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www.pasosonline.org © PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural. ISSN 1695-7121 “O caminho é aqui”: um estudo antropológico da experiência do Caminho de Santiago de Compostela em uma associação de peregrinos do Rio Grande do Sul, Brasil 1 Rodrigo Tonioli Universidade Federal do Rio Grande do Sul Resumo: O foco de interesse empírico deste trabalho são as atividades desenvolvidas pela Associação dos Amigos do Caminho de Santiago do Rio Grande do Sul (ACASARGS). Trata-se de uma organização sem fins lucrativos que visa promover e conservar o Caminho de Santiago de Compostela a partir da organização de caminhadas que procuram reproduzir, no interior do Rio Grande do Sul, as dificuldades e as distâncias diárias percorridas no Caminho espanhol. Problematizo, aqui, a perspectiva teórica que relaciona turismo com prática do não-cotidiano e apresento, a partir de uma narrativa etnográfica, o modo pelo qual as atividades da ACASARGS constituem-se, para os peregrinos, como eventos capazes de rotinizar a experiência da peregrinação no Caminho de Santiago mesmo fora da Espanha. Palavras-Chave: Caminho de Santiago; Peregrinação; Turismo Religioso; Cotidiano; Communitas; Turismo Title: “The way is here”: Anthropological studies about St. James Way at Santiago de Compostela at a Pilgrims Society in Rio Grande do Sul State, Brazil Abstract: This article focuses the activities of Friends of St. James Way in Rio Grande do Sul Association (ACASARGS) which is a nonprofit organization that aims to promote and preserve St. James Way at that Brazilian estate, in roads that reproduce the difficulties and the daily distances in the Spanish route. Discussing some theoretical approaches that relate tourism to the practice of non-routine activities, through an ethnographic narrative I suggest that ACASARGS activities change pilgrimage experience at St. James way into a routine out of Spain. Keywords: St. James Way; Pilgrimage; Religious Tourism; Uneventful; Communitas; Tourism iMestrando em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia. Email: rodrigo.toniol@gmail.com Vol. 9(3) Special Issue págs. 69-82. 2011 PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 9(3). Special Issue. 2011 ISSN 1695-7121 70 Introdução Este artigo tem como foco de interesse empírico a prática de caminhadas na As-sociação dos Amigos do Caminho de San-tiago do Rio Grande do Sul (ACASARGS). Trata-se de uma organização sem fins lucrativos que visa promover e conservar o Caminho de Santiago de Compostela a partir de caminhadas em percursos que reproduzem, no interior do Rio Grande do Sul - Brasil, as dificuldades e as dis-tâncias diárias percorridas no Caminho. Soma-se a este aspecto a presença de uma série de elementos que remetem os pere-grinos a Santiago, tais como: conversas, objetos usados na peregrinação, amuletos e conchas de vieira presas à mochila2. A partir deste contexto, procuro refletir so-bre o modo pelo qual as caminhadas da ACASARGS realizadas no Brasil têm uma capacidade de subversão espaço-tem-poral reportando os peregrinos a experi-ências que, a priori, estavam acessíveis apenas no Caminho espanhol. A partir da observação participante e de entrevistas realizadas com os sujeitos envolvidos nas caminhadas e noutras ati-vidades da ACASARGS, procuro compre-ender como as caminhadas se constituem como uma espécie de rotinizadoras das experiências da peregrinação à Compos-tela, permitindo, assim, que se proble-matize a concepção de eventos turísticos como momentos do não-cotidiano. O que está em jogo é apresentar, desde uma perspectiva antropológica, como as expe-riências do Caminho de Santiago para os peregrinos não se definem a partir da feitura de um percurso num determinado território, mas, antes disso, no modo pelo qual os espaços são mobilizados subjetiva-mente de maneiras específicas. A ordem de exposição deste texto apresenta, num primeiro momento, a po-pularização do Caminho de Santiago e o papel das Associações do Caminho neste processo. Noutro momento, apresento o panorama híbrido no qual o Caminho de Santiago se insere, explicitando uma sé-rie de sobreposições entre elementos como turismo, espiritualidade e mercado. Em uma terceira sessão, aponto para algu-mas perspectivas teóricas sobre turismo que associam este fenômeno com o não- -cotidiano, bem como os desdobramentos destas perspectivas nas análises de pere-grinações e turismo religioso. Noutra ses-são, elaboro uma narrativa etnográfica na qual descrevo as táticas e estratégias das caminhadas da ACASARGS para “re-produzir” o Caminho de Santiago no Rio Grande do Sul, Brasil. Por fim, discuto aspectos relativos à prática do espaço dos sujeitos que caminham e que planejam a caminhada, articulando noções como pai-sagens, espaço e tempo. O Caminho de Santiago num contex-to de Nova Era: continuidades e rup-turas numa peregrinação cristã A raiz etimológica do termo “peregri-nação” deriva do vocábulo latino peregri-nus que significa o estrangeiro, aquele que vive alhures e que não pertence à sociedade autóc-tone estabelecida, ou seja, é aquele que percorreu um espaço e, neste espaço, encontra o Outro (Dupront, 1987) Tal acepção aponta para o encon-tro com “o Outro” como indicativo de um duplo aspecto. Por um lado, este encontro remete às dificuldades objeti-vas da jornada empreendida pelo pere-grino que, ao percorrer lugares desco-nhecidos e enfrentar as adversidades do caminho, termina por imprimir nessa viagem características de uma jornada heróica. E, por outro, refere-se ao ato de transformação de si alcançado por meio de um deslocamento do “eu” em busca do “Outro”, constituindo um percurso inte-rior, de cunho místico e ascético, a ser re-alizado por aquele que peregrina (Toniol e Steil, 2010). Nancy Frey, no livro “Pilgrim stories: on and off the road to Santiago” (1998), mostra como a peregrinação se inicia num período anterior a ida efetiva a Santiago. O movimento físico no Caminho é anteci-pado por uma espécie de movimento inter-no que convoca o peregrino a refletir sobre si, a colocar em questão seus “apegos” con- “O caminho é aqui”: um estudo antropológico da experiência do Caminho... 71 PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 9(3). Special Issue. 2011 ISSN 1695-7121 Rodrigo Toniol duzindo-o a decidir, por exemplo, o que le-vará na mochila durante os trinta e dois dias de caminhada. Sob certa perspecti-va, aponta a autora, esta convocação ao “desapego” se apresenta aos sujeitos como um exercício não habitual, contrastivo com sua vida cotidiana. A utilização des-te recurso que coloca em relevo oposições como cotidiano e não-cotidiano, trabalho e não-trabalho, ordinário e extraoridi-nário, para analisar e descrever práticas turísticas - sejam elas religiosas ou não - tem sido freqüente entre os pesquisadores destes fenômenos (Smith, 1989; Graburn, 1989; Urry, 1990; Tuan, 1983). Embora o “desapego” e a “viagem ao interior de si” sejam características mar-cantes das peregrinações cristãs, algu-mas propriedades distintivas do Caminho de Santiago transformam-no em um lócus privilegiado para se observar a incorpora-ção, pelo catolicismo, de novas estruturas de sentido. O catolicismo, nesse caso, ex-pande- se para além dos marcos dogmáti-cos e institucionais da Igreja Católica po-dendo, ao mesmo tempo, ter assegurada a sua continuidade a partir, justamente, da descontinuidade em relação à tradição e ortodoxia católicas. Semelhanças e desse-melhanças, permanências e modificações no âmbito do catolicismo não necessaria-mente operam como práticas excludentes, mas coexistem, contraditoriamente, em suas temporalidades diversas. Nesse panorama, o Caminho de San-tiago assume um papel ambivalente. A permanência de certas qualidades distin-tivas das peregrinações cristãs – “uma busca mística de si, como uma jornada de santificação que encontra seu ponto de chegada no reconhecimento de uma divindade que se manifesta no interior de cada devoto” (Steil, 2003) – também permite que essa mesma característica se modifique na experiência religiosa dos peregrinos associados a contextos cultu-rais específicos. Grosso modo, apesar do termo não ser consensual, essas novas es-truturas de sentido dizem respeito a prá-ticas afinadas com certo “espírito Nova Era”. A reapropriação do Caminho de San-tiago a partir desse contexto pode ser caracterizada, sobretudo, pela autonomi-zação da experiência religiosa do peregri-no frente a normalizações institucionais e pela busca pelo aperfeiçoamento de si. Processo que parece estar relacionado com uma transformação mais ampla do cenário religioso contemporâneo. Já a consagração do Caminho de Santiago3 como ícone dessas novas formas de rela-ção com o sagrado, foi acompanhada pela produção de best-sellers4, documentários, somados a um oportunismo do mercado turístico que ajudaram a transformar a Rota Jacobea5 em um local emblemático entre aqueles que compartilham valores como culto ao corpo e valorização de expe-riências individuais. A popularização do “novo” Caminho de Santiago e suas Associações A popularização do Caminho de San-tiago de Compostela pode ser expressa por meio de alguns números fornecidos pela Xunta da Galícia6 os quais nos mostram que no ano de 1986 o Caminho recebeu 1461 peregrinos, saltando dez anos mais tarde (1996) para 23.218 e atingindo, em 2004, a marca de 179.944 peregrinos (Car-neiro, 2007). Somente em agosto de 2009, segundo números fornecidos pela oficina de peregrinaciones7, 35.071 peregrinos fi-zeram o Caminho de Santiago. Uma das causas dessa mudança foi o investimento do Ministério do Turismo do governo espanhol na criação, em todo mundo, das chamadas Associações dos Amigos do Caminho de Santiago – AACS (Carnei-ro, 2007). No Brasil, essa organização sem fins lucrativos possui uma sede nacional no Rio de Janeiro, Associação Brasileira dos Amigos Caminho de Santiago (AACSB), e dezenas de filiais em todas as regiões do país. A AACSB estabelece diretrizes para as atividades de suas regionais ten-do como missão promover o “encontro de pessoas e grupos interessados no percur-so, na preservação e na divulgação do Ca-minho de Santiago de Compostela”8. Num documento que orienta as atividades das PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 9(3). Special Issue. 