpus Christi. Esta realiza -se 60 dias após a Páscoa e foi criada em 1264 e decretada em 1269 pelo papa Urbano IV, tendo enormes repercussões nos principais cen-tros urbanos, porque a componente civil e polí-tica participava ativamente na sua realização, enquanto nos meios menos urbanos, nomeada-mente nos rurais, era a única festa da qual a componente lúdica da romaria não fazia parte. Em Santa Leocádia a festa do Corpo de Deus já é mencionada no ano de 1735, a par de outras de carácter mais popular como a de São Sebastião e de São Brás, bem como a do Corpo Santo ou de São Pedro Gonçalves Telmo (Viana, 2008, 227), cuja representação gráfica está bem expressa na pintura que se conserva numa edícula patente na parede interior da igreja paroquial3. A docu-mentação referente a esta paróquia diz -nos ainda que aqui se realizavam outras festividades que podiam ter ou não uma procissão, uma das quais era a de Nossa senhora da Guia, hoje tida como a festa maior da paróquia. Entre outras destacamos outras manifestações públicas que PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 12(1). 2014 ISSN 1695-7121 194 Uma aldeia milenar … vêm descritas no livro de Usos e Costumes do abade João Álvares Pereira, segundo o qual, por volta de 1701, se realizavam as seguintes procis-sões: das ladainhas, da sexta -feira santa, de São Sebastião, do Corpus Christi e a das Bulas. De acordo com o referido texto a procissão das ladainhas realizava -se em Maio, sendo o pároco obrigado a dar três voltas em redor da igreja “cantando a ladainha com os fregueses com as preces até o fim”. Era igualmente obri-gado a fazer o mesmo todas as sextas -feiras da Quaresma, excepto a Sexta -feira Santa que “neste dia não ha ladainha nesta igreja”. Acon-tecia também haver procissão para a capela de São Sebastião, no dia da sua festa, tal como havia outras nos dias em que os padroeiros de Santa Maria e de Santa Marinha de Moreira realizavam a sua festa. No dia da festa de Santa Leocádia era a vez destas paróquias retribuírem, com as suas cruzes processionais a visita ante-riormente feita Viana, 2008, 295 -297). Até ao século XVI eram raras as paróquias que tinham sacrário, mais a presença perma-nente do Santíssimo Sacramento. Verdadeira-mente não sabemos quando foi instituído nesta paróquia, mas sabe -se que já existia em 1630 de acordo com um dos Capítulos de Visita feita à paróquia (Viana, 2008, 153). A presença do Santíssimo Sacramento exigia a permanência constante de uma lâmpada alimentada a azeite o qual provinha de legados atribuídos ou das oliveiras que foi determinado plantar no adro de cada igreja. Nesta paróquia, de acordo com o Tombo de 1552, sabe -se que já havia três olivei-ras no respectivo adro, daí que se presuma que a presença do Santíssimo seja uma realidade no decorrer do século XVI. Era daqui que partia o “viático” para os doentes das paróquias do con-celho de Geraz, antes da instituição dos respec-tivos sacrários (Viana, 2008, 154). A presença da luz da lâmpada do sacrário era um elemento reverencial, mas também um símbolo da presença de Cristo naquele local. Sendo Cristo a luz do mundo, nada mais natural a sua presença que é multiplicada nas muitas velas que se acendem nos altares sempre que há cerimónias religiosas e naturalmente no círio pascal que no presente se encontra junto da pia baptismal. 3. A voz do sino Se não há paróquia sem igreja, dificilmente poder -se -á entender esta sem a sua torre sineira. O uso de instrumentos metálicos capazes de produzirem sons metálicos é muito anterior ao aparecimento do cristianismo, pois a Arqueolo-gia regista -os em sociedades mediterrânicas bem anteriores ao nascimento de Jesus Cristo. Entre elas estão os Judeus do Antigo Testamento quando, a propósito das vestes sacerdotais que Aarão tinha de envergar nos actos oficiais, foi determinado o seguinte: “Farás o manto do efod inteiramente de púrpura violácea... Aarão vesti ‑lo ‑á para exercer as suas funções; quando entrar no santuário, diante do Senhor, e quando sair ouvir ‑se ‑á o som das campainhas, para que ele não morra” (AT, Ex, 28,35). Para além dos hebreus também os romanos usaram as cam-painhas nas mais diversas funções, fossem elas religiosas ou civis, no caso vertente quando pre-tendiam anunciar a abertura das termas e dos mercados. No seguimento das mais diversas acultu-rações, também o ocidente peninsular passou a usá -las, já que estão registadas em diversas escavações arqueológicas. A par delas há tam-bém os pequenos chocalhos para animais que mais não são que uma forma divergente, da sonora campainha de uso mais