2011 ISSN 1695-7121 72 associações, a AACSB pontua: “Nossa ação voluntária, oferece elementos de aju-da e facilidades para que a peregrinação seja uma oportunidade de crescimento espiritual, cultural e comunitário. Estas ações acontecem, principalmente, através de palestras para futuros peregrinos, com orientações sobre a peregrinação, refú-gios, equipamentos, saúde, comportamen-to, sinalização etc. Periodicamente reali-zamos caminhadas de condicionamento. Somos autorizados pela Oficina de Pe-regrinos a emitir a Credencial do Pe-regrino, serviço que prestamos gratui-tamente, sendo cobradas unicamente as despesas postais de remessa. Disponibili-zamos, na Internet, um website - www. caminhodesantiago.org.br, com todas as informações necessárias para os peregri-nos, o que permite aos residentes fora da área onde se localiza nossa sede, no Rio de Janeiro, acesso aos dados necessários para sua peregrinação, incluindo pesqui-sas constantes de preços mais acessíveis das passagens aéreas rumo à Espanha.”9 Além das facilidades direcionadas à peregrinação pelos Caminhos de Santia-go, a AASC Brasil incentiva o conheci-mento da sua história, cultura e a ma-nutenção das tradições relacionadas com a Rota Jacobea: Consideramos que devem ser manti-dos os sentimentos de solidariedade, acolhida e de hospitalidade inerentes ao espírito das peregrinações compos-telanas, principalmente nos refúgios onde os peregrinos descansam de sua jornada; e serem preservadas a arte, arquitetura e recursos naturais por onde atravessam as diversas ro-tas rumo à Santiago de Compostela. A Associação pretende desenvolver atividades e campanhas que mini-mizem as possibilidades de ações e usos não sustentáveis que possam afetar a integridade destes valores. Estamos associando nossas ações às pessoas físicas e jurídicas, nacionais e estrangeiras, principalmente às as-sociações congêneres, no intuito de promover uma eficiente troca de infor-mações direcionadas a maior atuali-zação possível das informações a serem fornecidas aos que estão se pre-parando para a peregrinação. 10 De modo geral, as atividades das as-sociações consistem na realização de ca-minhadas que reproduzem, em alguma medida, na paisagem, as dificuldades e as distâncias que o peregrino enfrentará diariamente enquanto estiver percorren-do os quase 800 quilômetros do Cami-nho11. Além de preparar aqueles que es-tão indo para Santiago, as AACS reúnem também, por meio de reuniões mensais e caminhadas periódicas de um dia, aque-les que já “fizeram” o Caminho. Na cidade de Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, a Associação dos Ami-gos do Caminho de Santiago do Rio Gran-de do Sul (ACASARGS) tem sua sede na Igreja Nossa Senhora da Piedade onde se realizam reuniões mensais voltadas tanto àqueles que irão à Santiago e que pode-rão, nesses encontros, receber dicas, como também àqueles que querem relatar ao grupo suas experiências no Caminho12. A ACASARGS também atua como uma espécie de agência autorizada do Cami-nho de Santiago, distribuindo a “Creden-cial do Peregrino”, documento que será carimbado ao longo do trajeto em Santia-go e comprovará a distância e os lugares percorridos. Além de ser um objeto de re-cordação e estima, a credencial também permite que o peregrino receba, na Igreja de Santiago, a Compostelana13. Com uma agenda de uma caminhada por mês, que custam entre R$ 50 a R$ 70,0014, as atividades da ACASARGS re-únem por volta de quarenta participantes que se interam do cronograma dos even-tos por meio de correio eletrônico, de um website15 e de reuniões mensais. Para cada uma das caminhadas, constitui-se um grupo predominantemente composto por peregrinos que já fizeram o Caminho em idade entre quarenta e sessenta anos. A maior parte dessas atividades tem du-ração de um dia e ocorrem em cidades do entorno de Porto Alegre. As caminhadas da ACASARGS podem ser descritas, genericamente, como exten-sas distâncias percorridas ao longo de “O caminho é aqui”: um estudo antropológico da experiência do Caminho... 73 PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 9(3). Special Issue. 2011 ISSN 1695-7121 Rodrigo Toniol um único dia, por grandes grupos numa estrada rural sinalizada com setas ama-relas, como as existentes no Caminho de Santiago. Com essas marcações, a presença de guias que orientem a direção correta a ser tomada pode ser dispensada, permitindo, assim, que se caminhe sozi-nho – como a maior parte dos peregrinos faz em Santiago. No estatuto de fundação da Associa-ção gaúcha, o grupo define-se da seguinte maneira: “A ACASARGS, tem por objeti-vo e finalidade, a reunião de pessoas fí-sicas, jurídicas e filantrópicas, que reali-zaram ou que manifestem interesse em conhecer, pesquisar ou fazer a peregri-nação a Santiago de Compostela, na Espanha, promovendo a troca de infor-mações e o intercâmbio cultural, socioló-gico e experimental, bem ainda, todo e qualquer subsídio ou material informati-vo que busque recriar culturalmente o Caminho de Santiago de Compostela, sob o ponto de vista histórico, reli-gioso, artístico, arquitetônico e humanís-tico16. A ACASARGS constitui-se, assim, como uma espécie de representante ofi-cial de tudo o que estiver relacionado à Compostela no Estado, atribuindo a si mesma as prerrogativas desse domínio e reforçando, em diversos âmbitos, sua posi-ção. Em documento publicado pela Fe-deração Espanhola das Associações dos Amigos do Caminho de Santiago, propõe- -se que as Associações nacionais e locais se concebam como “consulados” do Cami-nho, devendo “sempre se manter atentas a grupos que pretendam desvirtuar os ver-dadeiros valores de Santiago”17 . Turismo, espiritualidade e mercado entre os peregrinos A acepção de “turismo religioso” pa-rece evidenciar-se na própria construção sintática do termo. O sentido “religioso” adjetiva o substantivo “turismo” dando a noção de um fenômeno que é, ao mesmo tempo, singular em suas características e comum a outros em sua forma. Carlos Steil (2003), em um esforço de distinção do que seja peregrinação, romaria e turis-mo religioso, afirma: O termo turismo religioso possui uma conotação secularizada e nos remete a uma estrutura de significado que se afirma de fora para dentro do campo religioso. Ou seja, peregrinação e ro-maria são categorias êmicas, usadas por peregrinos, romeiros e mediadores religiosos que se posicionam no cam-po religioso, ao passo que o turismo religioso é externo a essas categorias, sendo usado preferencialmente em con-textos políticos-administrativos (Steil, 2003: 35). A demarcação dos limites do que seja turismo religioso ou peregrinação, no en-tanto, é complexificada quando partimos de um contexto mais amplo de transforma-ção do panorama religioso. A populariza-ção do Caminho de Santiago de Compos-tela, conforme esboçamos anteriormente, esteve intimamente relacionada com um projeto de Estado do governo espanhol e com um esforço por parte de organizações civis dirigidas por peregrinos leigos. O que parece ficar patente, no caso de Santiago, é a perda do domínio sobre a peregrinação por parte da Igreja a partir do momento em que o Caminho passou a ser promovi-do por Associações civis espalhadas pelo mundo. O envolvimento de outros agentes como Organizações Não-Governamentais (ONGs), Associações, secretarias de turis-mo e prefeituras escancaram a formação de um contexto complexo em que turismo, espiritualidade e mercado aparecem como elementos intrincados (Steil e Carneiro, 2008). Deste modo, “a estrutura de signi-ficados religiosa” deixa de estar limitada às práticas inscritas no marco institucio-nal, neste caso, da Igreja Católica e pas-sa a estar presente em contextos tidos, a priori,como seculares. Para Steil, o que diferencia o turismo da peregrinação é: o grau de imersão e de externalida-de que cada uma dessas experiências pode proporcionar. Enquanto as pere-grinações e romarias tendem a ser vis-tas como um ato religioso de imersão no sagrado, o turismo, mesmo quando PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 9(3). Special Issue. 2011 ISSN 1695-7121 74 adjetivado com religioso, caracteriza- -se por uma externalidade do olhar, fundamental para que um evento possa ser considerado como turístico (Steil, 2003: 35). Contudo, há uma série de transfor-mações no panorama religioso que têm contribuído para que não apenas as expe-riências com o sagrado ocorram no plano da intimidade do sujeito, como também a certificação da verdade deixe de estar submetida a normalizações institucionali-zadas, podendo ser atestada pelo próprio indivíduo. Essa desinstitucionalização da religião nos coloca novas questões e im-possibilita a associação direta entre um evento religioso promovido pela igreja e a imersão no sagrado, bem como, entre um evento secular promovido por agentes laicos e a externalidade do olhar. Neste sentido, se as fronteiras entre o religioso e o não-religioso aparecem borradas, a definição de práticas como pertencentes a ordem do sagrado ou a ordem do turístico também tornam-se mais difusas. Este tipo de problematização decorre do esgotamento de perspectivas analíticas dicotomizantes em que externo/interno, sagrado/profano, religioso/secular consti-tuem- se como pólos distintos e capazes de dar conta de variados fenômenos a partir de uma chave heurística do tipo “ou é isto, ou aquilo”. Tendo como referência empíri-ca a prática de caminhadas promovidas pela ACASARGS, elaboro, a seguir, uma discussão inicial sobre o alcance do mo-delo dicotômico cotidiano/não-cotidiano como explicação plausível para o turismo. Turismo como a prática do não-coti-diano O esforço de conceitualização do tu-rismo tem sido freqüente entre estudio-sos do fenômeno e, de algum modo, tem acompanhado uma série de transforma-ções epistemológicas das Ciências Sociais. Embora diversas, conforme os panoramas apresentados por Barretto (2000; 2003) e Silveira (2007), as definições inicialmen-te elaboradas podem ser descritas como conformando dois eixos explicativos. O primeiro deles recorria a elementos eco-nômicos e infra-estuturais para definir o que seja turismo. A presença e atuação de agências e rede hoteleira, por exemplo, são definidoras, segundo tais conceitos, da existência do fenômeno. Outro eixo que podemos denominar de essencialista, conforme propõe Silveira (2007), concebe o deslocamento e o tempo de viagem como determinantes para caracterização do tu-rismo. Numa tentativa de problematizar es-tas perspectivas, alguns autores lança-ram mão de definições que não concebiam o turismo a partir da presença de deter-minados serviços, mas a partir de um tipo de engajamento dos turistas. Conforme estas noções, o turismo se caracteriza a partir de oposições com o ordinário, com o trabalho, com o cotidiano e com a rotina (Smith, 1989; Graburn, 1989; Urry, 1990; Tuan, 1983). John Urry, em seu livro sobre o Olhar do Turista (1990) expressa: (...) torna-se necessário refletir sobre aquilo que produz um olhar turístico diferenciado. No mínimo deve haver alguns aspectos do lugar a ser visita-do que o distinguem daquilo que é en-contrado convencionalmente na vida cotidiana. O turismo resulta de uma divisão binária básica entre o ordiná-rio/ cotidiano e o extraordinário. As ex-periências turísticas envolvem algum aspecto ou elemento que induz experi-ências prazerosas, as quais, em com-paração com o dia-a-dia, situam além do habitual. (...) No entanto, os objetos potenciais do olhar do turista preci-sam ser diferentes de algum modo. Precisam situar-se fora daquilo que é ordinário. As pessoas precisam viven-ciar prazeres particularmente distin-tos, que envolvam diferentes sentidos, ou que se situem em uma escala dife-rente daquela com que se deparam em sua vida cotidiana (pp.28). Desse modo, o “olhar turista” não se constitui como único, universal, presente em toda extensão social, mas sim como uma forma de apreciação definida, sobre-tudo, por meio do contraste com aquilo “O caminho é aqui”: um estudo antropológico da experiência do Caminho... 75 PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 9(3). Special Issue. 2011 ISSN 1695-7121 Rodrigo Toniol que é, para o turista, cotidiano. A cons-tituição do “olhar do turista” depende, portanto, de experiências não-turísticas. Assim, é, justamente, a partir de uma re-lação contrastiva com aquilo que é habi-tual que práticas turísticas podem se ins-crever na ordem do extraordinário. Se por um lado, a definição do turismo como um modo específico de engajamento, cristali-zado em um tipo de “olhar”, problemati-za noções essencialistas e economicistas, por outro, ao recorrer ao contraste com o não-turismo, Urry dispersa a potência da análise do turismo como um fenômeno au-tônomo, tornando-o sempre atado ao seu estado contrastivo. A emergência desse contraste com o que é rotineiro é o próprio ponto de par-tida para Nelson Graburn definir, em seu texto seminal “Turism: the sacred journey”(1989), o que seja turismo. Para Graburn, eventos turísticos se definem enquanto tais por sua característica de ser um não-trabalho, oposto daquilo que é diário. O tipo de perspectiva lançada por Graburn destaca os aspectos relacionais entre eventos turísticos com àquilo que é vivido no cotidiano e, portanto, re-gulado. Tourism in the modal sense emphasi-zed here is but one of a range of choi-ces, or styles, of vacation or recreation – those structurally - necessary, ritua-lized breaks in routine tha define and relieve the ordinary (Graburn, 1989: 23). Embora tenham proporcionado um avanço nos aportes teórico-metodológicos disponíveis para a compreensão do turis-mo, estas conceitualizações parecem en-contrar seus limites quando se busca com-preender, por exemplo, os resorts. Nestes espaços, o que está em jogo não é o exótico, mas uma projeção de um cotidiano este-reotipado, padronizado, a imagem e se-melhança dos países de origem do turista (Silveira, 2007:24). As caminhadas promovidas pela ACA-SARGS, conforme procurararei apresen-tar, também conformam um contexto ca-paz de problematizar esta relação entre práticas turísticas e o não-cotidiano A communitas como não-cotidiano: uma breve retomada dos aportes te-óricos dos estudos sobre peregrina-ções e turismo religioso No que se refere a produção dedicada às peregrinações e ao turismo religioso podemos dividir esses estudos, seguindo a proposta de Steil (2003), em três grandes correntes teóricas, das quais me deterei, especialmente, em uma delas. A primei-ra é o funcionalismo que predominou na análise destes eventos até meados da dé-cada de 1970. Segundo esta perspectiva, a peregrinação é um fenômeno religioso que exerce a função de aumentar a coerência e a integração cultural dos grupos. Esta visão é bastante referenciada pelas idéias durkheimianas sobre sociedade como um todo coerente, orgânico e ordenado, em al-guma medida, por representações sociais que emergem de categorias religiosas. A religião, para Durkheim (1996), não se definia a partir de entidades sobrenatu-rais, mas sim por meio da administração através de rituais daquilo que é sagrado e profano. Essa dualidade não se restrin-ge apenas aos fenômenos religiosos como também ordena o social. Deste modo, as peregrinações são tomadas enquanto eventos unificadores do social e regenera-dores da moral. Estudos como os de Spi-ro (1970), Marx (1977), Rabinow (1975) e Wolf (1958) são alguns dos trabalhos que seguem esta perspectiva. A partir da década de 1960, os estudos de Victor Turner (1978; 1978b; 2008) rom-peram com as perspectivas funcionalistas que concebiam as peregrinações como eventos unificadores do social e regenera-dores da moral. Assim, Turner afasta-se da proposta, desloca o interesse durkhei-miano pelas coesões de um determinado grupo num contexto geográfico específico e passa a privilegiar as transformações, os processos pelos quais os eventos em questão atravessam. Victor e Edith Turner (1978b) busca-ram compreender as peregrinações cris-tãs a partir da análise de Van Gennep (1978) sobre os ritos de passagens. Estes ritos, que acompanham toda mudança de PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 9(3). Special Issue. 2011 ISSN 1695-7121 76 lugar, estado ou posição social, são cons-tituídos por três estágios: separação, tran-sição/ liminaridade e agregação. Interessa a Turner , sobretudo, a liminaridade, um estado que é difícil de localizar numa rede de classificação porque está, justamente, num ponto que escapa às classificações, que foge às categorias estruturais empre-gadas. É nesse momento liminar que se estabelece, entre os neófitos, um clímax de camaradagem em que traços distintivos de status sociais anteriores ou vindouros, tais como roupas, insígnias e marcas, são apagados, os sujeitos se homogeneízam e um sentimento de igualitarismo despon-ta. Uma mistura de submissão e santida-de, homogeneidade e camaradagem carac-terizam o estado liminar que, por sua vez, conforma-se como um momento dentro e fora do tempo, dentro e fora da estrutura. Emerge, nesses contextos, o que Turner chama de communitas. Com este conceito, Turner aponta para a existência de um constante tensiona-mento entre dois modelos de correlacio-namento, dois modelos que se alternam e se justapõem: o primeiro é o de uma so-ciedade estruturada, com posições hierár-quicas localizáveis e marcadas, o segundo modelo surge no período liminar e é ca-racterizado pela suspensão ou afrouxa-mento da estrutura o que gera uma extre-ma camaradagem aos sujeitos que aí se encontram, trata-se da communitas. Para os indivíduos ou para os grupos, a vida social é um tipo de processo dialético que abrange a experiência sucessiva do alto e do baixo, de com-munitas e estrutura, homogeneidade e diferenciação, igualdade e desigual-dade. A passagem de uma situação mais baixa para outra mais alta é feita através de uma linha de ausência de status (Turner, 1978, p. 122). Este processo dialético ocorre entre termos interdenpendentes, ou seja, a re-lação entre estrutura e a communitas é dialética, uma não pode ocorrer sem a existência de outra. Não se trata, por-tanto, de uma relação entre termos dia-metralmente opostos, mas dialeticamente relacionados. Para Turner, numa estru-tura18 todos os indivíduos estão expostos, invariavelmente, à alternância desses estados. Eventos como peregrinação são, por sua natureza, fenômenos liminares que propiciam o surgimento da communi-tas. O que sugiro é que a oposição entre cotidiano e não-cotidiano das análises do turismo, teve sua versão nos estudos sobre peregrinação e turismo religio-so a partir do conceito de communitas. Nesse sentido, a liminaridade estrutu-ral está no domínio do extraordinário, e as relações estruturadas correspon-dem ao ordinário. O efeito desta noção para os estudos sobre peregrinação foi deixar passar despercebido que as fron-teiras e distinções sociais poderiam não ser suspensas nas peregrinações, confor-me aponta a noção de communitas, mas mantidas e reforçadas (Eade e Sallnow, 1991; Coleman e Eade, 2004). A possibi-lidade de que a peregrinação não tenha este caráter extraordinário de suspen-são estrutural fica ainda mais evidente em experiências como as das caminha-das promovidas pela ACASARGS em que não apenas está ausente o caráter antiestrutural, como o próprio passa-do único em Santiago é presentificado e vivido cotidianamente. A seguir pro-curo apresentar alguns dos dispositivos presentes nas caminhadas capazes de remeter os peregrinos à experiência no Caminho de Santiago. O caminho é aqui: a experiência de caminhar numa associação de pere-grinos Há uma espécie de perfil dominante no tipo de percurso das atividades promovi-das pela ACASARGS. A maior parte das caminhadas ocorre em paisagens que re-produzem, em alguma medida, aquela ex-perienciada em Santiago. Isto é, embora ocorram em diversos locais, as caminha-das da Associação têm duas característi-cas relativamente permanentes. A primei-ra delas é que todas são caminhadas em estradas rurais com poucos ou nenhum “O caminho é aqui”: um estudo antropológico da experiência do Caminho... 77 PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 9(3). Special Issue. 2011 ISSN 1695-7121 Rodrigo Toniol momento em que os peregrinos tenham que atravessar trilhas em mata fechada, por exemplo. Outra característica é que a maior parte dos trajetos percorridos estão entre 20 e 25 quilômetros de caminhada que é, propriamente, a média diária de quilômetros percorridos pelos peregrinos durante o Caminho espanhol. Segundo os idealizadores da ACASAR-GS, no entanto, não basta que o lugar em que se caminha tenha similaridades com a Rota Jacobea, mas faz-se necessário também que o grupo crie determinadas estratégias que facilitem a referência à peregrinação. Em uma caminhada promovida em Santo Antônio da Patrulha, cidade próxi-ma a Porto Alegre, Fernanda, a presiden-te da ACASARGS, chamou a todos antes do início do trajeto para o interior de uma capela. Assim que entramos, ela iniciou, em bom espanhol, a oração do peregrino: ‘Señor Jesucristo que sacaste a tu siervo Abrahan de la ciudad de Ur de los Caldeos guardándole en todas sus peregrinaciones y que fuiste el guía de pueblo hebreo a través del desierto. Te pedimos te dignes bendecir a estos hijos tuyos que por amor a tu nombre peregrinan a Compostela”.