pessoal e inti-mista (Centeno, 2011, 116). Foi a descoberta do bronze, uma liga metálica que reúne estanho e cobre, quem propiciou o fabrico destes pequenos objectos e permitiu tirar partido da sonoridade quando a hierarquia religiosa cristã os começou a aplicar nas igrejas como forma de chamamento dos fiéis ao culto. Os primórdios deve ser procu-rado nos tempos mais remotos do cristianismo oficial (século IV) quando os protótipos dos sinos actuais começaram a fazer parte das constru-ções religiosas onde se celebravam os mistérios da morte e redenção de Jesus Cristo. Embora se diga que foi após a liberdade de culto orde-nada pelo imperador Constantino que as igrejas começaram a incorporar o sino como elemento, a convicção é que tais notícias são vagas e carecem de verdadeira confirmação. No entanto é comum afirmar -se que o “primeiro” sino apareceu numa igreja de Nola (Itália) pelo ano de 431, portanto cerca de um século após a declaração de 313 que ficou consagrada como Édito de Milão. O uso nas igrejas e demais templos cristãos terá sido gradual ao longo da Alta Idade Média, sabendo -se que no século VIII a torre da basí-lica constantiniana do Vaticano tinha já o seu sino e que a partir do século VIII rara seria a igreja e catedral que não estivesse equipada com tal objecto sonoro (Almeida, 1966, 342). Para o efeito construíram -se torres ou campanários, umas adossadas ao tramo principal das igrejas, outras separadas fisicamente delas, tanto na frente como na retaguarda. Sempre que possí-vel foram erguidas mais altas que a restante PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 12(1). 2014 ISSN 1695-7121 Carlos A. Brochado de Almeida 195 construção para que o som se propagasse o mais distante possível e se tornasse audível aos cren-tes espalhados pelo espaço físico da paróquia e assim pudessem acorrer ao seu chamamento. Com o rodar dos séculos também as capelas, das maiores às mais humildes, incorporaram um ou mais sinos de menores proporções, colocados, não em torres sineiras que ficaram reservadas paras as igrejas, basílicas e santuários, mas em pequenas edículas dispostas lateralmente sobre uma das cornijas ou então sobre a empena prin-cipal, sobre a porta principal do templo. Esta solução foi também, muitas vezes aplicada nas igreja românicas e posteriormente nas de traça quinhentista como ainda é possível ver -se em algumas das construções que na Ribeira Lima chegaram ao tempo presente. Na opinião de Ferreira de Almeida se “uma igreja, um campanário ou uma sineira são os sinais da autonomia de uma povoação” (Almeida, 1966), o som dos sinos, para além do aspecto prático e funcional, encerra a magia da proteção divina, porque o som que dele emana esvoaça por todo o aro paroquial. É, por isso mesmo, uma outra forma de sacralização do espaço. O som do sino é sagrado porque foi benzido, e é tido como apotropaico, porque emana do espaço reverencial que é a igreja ou a capela e estende o seu manto protector até onde se consegue propa-gar. Ao ouvir a sua voz, o povo cristão sente -se duplamente protegido. Pela cruz que está pos-tada no alto da torre ou da empena da igreja e pelas ondas sonoras do sino que envolvem quem as ouve e que que são uma eficaz profilaxia contra toda a sorte de malefícios espalhados e difundidos pelas forças demoníacas. Durante séculos o campanário pautou e regu-lou a vida da comunidade. Diariamente o som do sino intervém na vida comunitária através do toque das Avés Marias ou seja da Hora do Angelus, que relembra, por três vezes (6, 12 e 18 horas) o momento que o anjo anunciou a Maria que ia ser mãe do Sal-vador. O toque do sino, pela manhã, também lem-brava aos homens do campo que era hora de iniciarem as suas actividades diárias, que para muitos deles começava com a missa matinal. Marcava, também, o fim da quadra nocturna, tida como espaço das trevas e da escuridão e que por isso mesmo era propícia à circulação e difusão de tudo o que era manifestamente hostil ao bom povo de Deus. O toque do sino pelo raiar da aurora tinha o condão de afugentar todos os seres maléficos que se acoitavam na noite, indicando aos paroquianos que os caminhos da aldeia voltavam a estar seguros, porque e entre-tanto a luz começava a raiar e tais forças obscu-ras que tinham horror à claridade, símbolo da pureza e da felicidade, voltavam a esconder -se até ao toque das Trindades. O som do sino ao meio -dia, para além de lembrar aos cristãos que o momento era de ora-ção e de agradecimento ao Senhor pelas graças concedidas, recordava, também, ao povo que trabalhava nos campos, que era tempo