“Sé para ellos: compañeros en la marcha, guía en las encrucijadas, albergue en el ca-mino, sombra en el calor, luz en la os-curidad, consuelo en sus desalientos y firmeza en sus propósitos; para que por tu guía lleguem incólumes al término de su camino y enriquecidos de gracias y de virtudes vuelvan ilesos a sus ca-sas llenos de saludables virtudes” “Por Jesuscristo, nuestro Señor” “Marchad en nombre de Cristo que es Camino y rezad por nosotros em Compostela” Ao final da oração perguntei a Marcos, um membro da diretoria da ACASARGS, porque fazer a oração naquele momento: A Associação é para isso. A gente se esforça para que o peregrino relembre o que viveu em Santiago aqui conosco. Não é sempre que dá para ir pra San-tiago e pra manter viva essa chama, a gente caminha aqui como se fosse lá. Claro que não é a mesma coisa, mas ajuda a manter viva a chama. E isso também é muito importante prá quem está se preparando pra ir pela primei-ra vez. Assim, a pessoa já se acostuma. A gente, da diretoria, podia caminhar em muitos lugares, sabe? Mas a gen-te se esforça para proporcionar essa sensação para o peregrino (Marcos, 42 anos). Ao contrário de grupos de ecoturismo em que há um número limitado de vagas e em que o atendimento personalizado é um indicativo de bom serviço, nas atividades da ACASARGS, o sucesso dos passeios organizados é medido pela quantidade de inscritos, tendo como limite mínimo de participantes quarenta pessoas. As cami-nhadas do grupo ocorrem sempre em um único dia, normalmente domingo. Com um baixo custo, esses passeios conduzem peregrinos em ônibus cedidos, na maior parte das vezes, pelas prefeituras dos lo-cais em que a caminhada será realizada. Pedro, um dos fundadores da ACASAR-GS e atual membro da diretoria, aponta sobre os objetivos mais gerais do grupo. Nosso objetivo não é ganhar dinheiro, mas sim levar os peregrinos para ca-minhar. A gente tenta fazer parceria com as prefeituras, com as paróquias para elas darem para gente algum apoio, com um ônibus ou um café da manhã, por exemplo. Mas tudo isso é para baixar o preço, para que todo mundo possa caminhar. A gente não faz caminhada de dois dias porque o pessoal tem que trabalhar no sábado e porque, aí, já ia começar a ficar caro (Pedro, 33 anos). Com uma média de setenta inscritos em cada caminhada, o grupo tem como ponto de encontro o centro de Porto Ale-gre de onde saem, normalmente, em dois ônibus seguidos por alguns carros de membros da diretoria. Tanto o trajeto de ida como o da volta são utilizados pelos coordenadores da ACASARGS para dar avisos e fazer propagandas de eventos que estejam relacionados com o Caminho de Santiago. Como pode ser notado neste tre-cho do diário de campo do dia 07 de julho de 2009. PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 9(3). Special Issue. 2011 ISSN 1695-7121 78 Antes mesmo do ônibus começar a andar, Fernanda, presidente da Asso-ciação, pegou um microfone e, pedin-do a atenção de todos, deu o seguin-te aviso: “Pessoal, como alguns de vocês já sabem, porque já avisamos na reunião de sábado, vai acontecer em setembro desse ano o primeiro curso de língua espanhola e de cultura do Caminho de Santiago de Compostela oferecido pela Universidade de San-tiago de Compostela. [Nesse momen-to, algumas pessoas do ônibus come-çaram a aplaudir e assoviar]. Quem quiser ir tem que falar comigo até mês que vem. O Pedro vai distri-buir agora um folheto pra cada um de vocês saberem do que se trata. Ou-tra coisa, quem está indo pra Santiago no próximo mês aí? [quatro pessoas levantaram as mãos]. Eu trouxe a credencial do peregrino que, para quem não sabe, é o passaporte que o peregrino carimba durante o Cami-nho e marca os lugares por que pas-sou. Quem estiver indo pode pegar ela comigo quando terminarmos a cami-nhada, a gente não cobra nada, só o custo da postagem, porque vem da Espanha, custa quatro reais.” Após Fernanda deixar o microfone, Mar-cos, membro da diretoria da ACA-SARGS e dono de uma editora que publica, exclusivamente, livros relacio-nados ao Caminho de Santiago tomou a palavra: “Olá escritores peregrinos, eu quero fazer um convite rápido pra vocês. Vocês sabem que nosso livro “Diários Peregrinos” esgotou rapida-mente seus 1300 exemplares. Este livro tornou-se um marco na li-teratura peregrina porque teve características de antologia. Este livro registrou os desafios enfrenta-dos pelos peregrinos que mostraram em seus relatos um mundo diferente, mais autêntico e mais natural que é o que vivemos em Santiago. Agora estamos com um novo trabalho, o livro “Relatos peregrinos” e vocês podem participar desse livro com quantas páginas quiserem. Pode ser foto, poema, relato, qualquer coisa. Quanto aos valores, são R$ 70,00 cada página, no mínimo de três pá-ginas. Se vocês escreverem mais de dez páginas cai pra R$ 60,00. Vocês recebem três exemplares do livro por página que escrevem e ainda ganham uma Cruz de Santiago, exclusiva, ba-nhada a ouro. Podem dividir o pa-gamento em quatro vezes. Quem se interessar, fala comigo” [Nota de 07 de julho de 2009]. O Caminho de Santiago é o assunto predominante durante as caminhadas promovidas pela ACASARGS. Embora seja abordado sob diversos aspectos, a referência ao Caminho é constante. Ela é, em geral, acionada por elementos que remetem a lembranças vividas durante a peregrinação à Santiago de Compostela. Em variadas ocasiões, ouvi referências, por exemplo, a uma árvore parecida com a que se viu durante a peregrinação, a uma bolha que surge no pé e no mesmo lugar de quando se fez o Caminho, ou mesmo à comida que, em Teutônia/RS, afirmava Paula, “é muito diferente de todas que ti-nha provado em Santiago”. Enquanto caminhavam, numa das ati-vidades da ACASARGS, numa intermi-nável subida, os peregrinos que já haviam ido à Santiago lembravam das dificulda-des de atravessar, já no primeiro dia do Caminho, os Pirineus. Essas memórias são despertadas a cada reta, a cada novo detalhe que surge no ambiente em que se caminha. No meio de uma conversa que não era sequer sobre Santiago, uma pere-grina afirma: Essa estrada está muito parecida com uma região da Galícia na primavera. Outra peregrina fala sobre como as ca-minhadas que faz com a ACASARGS se relacionam com suas experiências no Caminho: Isso daqui me lembra muito de quando fiz o Caminho. É uma pena, mas acho que não vou voltar para lá tão cedo e para quem ficou, o Caminho tem que ser feito aqui mesmo. A ambiência das caminhadas promo-vidas pela ACASARGS estabelecem uma “O caminho é aqui”: um estudo antropológico da experiência do Caminho... 79 PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 9(3). Special Issue. 2011 ISSN 1695-7121 Rodrigo Toniol significativa relação com a memória do peregrino, assumindo um sentido parti-cular com a história do próprio indivíduo, presentificando seu passado em Santiago por meio do ambiente em que caminha no Brasil. A fala dos peregrinos que reme-te a possibilidade de se fazer o Caminho “aqui”, conduz a reflexão acerca de um processo que consolidou Santiago não ape-nas como um local de peregrinação mas, sobretudo, como um tipo de experiência. Ao se colocar como divulgadora do Cami-nho no mundo as AACS têm divulgado uma sensibilidade, um modo de relação com o sagrado e com a paisagem, enfim, têm criado diversos Caminhos de Santia-go. A caminhada como prática do espaço e de experiência temporal Na Atenas contemporânea, os trans-portes coletivos se chamam metapho-rai. Para ir para o trabalho ou voltar para casa, toma-se uma “metáfora” – um ônibus ou um trem. Os relatos po-deriam igualmente ter esse belo nome: todo dia, eles atravessam e organizam lugares: eles os selecionam e os reúnem num só conjunto; deles fazem frases e itinerários. São percursos de espaços (De Certeau, 1994: 199). Se a conseqüência mais evidente do que Michel De Certeau afirma é que as estruturas narrativas têm valores de sin-taxes espaciais, também é verdadeiro que os deslocamentos no espaço adquirem va-lores narrativos. Ao se deslocarem, os ca-minhantes moldam espaços, seguem por trajetos já traçados, mas também podem subvertê-los e reorganizá-los. Para De Certeau, o ato de caminhar é um espaço de enunciação com uma tríplice função, em que cada um dos termos encontra paralelo com a língua: é um processo de apropriação do sistema topográfico pelo pedestre – assim como o locutor se apro-pria e assume a língua; é uma realização espacial do lugar – assim como o ato da palavra é uma realização sonora da lín-gua; implica o estabelecimento de relações entre posições diferenciadas – assim como a língua coloca seus falantes em relação (De Certeau, 1994:177). As caminhadas dos pedestres tornam-se, conforme esta perspectiva, retóricas ambulatórias que moldam percursos como os falantes mol-dam frases. Estas retóricas são formuladas, para De Certeau, a partir da articulação en-tre lugar e espaço. Lugar é aquilo que está estabelecido, a disposição das coisas conforme, por exemplo, o planejamento do trajeto elaborado pelos coordenadores da caminhada, já espaço é o lugar prati-cado, é o efeito da criatividade que deslo-ca, transgride o que está prescrito. Neste sentido, o espaço está para o lugar assim como a língua falada está para a gramá-tica. Ao lançarmos mão do estabelecimento desta relação entre aqueles que falam e aqueles que caminham, passamos a nos balizar por uma espécie de sombra em que todas as funções e práticas do idioma en-contram correspondentes no que De Cer-teau chama de retóricas ambulatórias. Por um lado, esta hipotética paridade per-mite que o ato ordinário de caminhar, de compor percursos adquira “dignidade de atenção”, mas por outro, limita as múlti-plas possibilidades de expressão deste ato como detentor de características específi-cas de manifestação, para além daquelas do idioma. Bachelard, em “A poética do espaço” (1984), aponta para uma perspectiva que reconhece a importância desta relação entre sujeito e espaço sem, contudo, cons-trangê- la a uma referência lingüística. Para o autor, a imaginação trabalha nos espaços verdadeiramente habitados a par-tir de imagens capazes de ditar a dinâmi-ca da relação entre passado, presente e futuro. O jogo temporal se dá a partir de uma espacialidade que não designa ape-nas um ambiente exterior ao sujeito, mas que o inclui, uma vez que a imagem, o es-paço e o tempo não se dão nem no sujeito, nem fora dele, mas a partir da relação. Aqui o espaço é tudo. Porque o tem-po não mais anima a memória. A memó-ria — coisa estranha! — não registra a duração concreta, a duração no sentido PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 9(3). Special Issue. 2011 ISSN 1695-7121 80 bergsoniano. Não se podem reviver as du-rações abolidas. Só se pode pensá-las na linha de um tempo abstrato privado de toda densidade. É pelo espaço, é no espaço que encontramos os belos fósseis de uma duração concretizados em longos estágios (Bachelard, 1984:203). Assim, é na medida em que estabele-cemos relações, constituímos histórias, e percorremos o espaço, que ele toma forma. Trata-se de concebê-lo não mais como externo aos Humanos, mas como constitutivo das dinâmicas sociais e tem-porais daqueles que o habitam, bem como constituído pelas relações nele engajadas, tornando-se, num jogo relacional, modifi-cador das práticas nele produzidas, mas também modificado por elas. A projeção de um lugar para caminhar, por parte dos organizadores da caminha-da, que fosse capaz de remeter o peregrino à Santiago, e a prática de um espaço por parte dos caminhantes, coloca em evi-dência não apenas a relação intrínseca e indistinta entre um sujeito que habita e um mundo que é habitado, como também evidencia a multiplicidade de imagens, no sentido bachelardiano, que as ações em torno de uma caminhada – seja de elabo-ração do trajeto, seja de sua feitura – com-portam. Isto é, a elaboração de um trajeto no Brasil que presentifique o passado em Santiago é possível na medida em que os espaços em que se caminha, podem ser ex-perimentados de maneiras distintas. De-terminados artifícios como fazer a oração do peregrino como se faz em Santiago, es-palhar setas amarelas para indicar o ca-minho como em Santiago e caminhar por paisagens e distâncias como em Santiago, sugerem uma experiência específica. A caminhada – seja no Brasil seja em Santiago -, conforme a concebo, promove este deslocamento, tanto objetivo como subjetivo, e o que interessa aqui talvez não seja nem um e nem outro como ele-mentos autônomos, mas enquanto rela-cionados. Flaneurs, voyeurs, peregrinos, caminhantes não são denominações que se constituem enquanto tal por conta de um território privilegiado a cada um de-les, mas na medida em que os espaços são mobilizados subjetivamente de maneiras específicas. Este tipo de perspectiva nos coloca diante de outro horizonte de ques-tões em que o que está em jogo é a expe-riência do turista e o modo pelo qual ele articula elementos como tempo, espaço e subjetividade. Trata-se de buscar perce-ber sua experiência como resultado de um arranjo relacional entre uma série de di-mensões e não de partir de um a priori em que esta experiência já está circunscrita numa única possibilidade, neste caso, a do não-cotidiano. Bibliografia: Bachelard, Gaston 1984 A poética do espaço A poética do es-paço. São Paulo: Martins Fontes. Barretto, Margarita. 2000 “As ciências sociais aplicadas ao turismo”. In Serrano, Célia; Bruhns, Heloísa T.; Luchiari, M. Tereza. (org.). Olhares contemporâneos sobre o turismo. Campinas: Papirus, (pp. 17- 36) 2003 “O imprescindível aporte das ciên-cias sociais para o planejamento e a compreensão do turismo”. In Hori-zontes Antropológicos, Porto Alegre, (20):15-30). Carneiro, Sandra de Sá. 2007 A pé e com fé: brasileiros no Cami-nho de Santiago. São Paulo: CNPq/ Pronex: Attar. Coleman, Simon e Eade, John. 2004 Reframing pilgrimage: cultures in motion. London/ New York: Routledge De Certeau, Michel 1994 A invenção do cotidiano: artes de fa-zer. Petrópolis:Vozes. Dupront, Alphonse. 1987 Du Sacré. Paris: Gallimard. Durkheim, Emile. 1996 As formas elementares da vida reli-giosa. São Paulo: Martins Fontes. Eade, John e Sallnow, Michael (eds) 1991 Contesting the Sacred: the Antro-pology of christian pilgrimage. Lon-don and New York, Routledge. Frey, Nancy Louise. 1998 Pilgrim Stories: on and off the “O caminho é aqui”: um estudo antropológico da experiência do Caminho... 81 PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 9(3). Special Issue. 2011 ISSN 1695-7121 road to Santiago. California: Univer-sity of California Press. Graburn, Nelson. 1989 “Tourism: the sacred journey”. In Smith, V. (ed.). Hosts and guests: the anthropology of touris : 21-36. Phila-delphia: University of Pennsylvania Press. Marx, Emanuel 1977 “Communal and individual pilgri-mage: the region of saints tombs in South Sinai”. In Werbner, R. P. (eds) Regional cults. London: London Aca-demic Press Rabinow, Paul 1975 Symbolic domination: cultural form and historical change in Morocco. Chi-cago: University of Chicago Press Smith, Valene (ed.). 1989 Hosts and guests: the anthropology of tourism. Philadelphia: University of Pennsylvania Press. Steil, Carlos Alberto. 2003 “Peregrinação, romaria e turismo religioso: raízes etimológicas e in-terpretações antropológicas”. In Abu-manssur, Edin Sued. (org.). Turismo religioso: ensaios antropológicos sobre religião e turismo: 29-52. Campinas: Papirus. Steil, Carlos Alberto e Carneiro, Sandra de Sá. 2008 Peregrinação, turismo e nova era: Caminhos de Santiago de Compos-tela no Brasil. Religião e Sociedade, 28(1):108-124. Silveira, Emerson 2007 Por uma Sociologia do Turismo. Por-to Alegre: Zouk. Spiro, Melford E. 1970 Budhism and society: a great tradi-tion and its burmese vicissitudes. New York, Harper & Row. Toniol, Rodrigo; Steil, Carlos Alberto. 2010 Ecologia, Nova Era e Peregrinação: uma etnografia da experiência de ca-minhadas na Associação dos Amigos do Caminho de Santiago de Composte-la do Rio Grande do Sul. In Debates do NER, 17:97-120). Tuan, Yi-Fu. 1983 Espaço e Lugar: a perspectiva da ex-periência. São Paulo: Difel. Turner, Victor. 1978 O processo ritual : estrutura e an-tiestrutura. Petropolis: Vozes. Turner, Victor. 1978b Image and Pilgrimage in Chris-tian Culture. New York, Columbia University Press. 2008 Dramas, campos e metáforas: ação simbólica na sociedade humana. Nite-rói: Ed. UFF. Urry, John 1990 The tourist gaze. Leisure and tra-vel in contemporary societies. London: Sage. Van Gennep, Arnold 1978 Os ritos de passagem. Petrópolis: Vozes Wolf, Eric 1958 The Virgin of Guadalupe: a Mexican national symbol. Journal of American Folklore 71(1): 34-39. NOTAS 1 Uma primeira versão deste trabalho foi apresenta-da na 27ª. Reunião Brasileira de Antropologia, reali-zada entre os dias 01 e 04 de agosto de 2010, Belém, Pará, Brasil. Agradeço aos comentários de Carlos Alberto Steil, Margarita Barretto, Álvaro Banducci Júnior e Rodrigo Grünewald. 2 T rata-se de u m símbolo do C aminho de San-tiago muito difundido entre os peregrinos. Sua origem é pagã e, durante a Idade média, era usada entre os cristãos como forma de identificação. 3 Sandra de Sá Carneiro propõe uma divisão em seis fases histórica do Caminho de Santiago. “A primeira fase vai do descobrimento do sepulcro até meados do século X, em que se iniciam as peregrinações a partir d os países estrangeiros; A segunda fase vai desde esse momento até o século XI, quando se entra na segunda fase de formação ou expansão do fenômeno; A terceira fase abrange os séculos XII, XIII e XIV, que constituem o esplendor d as pere-grinações jacobeas; A quarta fase está situada entre meados do século XIV até princípios do século XVI, esta é a fase mais crítica do fenômeno; A quinta fase vai desde o século XVI até praticamente o século XX; A sexta fase situa-se no século XX, quando co-meça o processo de revitalização sob novos padrões simbólicos, religiosos, sociais e culturais” (Carnei-ro, 2007: 66) 4 Um dos principais livros que promoveram o Ca-minho de Santiago no mundo foi o “Diário de um PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 9(3). Special Issue. 2011 ISSN 1695-7121 82 Mago” de Paulo Coelho, publicado pela primeira vez em 1987 e traduzido para 21 línguas. 5 Rota Jacobea é o nome como era conheci o Cami-nho de Santiago durante a Idade Média. Assim ficou conhecida a rota de peregrinação após o papa Ca-lixto II, no século XIII, considera-la uma forma de obtenção de indulgência plenária. Os termos Rota Jacobea e Caminho de Santiago são usados, atual-mente, como sinônimos. 6 A Xunta de Galícia é um colegiado do governo da Galícia responsável por promover as atividades relacionadas ao Caminho de Santiago que são de in-teresse da província espanhola. 7 Oficina de peregrinaciones é uma organização que tem como objetivos, segundo o site www.pe-regrinando. org, “conservar, proteger e fomentar o Caminho de Santiago e coordenar o voluntariado, ampliando-o ao Brasil, Itália e outros países, criando assim uma rede de Voluntários para a execução de todos os fins e objetivos de seus estatutos”. 8 Fonte: http://www.santiago.org.br/ (consultado em 15/08/2009) 9 Fonte: http://www.santiago.org.br/ (consultado em 15/08/2009) 10 Fonte: http://www.santiago.org.br/ (consultado em 15/08/2009) 11 Existem, ao menos, nove rotas que levam a Igre-ja de Santiago de Compostela, sendo a mais popular entre os brasileiros o Caminho Francês. 12 Estas dicas vão desde longas discussões a respei-to de que calçado usar, ou quantas calças levar até albergues que se deve ficar e pessoas que se deve procurar. 13 A compostelana é um documento fornecido pela Igreja que certifica a realização da peregrinação. Para recebê-la o peregrino precisa: apresentar um documento chamado credencial do peregrino que comprova os locais em que se passou durante a peregrinação, dizer que uma das razões para a realização da pere-grinação foi religiosa e provar que percorreu os últimos 100 Km, para os que estão a pé, e 200 Km, para os que estão de bicicleta ou a cavalo, sem auxílio de transportes mo-torizados 14 Os valores em dólares seria entre U$22.00 e U$ 32.00 15 www.santiagoperegrino.com.br 16 Fonte: http://www.santiagoperegrino.com.br/ (consultado em 15/08/2009) 17 Fonte: http://www.santiago.org.br/ (consultado em 15/08/2009) 18 Turner define estrutura como “arranjos padroni-zados de conjuntos de papéis, conjuntos de posições e seqüências de posições reconhecidas consciente-mente e operado regularmente em uma sociedade determinada e intimamente ligados a normas e san-ções locais e políticas” (Turner, 2008:221) Recibido: Reenviado: Aceptado: Sometido a evaluación por pares anónimos 18/08/2010 27/09/2010 05/12/2010 “O caminho é aqui”: um estudo antropológico da experiência do Caminho...