da pausa para o jantar, fosse ele em casa ou no campo. Era também o momento da sesta, que se fazia no horário de verão e que só terminava no dia 8 de Setembro dia em que se realizava a festa em honra de Nossa Senhora das Necessidades. Ao toque das Trindades, também apelidado de toque das Almas, cessava todo o labor nos campos, havendo o especial cuidado de não trazer gado atrelado aos carros depois dessa hora por ser manifestamente perigoso para os humanos sair da órbita dos bovinos. Ao findar o toque dos sinos, de acordo com a crença popu-lar, abriam -se os portas do inferno e do alto dos montes e das brenhas mais fundas saiam as bruxas, as feiticeiras, as almas penadas e toda uma série de seres infestantes e diabolicamente perigosos para quem se aventurasse a caminhar pela noite, sem a proteção da cruz e de uma luz. Aliás, depois do toque das Trindades era usual os namorados separarem -se e as pessoas da casa ficarem inquietas com retardatários. É que a noite é para os animais selvagens e para os espíritos e ambos são demasiadamente perigo-sos qua do agem no seu meio natural (Almeida, 1966, 340). É à voz do sino que os cristãos vão para a igreja assistir aos ofícios divinos. Diariamente chama -os para a missa e para outros momentos litúrgicos que podem não ter momento fixo, mas que se multiplicam em certos dias do ano, nome-adamente na Páscoa, quando os sinos dão as três badaladas comemorativas da morte do Jesus Cristo e repicam festivamente no momento da Aleluia ou seja da Ressurreição. É através da voz do sino que a comunidade sabe do passamento de um dos seus membros, que são convidados a acompanhar o defunto à sua última morada e hora em que se realizam as cerimónias fúnebres. O som do sino é festiva, conciliadora, pun-gente, mas também protectora e congregante. Em momentos de calamidades, era o sino que chamava os cristãos à oração, às procis-sões penitenciais, aos cercos e clamores, à pro-cissão festiva em honra dos santos protectores. Acreditava -se, que à poderosa voz do sino, as tempestades amainavam e a trovoada e o gra-nizo iam para outras paragens, porque eram PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 12(1). 2014 ISSN 1695-7121 196 Uma aldeia milenar … comandadas, segundo certa crença popular, por entidades maléficas (Almrida, 1966, 350 -351). Finalmente era à voz do sino que os fregueses se reuniam no adro da igreja em momentos de crise, quando a paz e a segurança da aldeia corria o risco se ser seriamente alterada. Tem-pos houve em que os ataques dos vikings e dos sarracenos alteravam a pacatez das populações rurais ribeirinhas do Rio Lima. Com a separa-ção física o reino leonês, os motivos de preocu-pação passaram a ser outros: os enredos entre a nobreza regional, as disputas entre castelhanos e portugueses, as intromissões de franceses e ingleses na política peninsular, as guerras civis, as revoltas populares da 2ª metade do século XIX com a Maria da Fonte à cabeça, o bandi-tismo corporizado na figura de Zé do Telhado e nas outras malta de ladrões que actuavam por todo o Entre -Douro -e -Minho. Finalmente era à voz do sino que tocava a rebate que os camponeses se reuniam para acu-dir aos fogos que grassavam nos montes com o fim de revitalizar os pastos, mas que, quando descontrolados, ameaçavam casas e campos com cereal, mais as medas e palheiros, ambos bens preciosos para alimento dos gados em períodos de inverno. Se o som do sino era garantia de protecção para os humanos, o som da campainha ou do chocalho tinha a mesma função junto do gado. Desde tempos imemoriais que pastores e agri-cultores, nas mais diversas partes da bacia mediterrânica rodearam o pescoço com os mais diversos motivos amuléticos, sobressaindo entre eles as campainhas ou chocalhos. Desde o Minho às Astúrias o chocalho pendente do pescoço dos animais ou do jugo, quando de trata de bovinos atrelados, tinham como finalidade exercer a mais ampla protecção possível contra os maus olhados e males de inveja. Bibliografia Almeida, Carlos A. Brochado de 2012 “Santuários de Peregrinação do Entre Douro e Minho Barroco”. Em Oliveira, Auré-lio; Gonçalves, Eduardo; Pereira, Varico (Eds.), O Barroco em Portugal e no Brasil, Maia: ISMAI. Almeida, Carlos A. B.; Gonçalves, Mário C. S.; Almeida, Ana Paula A. R. de 2013 Fé e Religiosidade Popular em Ponte de Lima. Cruzeiros, Vias –Sacras, Nichos e Alminhas. Ponte de Lima: Câmara Municipal de Ponte de Lima. Almeida, Carlos Alberto Ferreira de 1966 “Carácter Mágico do Toque das Campai-nhas” Revista de Etnografia, 6(2). 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