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Título y subtítulo | “O caminho é aqui”: um estudo antropológico da experiência do Caminho de Santiago de Compostela em uma associação de peregrinos do Rio Grande do Sul, Brasil |
Autor principal | Toniol, Rodrigo |
Publicación fuente | Pasos. Revista de turismo y patrimonio cultural |
Numeración | Volumen 09. Número 3 |
Sección | Artículos |
Tipo de documento | Artículo |
Lugar de publicación | El Sauzal, Tenerife |
Editorial | Universidad de La Laguna |
Fecha | 2011-05 |
Páginas | pp. 069-082 |
Materias | Turismo ; Patrimonio cultural ; Publicaciones periódicas |
Enlaces relacionados | Página web: http://todopatrimonio.com/revistas/101-pasos-revista-de-turismo-y-patrimonio-cultural |
Copyright | http://biblioteca.ulpgc.es/avisomdc |
Formato digital | |
Tamaño de archivo | 337913 Bytes |
Texto | www.pasosonline.org © PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural. ISSN 1695-7121 “O caminho é aqui”: um estudo antropológico da experiência do Caminho de Santiago de Compostela em uma associação de peregrinos do Rio Grande do Sul, Brasil 1 Rodrigo Tonioli Universidade Federal do Rio Grande do Sul Resumo: O foco de interesse empírico deste trabalho são as atividades desenvolvidas pela Associação dos Amigos do Caminho de Santiago do Rio Grande do Sul (ACASARGS). Trata-se de uma organização sem fins lucrativos que visa promover e conservar o Caminho de Santiago de Compostela a partir da organização de caminhadas que procuram reproduzir, no interior do Rio Grande do Sul, as dificuldades e as distâncias diárias percorridas no Caminho espanhol. Problematizo, aqui, a perspectiva teórica que relaciona turismo com prática do não-cotidiano e apresento, a partir de uma narrativa etnográfica, o modo pelo qual as atividades da ACASARGS constituem-se, para os peregrinos, como eventos capazes de rotinizar a experiência da peregrinação no Caminho de Santiago mesmo fora da Espanha. Palavras-Chave: Caminho de Santiago; Peregrinação; Turismo Religioso; Cotidiano; Communitas; Turismo Title: “The way is here”: Anthropological studies about St. James Way at Santiago de Compostela at a Pilgrims Society in Rio Grande do Sul State, Brazil Abstract: This article focuses the activities of Friends of St. James Way in Rio Grande do Sul Association (ACASARGS) which is a nonprofit organization that aims to promote and preserve St. James Way at that Brazilian estate, in roads that reproduce the difficulties and the daily distances in the Spanish route. Discussing some theoretical approaches that relate tourism to the practice of non-routine activities, through an ethnographic narrative I suggest that ACASARGS activities change pilgrimage experience at St. James way into a routine out of Spain. Keywords: St. James Way; Pilgrimage; Religious Tourism; Uneventful; Communitas; Tourism iMestrando em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia. Email: rodrigo.toniol@gmail.com Vol. 9(3) Special Issue págs. 69-82. 2011 PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 9(3). Special Issue. 2011 ISSN 1695-7121 70 Introdução Este artigo tem como foco de interesse empírico a prática de caminhadas na As-sociação dos Amigos do Caminho de San-tiago do Rio Grande do Sul (ACASARGS). Trata-se de uma organização sem fins lucrativos que visa promover e conservar o Caminho de Santiago de Compostela a partir de caminhadas em percursos que reproduzem, no interior do Rio Grande do Sul - Brasil, as dificuldades e as dis-tâncias diárias percorridas no Caminho. Soma-se a este aspecto a presença de uma série de elementos que remetem os pere-grinos a Santiago, tais como: conversas, objetos usados na peregrinação, amuletos e conchas de vieira presas à mochila2. A partir deste contexto, procuro refletir so-bre o modo pelo qual as caminhadas da ACASARGS realizadas no Brasil têm uma capacidade de subversão espaço-tem-poral reportando os peregrinos a experi-ências que, a priori, estavam acessíveis apenas no Caminho espanhol. A partir da observação participante e de entrevistas realizadas com os sujeitos envolvidos nas caminhadas e noutras ati-vidades da ACASARGS, procuro compre-ender como as caminhadas se constituem como uma espécie de rotinizadoras das experiências da peregrinação à Compos-tela, permitindo, assim, que se proble-matize a concepção de eventos turísticos como momentos do não-cotidiano. O que está em jogo é apresentar, desde uma perspectiva antropológica, como as expe-riências do Caminho de Santiago para os peregrinos não se definem a partir da feitura de um percurso num determinado território, mas, antes disso, no modo pelo qual os espaços são mobilizados subjetiva-mente de maneiras específicas. A ordem de exposição deste texto apresenta, num primeiro momento, a po-pularização do Caminho de Santiago e o papel das Associações do Caminho neste processo. Noutro momento, apresento o panorama híbrido no qual o Caminho de Santiago se insere, explicitando uma sé-rie de sobreposições entre elementos como turismo, espiritualidade e mercado. Em uma terceira sessão, aponto para algu-mas perspectivas teóricas sobre turismo que associam este fenômeno com o não- -cotidiano, bem como os desdobramentos destas perspectivas nas análises de pere-grinações e turismo religioso. Noutra ses-são, elaboro uma narrativa etnográfica na qual descrevo as táticas e estratégias das caminhadas da ACASARGS para “re-produzir” o Caminho de Santiago no Rio Grande do Sul, Brasil. Por fim, discuto aspectos relativos à prática do espaço dos sujeitos que caminham e que planejam a caminhada, articulando noções como pai-sagens, espaço e tempo. O Caminho de Santiago num contex-to de Nova Era: continuidades e rup-turas numa peregrinação cristã A raiz etimológica do termo “peregri-nação” deriva do vocábulo latino peregri-nus que significa o estrangeiro, aquele que vive alhures e que não pertence à sociedade autóc-tone estabelecida, ou seja, é aquele que percorreu um espaço e, neste espaço, encontra o Outro (Dupront, 1987) Tal acepção aponta para o encon-tro com “o Outro” como indicativo de um duplo aspecto. Por um lado, este encontro remete às dificuldades objeti-vas da jornada empreendida pelo pere-grino que, ao percorrer lugares desco-nhecidos e enfrentar as adversidades do caminho, termina por imprimir nessa viagem características de uma jornada heróica. E, por outro, refere-se ao ato de transformação de si alcançado por meio de um deslocamento do “eu” em busca do “Outro”, constituindo um percurso inte-rior, de cunho místico e ascético, a ser re-alizado por aquele que peregrina (Toniol e Steil, 2010). Nancy Frey, no livro “Pilgrim stories: on and off the road to Santiago” (1998), mostra como a peregrinação se inicia num período anterior a ida efetiva a Santiago. O movimento físico no Caminho é anteci-pado por uma espécie de movimento inter-no que convoca o peregrino a refletir sobre si, a colocar em questão seus “apegos” con- “O caminho é aqui”: um estudo antropológico da experiência do Caminho... 71 PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 9(3). Special Issue. 2011 ISSN 1695-7121 Rodrigo Toniol duzindo-o a decidir, por exemplo, o que le-vará na mochila durante os trinta e dois dias de caminhada. Sob certa perspecti-va, aponta a autora, esta convocação ao “desapego” se apresenta aos sujeitos como um exercício não habitual, contrastivo com sua vida cotidiana. A utilização des-te recurso que coloca em relevo oposições como cotidiano e não-cotidiano, trabalho e não-trabalho, ordinário e extraoridi-nário, para analisar e descrever práticas turísticas - sejam elas religiosas ou não - tem sido freqüente entre os pesquisadores destes fenômenos (Smith, 1989; Graburn, 1989; Urry, 1990; Tuan, 1983). Embora o “desapego” e a “viagem ao interior de si” sejam características mar-cantes das peregrinações cristãs, algu-mas propriedades distintivas do Caminho de Santiago transformam-no em um lócus privilegiado para se observar a incorpora-ção, pelo catolicismo, de novas estruturas de sentido. O catolicismo, nesse caso, ex-pande- se para além dos marcos dogmáti-cos e institucionais da Igreja Católica po-dendo, ao mesmo tempo, ter assegurada a sua continuidade a partir, justamente, da descontinuidade em relação à tradição e ortodoxia católicas. Semelhanças e desse-melhanças, permanências e modificações no âmbito do catolicismo não necessaria-mente operam como práticas excludentes, mas coexistem, contraditoriamente, em suas temporalidades diversas. Nesse panorama, o Caminho de San-tiago assume um papel ambivalente. A permanência de certas qualidades distin-tivas das peregrinações cristãs – “uma busca mística de si, como uma jornada de santificação que encontra seu ponto de chegada no reconhecimento de uma divindade que se manifesta no interior de cada devoto” (Steil, 2003) – também permite que essa mesma característica se modifique na experiência religiosa dos peregrinos associados a contextos cultu-rais específicos. Grosso modo, apesar do termo não ser consensual, essas novas es-truturas de sentido dizem respeito a prá-ticas afinadas com certo “espírito Nova Era”. A reapropriação do Caminho de San-tiago a partir desse contexto pode ser caracterizada, sobretudo, pela autonomi-zação da experiência religiosa do peregri-no frente a normalizações institucionais e pela busca pelo aperfeiçoamento de si. Processo que parece estar relacionado com uma transformação mais ampla do cenário religioso contemporâneo. Já a consagração do Caminho de Santiago3 como ícone dessas novas formas de rela-ção com o sagrado, foi acompanhada pela produção de best-sellers4, documentários, somados a um oportunismo do mercado turístico que ajudaram a transformar a Rota Jacobea5 em um local emblemático entre aqueles que compartilham valores como culto ao corpo e valorização de expe-riências individuais. A popularização do “novo” Caminho de Santiago e suas Associações A popularização do Caminho de San-tiago de Compostela pode ser expressa por meio de alguns números fornecidos pela Xunta da Galícia6 os quais nos mostram que no ano de 1986 o Caminho recebeu 1461 peregrinos, saltando dez anos mais tarde (1996) para 23.218 e atingindo, em 2004, a marca de 179.944 peregrinos (Car-neiro, 2007). Somente em agosto de 2009, segundo números fornecidos pela oficina de peregrinaciones7, 35.071 peregrinos fi-zeram o Caminho de Santiago. Uma das causas dessa mudança foi o investimento do Ministério do Turismo do governo espanhol na criação, em todo mundo, das chamadas Associações dos Amigos do Caminho de Santiago – AACS (Carnei-ro, 2007). No Brasil, essa organização sem fins lucrativos possui uma sede nacional no Rio de Janeiro, Associação Brasileira dos Amigos Caminho de Santiago (AACSB), e dezenas de filiais em todas as regiões do país. A AACSB estabelece diretrizes para as atividades de suas regionais ten-do como missão promover o “encontro de pessoas e grupos interessados no percur-so, na preservação e na divulgação do Ca-minho de Santiago de Compostela”8. Num documento que orienta as atividades das PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 9(3). Special Issue. 2011 ISSN 1695-7121 72 associações, a AACSB pontua: “Nossa ação voluntária, oferece elementos de aju-da e facilidades para que a peregrinação seja uma oportunidade de crescimento espiritual, cultural e comunitário. Estas ações acontecem, principalmente, através de palestras para futuros peregrinos, com orientações sobre a peregrinação, refú-gios, equipamentos, saúde, comportamen-to, sinalização etc. Periodicamente reali-zamos caminhadas de condicionamento. Somos autorizados pela Oficina de Pe-regrinos a emitir a Credencial do Pe-regrino, serviço que prestamos gratui-tamente, sendo cobradas unicamente as despesas postais de remessa. Disponibili-zamos, na Internet, um website - www. caminhodesantiago.org.br, com todas as informações necessárias para os peregri-nos, o que permite aos residentes fora da área onde se localiza nossa sede, no Rio de Janeiro, acesso aos dados necessários para sua peregrinação, incluindo pesqui-sas constantes de preços mais acessíveis das passagens aéreas rumo à Espanha.”9 Além das facilidades direcionadas à peregrinação pelos Caminhos de Santia-go, a AASC Brasil incentiva o conheci-mento da sua história, cultura e a ma-nutenção das tradições relacionadas com a Rota Jacobea: Consideramos que devem ser manti-dos os sentimentos de solidariedade, acolhida e de hospitalidade inerentes ao espírito das peregrinações compos-telanas, principalmente nos refúgios onde os peregrinos descansam de sua jornada; e serem preservadas a arte, arquitetura e recursos naturais por onde atravessam as diversas ro-tas rumo à Santiago de Compostela. A Associação pretende desenvolver atividades e campanhas que mini-mizem as possibilidades de ações e usos não sustentáveis que possam afetar a integridade destes valores. Estamos associando nossas ações às pessoas físicas e jurídicas, nacionais e estrangeiras, principalmente às as-sociações congêneres, no intuito de promover uma eficiente troca de infor-mações direcionadas a maior atuali-zação possível das informações a serem fornecidas aos que estão se pre-parando para a peregrinação. 10 De modo geral, as atividades das as-sociações consistem na realização de ca-minhadas que reproduzem, em alguma medida, na paisagem, as dificuldades e as distâncias que o peregrino enfrentará diariamente enquanto estiver percorren-do os quase 800 quilômetros do Cami-nho11. Além de preparar aqueles que es-tão indo para Santiago, as AACS reúnem também, por meio de reuniões mensais e caminhadas periódicas de um dia, aque-les que já “fizeram” o Caminho. Na cidade de Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, a Associação dos Ami-gos do Caminho de Santiago do Rio Gran-de do Sul (ACASARGS) tem sua sede na Igreja Nossa Senhora da Piedade onde se realizam reuniões mensais voltadas tanto àqueles que irão à Santiago e que pode-rão, nesses encontros, receber dicas, como também àqueles que querem relatar ao grupo suas experiências no Caminho12. A ACASARGS também atua como uma espécie de agência autorizada do Cami-nho de Santiago, distribuindo a “Creden-cial do Peregrino”, documento que será carimbado ao longo do trajeto em Santia-go e comprovará a distância e os lugares percorridos. Além de ser um objeto de re-cordação e estima, a credencial também permite que o peregrino receba, na Igreja de Santiago, a Compostelana13. Com uma agenda de uma caminhada por mês, que custam entre R$ 50 a R$ 70,0014, as atividades da ACASARGS re-únem por volta de quarenta participantes que se interam do cronograma dos even-tos por meio de correio eletrônico, de um website15 e de reuniões mensais. Para cada uma das caminhadas, constitui-se um grupo predominantemente composto por peregrinos que já fizeram o Caminho em idade entre quarenta e sessenta anos. A maior parte dessas atividades tem du-ração de um dia e ocorrem em cidades do entorno de Porto Alegre. As caminhadas da ACASARGS podem ser descritas, genericamente, como exten-sas distâncias percorridas ao longo de “O caminho é aqui”: um estudo antropológico da experiência do Caminho... 73 PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 9(3). Special Issue. 2011 ISSN 1695-7121 Rodrigo Toniol um único dia, por grandes grupos numa estrada rural sinalizada com setas ama-relas, como as existentes no Caminho de Santiago. Com essas marcações, a presença de guias que orientem a direção correta a ser tomada pode ser dispensada, permitindo, assim, que se caminhe sozi-nho – como a maior parte dos peregrinos faz em Santiago. No estatuto de fundação da Associa-ção gaúcha, o grupo define-se da seguinte maneira: “A ACASARGS, tem por objeti-vo e finalidade, a reunião de pessoas fí-sicas, jurídicas e filantrópicas, que reali-zaram ou que manifestem interesse em conhecer, pesquisar ou fazer a peregri-nação a Santiago de Compostela, na Espanha, promovendo a troca de infor-mações e o intercâmbio cultural, socioló-gico e experimental, bem ainda, todo e qualquer subsídio ou material informati-vo que busque recriar culturalmente o Caminho de Santiago de Compostela, sob o ponto de vista histórico, reli-gioso, artístico, arquitetônico e humanís-tico16. A ACASARGS constitui-se, assim, como uma espécie de representante ofi-cial de tudo o que estiver relacionado à Compostela no Estado, atribuindo a si mesma as prerrogativas desse domínio e reforçando, em diversos âmbitos, sua posi-ção. Em documento publicado pela Fe-deração Espanhola das Associações dos Amigos do Caminho de Santiago, propõe- -se que as Associações nacionais e locais se concebam como “consulados” do Cami-nho, devendo “sempre se manter atentas a grupos que pretendam desvirtuar os ver-dadeiros valores de Santiago”17 . Turismo, espiritualidade e mercado entre os peregrinos A acepção de “turismo religioso” pa-rece evidenciar-se na própria construção sintática do termo. O sentido “religioso” adjetiva o substantivo “turismo” dando a noção de um fenômeno que é, ao mesmo tempo, singular em suas características e comum a outros em sua forma. Carlos Steil (2003), em um esforço de distinção do que seja peregrinação, romaria e turis-mo religioso, afirma: O termo turismo religioso possui uma conotação secularizada e nos remete a uma estrutura de significado que se afirma de fora para dentro do campo religioso. Ou seja, peregrinação e ro-maria são categorias êmicas, usadas por peregrinos, romeiros e mediadores religiosos que se posicionam no cam-po religioso, ao passo que o turismo religioso é externo a essas categorias, sendo usado preferencialmente em con-textos políticos-administrativos (Steil, 2003: 35). A demarcação dos limites do que seja turismo religioso ou peregrinação, no en-tanto, é complexificada quando partimos de um contexto mais amplo de transforma-ção do panorama religioso. A populariza-ção do Caminho de Santiago de Compos-tela, conforme esboçamos anteriormente, esteve intimamente relacionada com um projeto de Estado do governo espanhol e com um esforço por parte de organizações civis dirigidas por peregrinos leigos. O que parece ficar patente, no caso de Santiago, é a perda do domínio sobre a peregrinação por parte da Igreja a partir do momento em que o Caminho passou a ser promovi-do por Associações civis espalhadas pelo mundo. O envolvimento de outros agentes como Organizações Não-Governamentais (ONGs), Associações, secretarias de turis-mo e prefeituras escancaram a formação de um contexto complexo em que turismo, espiritualidade e mercado aparecem como elementos intrincados (Steil e Carneiro, 2008). Deste modo, “a estrutura de signi-ficados religiosa” deixa de estar limitada às práticas inscritas no marco institucio-nal, neste caso, da Igreja Católica e pas-sa a estar presente em contextos tidos, a priori,como seculares. Para Steil, o que diferencia o turismo da peregrinação é: o grau de imersão e de externalida-de que cada uma dessas experiências pode proporcionar. Enquanto as pere-grinações e romarias tendem a ser vis-tas como um ato religioso de imersão no sagrado, o turismo, mesmo quando PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 9(3). Special Issue. 2011 ISSN 1695-7121 74 adjetivado com religioso, caracteriza- -se por uma externalidade do olhar, fundamental para que um evento possa ser considerado como turístico (Steil, 2003: 35). Contudo, há uma série de transfor-mações no panorama religioso que têm contribuído para que não apenas as expe-riências com o sagrado ocorram no plano da intimidade do sujeito, como também a certificação da verdade deixe de estar submetida a normalizações institucionali-zadas, podendo ser atestada pelo próprio indivíduo. Essa desinstitucionalização da religião nos coloca novas questões e im-possibilita a associação direta entre um evento religioso promovido pela igreja e a imersão no sagrado, bem como, entre um evento secular promovido por agentes laicos e a externalidade do olhar. Neste sentido, se as fronteiras entre o religioso e o não-religioso aparecem borradas, a definição de práticas como pertencentes a ordem do sagrado ou a ordem do turístico também tornam-se mais difusas. Este tipo de problematização decorre do esgotamento de perspectivas analíticas dicotomizantes em que externo/interno, sagrado/profano, religioso/secular consti-tuem- se como pólos distintos e capazes de dar conta de variados fenômenos a partir de uma chave heurística do tipo “ou é isto, ou aquilo”. Tendo como referência empíri-ca a prática de caminhadas promovidas pela ACASARGS, elaboro, a seguir, uma discussão inicial sobre o alcance do mo-delo dicotômico cotidiano/não-cotidiano como explicação plausível para o turismo. Turismo como a prática do não-coti-diano O esforço de conceitualização do tu-rismo tem sido freqüente entre estudio-sos do fenômeno e, de algum modo, tem acompanhado uma série de transforma-ções epistemológicas das Ciências Sociais. Embora diversas, conforme os panoramas apresentados por Barretto (2000; 2003) e Silveira (2007), as definições inicialmen-te elaboradas podem ser descritas como conformando dois eixos explicativos. O primeiro deles recorria a elementos eco-nômicos e infra-estuturais para definir o que seja turismo. A presença e atuação de agências e rede hoteleira, por exemplo, são definidoras, segundo tais conceitos, da existência do fenômeno. Outro eixo que podemos denominar de essencialista, conforme propõe Silveira (2007), concebe o deslocamento e o tempo de viagem como determinantes para caracterização do tu-rismo. Numa tentativa de problematizar es-tas perspectivas, alguns autores lança-ram mão de definições que não concebiam o turismo a partir da presença de deter-minados serviços, mas a partir de um tipo de engajamento dos turistas. Conforme estas noções, o turismo se caracteriza a partir de oposições com o ordinário, com o trabalho, com o cotidiano e com a rotina (Smith, 1989; Graburn, 1989; Urry, 1990; Tuan, 1983). John Urry, em seu livro sobre o Olhar do Turista (1990) expressa: (...) torna-se necessário refletir sobre aquilo que produz um olhar turístico diferenciado. No mínimo deve haver alguns aspectos do lugar a ser visita-do que o distinguem daquilo que é en-contrado convencionalmente na vida cotidiana. O turismo resulta de uma divisão binária básica entre o ordiná-rio/ cotidiano e o extraordinário. As ex-periências turísticas envolvem algum aspecto ou elemento que induz experi-ências prazerosas, as quais, em com-paração com o dia-a-dia, situam além do habitual. (...) No entanto, os objetos potenciais do olhar do turista preci-sam ser diferentes de algum modo. Precisam situar-se fora daquilo que é ordinário. As pessoas precisam viven-ciar prazeres particularmente distin-tos, que envolvam diferentes sentidos, ou que se situem em uma escala dife-rente daquela com que se deparam em sua vida cotidiana (pp.28). Desse modo, o “olhar turista” não se constitui como único, universal, presente em toda extensão social, mas sim como uma forma de apreciação definida, sobre-tudo, por meio do contraste com aquilo “O caminho é aqui”: um estudo antropológico da experiência do Caminho... 75 PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 9(3). Special Issue. 2011 ISSN 1695-7121 Rodrigo Toniol que é, para o turista, cotidiano. A cons-tituição do “olhar do turista” depende, portanto, de experiências não-turísticas. Assim, é, justamente, a partir de uma re-lação contrastiva com aquilo que é habi-tual que práticas turísticas podem se ins-crever na ordem do extraordinário. Se por um lado, a definição do turismo como um modo específico de engajamento, cristali-zado em um tipo de “olhar”, problemati-za noções essencialistas e economicistas, por outro, ao recorrer ao contraste com o não-turismo, Urry dispersa a potência da análise do turismo como um fenômeno au-tônomo, tornando-o sempre atado ao seu estado contrastivo. A emergência desse contraste com o que é rotineiro é o próprio ponto de par-tida para Nelson Graburn definir, em seu texto seminal “Turism: the sacred journey”(1989), o que seja turismo. Para Graburn, eventos turísticos se definem enquanto tais por sua característica de ser um não-trabalho, oposto daquilo que é diário. O tipo de perspectiva lançada por Graburn destaca os aspectos relacionais entre eventos turísticos com àquilo que é vivido no cotidiano e, portanto, re-gulado. Tourism in the modal sense emphasi-zed here is but one of a range of choi-ces, or styles, of vacation or recreation – those structurally - necessary, ritua-lized breaks in routine tha define and relieve the ordinary (Graburn, 1989: 23). Embora tenham proporcionado um avanço nos aportes teórico-metodológicos disponíveis para a compreensão do turis-mo, estas conceitualizações parecem en-contrar seus limites quando se busca com-preender, por exemplo, os resorts. Nestes espaços, o que está em jogo não é o exótico, mas uma projeção de um cotidiano este-reotipado, padronizado, a imagem e se-melhança dos países de origem do turista (Silveira, 2007:24). As caminhadas promovidas pela ACA-SARGS, conforme procurararei apresen-tar, também conformam um contexto ca-paz de problematizar esta relação entre práticas turísticas e o não-cotidiano A communitas como não-cotidiano: uma breve retomada dos aportes te-óricos dos estudos sobre peregrina-ções e turismo religioso No que se refere a produção dedicada às peregrinações e ao turismo religioso podemos dividir esses estudos, seguindo a proposta de Steil (2003), em três grandes correntes teóricas, das quais me deterei, especialmente, em uma delas. A primei-ra é o funcionalismo que predominou na análise destes eventos até meados da dé-cada de 1970. Segundo esta perspectiva, a peregrinação é um fenômeno religioso que exerce a função de aumentar a coerência e a integração cultural dos grupos. Esta visão é bastante referenciada pelas idéias durkheimianas sobre sociedade como um todo coerente, orgânico e ordenado, em al-guma medida, por representações sociais que emergem de categorias religiosas. A religião, para Durkheim (1996), não se definia a partir de entidades sobrenatu-rais, mas sim por meio da administração através de rituais daquilo que é sagrado e profano. Essa dualidade não se restrin-ge apenas aos fenômenos religiosos como também ordena o social. Deste modo, as peregrinações são tomadas enquanto eventos unificadores do social e regenera-dores da moral. Estudos como os de Spi-ro (1970), Marx (1977), Rabinow (1975) e Wolf (1958) são alguns dos trabalhos que seguem esta perspectiva. A partir da década de 1960, os estudos de Victor Turner (1978; 1978b; 2008) rom-peram com as perspectivas funcionalistas que concebiam as peregrinações como eventos unificadores do social e regenera-dores da moral. Assim, Turner afasta-se da proposta, desloca o interesse durkhei-miano pelas coesões de um determinado grupo num contexto geográfico específico e passa a privilegiar as transformações, os processos pelos quais os eventos em questão atravessam. Victor e Edith Turner (1978b) busca-ram compreender as peregrinações cris-tãs a partir da análise de Van Gennep (1978) sobre os ritos de passagens. Estes ritos, que acompanham toda mudança de PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 9(3). Special Issue. 2011 ISSN 1695-7121 76 lugar, estado ou posição social, são cons-tituídos por três estágios: separação, tran-sição/ liminaridade e agregação. Interessa a Turner , sobretudo, a liminaridade, um estado que é difícil de localizar numa rede de classificação porque está, justamente, num ponto que escapa às classificações, que foge às categorias estruturais empre-gadas. É nesse momento liminar que se estabelece, entre os neófitos, um clímax de camaradagem em que traços distintivos de status sociais anteriores ou vindouros, tais como roupas, insígnias e marcas, são apagados, os sujeitos se homogeneízam e um sentimento de igualitarismo despon-ta. Uma mistura de submissão e santida-de, homogeneidade e camaradagem carac-terizam o estado liminar que, por sua vez, conforma-se como um momento dentro e fora do tempo, dentro e fora da estrutura. Emerge, nesses contextos, o que Turner chama de communitas. Com este conceito, Turner aponta para a existência de um constante tensiona-mento entre dois modelos de correlacio-namento, dois modelos que se alternam e se justapõem: o primeiro é o de uma so-ciedade estruturada, com posições hierár-quicas localizáveis e marcadas, o segundo modelo surge no período liminar e é ca-racterizado pela suspensão ou afrouxa-mento da estrutura o que gera uma extre-ma camaradagem aos sujeitos que aí se encontram, trata-se da communitas. Para os indivíduos ou para os grupos, a vida social é um tipo de processo dialético que abrange a experiência sucessiva do alto e do baixo, de com-munitas e estrutura, homogeneidade e diferenciação, igualdade e desigual-dade. A passagem de uma situação mais baixa para outra mais alta é feita através de uma linha de ausência de status (Turner, 1978, p. 122). Este processo dialético ocorre entre termos interdenpendentes, ou seja, a re-lação entre estrutura e a communitas é dialética, uma não pode ocorrer sem a existência de outra. Não se trata, por-tanto, de uma relação entre termos dia-metralmente opostos, mas dialeticamente relacionados. Para Turner, numa estru-tura18 todos os indivíduos estão expostos, invariavelmente, à alternância desses estados. Eventos como peregrinação são, por sua natureza, fenômenos liminares que propiciam o surgimento da communi-tas. O que sugiro é que a oposição entre cotidiano e não-cotidiano das análises do turismo, teve sua versão nos estudos sobre peregrinação e turismo religio-so a partir do conceito de communitas. Nesse sentido, a liminaridade estrutu-ral está no domínio do extraordinário, e as relações estruturadas correspon-dem ao ordinário. O efeito desta noção para os estudos sobre peregrinação foi deixar passar despercebido que as fron-teiras e distinções sociais poderiam não ser suspensas nas peregrinações, confor-me aponta a noção de communitas, mas mantidas e reforçadas (Eade e Sallnow, 1991; Coleman e Eade, 2004). A possibi-lidade de que a peregrinação não tenha este caráter extraordinário de suspen-são estrutural fica ainda mais evidente em experiências como as das caminha-das promovidas pela ACASARGS em que não apenas está ausente o caráter antiestrutural, como o próprio passa-do único em Santiago é presentificado e vivido cotidianamente. A seguir pro-curo apresentar alguns dos dispositivos presentes nas caminhadas capazes de remeter os peregrinos à experiência no Caminho de Santiago. O caminho é aqui: a experiência de caminhar numa associação de pere-grinos Há uma espécie de perfil dominante no tipo de percurso das atividades promovi-das pela ACASARGS. A maior parte das caminhadas ocorre em paisagens que re-produzem, em alguma medida, aquela ex-perienciada em Santiago. Isto é, embora ocorram em diversos locais, as caminha-das da Associação têm duas característi-cas relativamente permanentes. A primei-ra delas é que todas são caminhadas em estradas rurais com poucos ou nenhum “O caminho é aqui”: um estudo antropológico da experiência do Caminho... 77 PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 9(3). Special Issue. 2011 ISSN 1695-7121 Rodrigo Toniol momento em que os peregrinos tenham que atravessar trilhas em mata fechada, por exemplo. Outra característica é que a maior parte dos trajetos percorridos estão entre 20 e 25 quilômetros de caminhada que é, propriamente, a média diária de quilômetros percorridos pelos peregrinos durante o Caminho espanhol. Segundo os idealizadores da ACASAR-GS, no entanto, não basta que o lugar em que se caminha tenha similaridades com a Rota Jacobea, mas faz-se necessário também que o grupo crie determinadas estratégias que facilitem a referência à peregrinação. Em uma caminhada promovida em Santo Antônio da Patrulha, cidade próxi-ma a Porto Alegre, Fernanda, a presiden-te da ACASARGS, chamou a todos antes do início do trajeto para o interior de uma capela. Assim que entramos, ela iniciou, em bom espanhol, a oração do peregrino: ‘Señor Jesucristo que sacaste a tu siervo Abrahan de la ciudad de Ur de los Caldeos guardándole en todas sus peregrinaciones y que fuiste el guía de pueblo hebreo a través del desierto. Te pedimos te dignes bendecir a estos hijos tuyos que por amor a tu nombre peregrinan a Compostela”.“Sé para ellos: compañeros en la marcha, guía en las encrucijadas, albergue en el ca-mino, sombra en el calor, luz en la os-curidad, consuelo en sus desalientos y firmeza en sus propósitos; para que por tu guía lleguem incólumes al término de su camino y enriquecidos de gracias y de virtudes vuelvan ilesos a sus ca-sas llenos de saludables virtudes” “Por Jesuscristo, nuestro Señor” “Marchad en nombre de Cristo que es Camino y rezad por nosotros em Compostela” Ao final da oração perguntei a Marcos, um membro da diretoria da ACASARGS, porque fazer a oração naquele momento: A Associação é para isso. A gente se esforça para que o peregrino relembre o que viveu em Santiago aqui conosco. Não é sempre que dá para ir pra San-tiago e pra manter viva essa chama, a gente caminha aqui como se fosse lá. Claro que não é a mesma coisa, mas ajuda a manter viva a chama. E isso também é muito importante prá quem está se preparando pra ir pela primei-ra vez. Assim, a pessoa já se acostuma. A gente, da diretoria, podia caminhar em muitos lugares, sabe? Mas a gen-te se esforça para proporcionar essa sensação para o peregrino (Marcos, 42 anos). Ao contrário de grupos de ecoturismo em que há um número limitado de vagas e em que o atendimento personalizado é um indicativo de bom serviço, nas atividades da ACASARGS, o sucesso dos passeios organizados é medido pela quantidade de inscritos, tendo como limite mínimo de participantes quarenta pessoas. As cami-nhadas do grupo ocorrem sempre em um único dia, normalmente domingo. Com um baixo custo, esses passeios conduzem peregrinos em ônibus cedidos, na maior parte das vezes, pelas prefeituras dos lo-cais em que a caminhada será realizada. Pedro, um dos fundadores da ACASAR-GS e atual membro da diretoria, aponta sobre os objetivos mais gerais do grupo. Nosso objetivo não é ganhar dinheiro, mas sim levar os peregrinos para ca-minhar. A gente tenta fazer parceria com as prefeituras, com as paróquias para elas darem para gente algum apoio, com um ônibus ou um café da manhã, por exemplo. Mas tudo isso é para baixar o preço, para que todo mundo possa caminhar. A gente não faz caminhada de dois dias porque o pessoal tem que trabalhar no sábado e porque, aí, já ia começar a ficar caro (Pedro, 33 anos). Com uma média de setenta inscritos em cada caminhada, o grupo tem como ponto de encontro o centro de Porto Ale-gre de onde saem, normalmente, em dois ônibus seguidos por alguns carros de membros da diretoria. Tanto o trajeto de ida como o da volta são utilizados pelos coordenadores da ACASARGS para dar avisos e fazer propagandas de eventos que estejam relacionados com o Caminho de Santiago. Como pode ser notado neste tre-cho do diário de campo do dia 07 de julho de 2009. PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 9(3). Special Issue. 2011 ISSN 1695-7121 78 Antes mesmo do ônibus começar a andar, Fernanda, presidente da Asso-ciação, pegou um microfone e, pedin-do a atenção de todos, deu o seguin-te aviso: “Pessoal, como alguns de vocês já sabem, porque já avisamos na reunião de sábado, vai acontecer em setembro desse ano o primeiro curso de língua espanhola e de cultura do Caminho de Santiago de Compostela oferecido pela Universidade de San-tiago de Compostela. [Nesse momen-to, algumas pessoas do ônibus come-çaram a aplaudir e assoviar]. Quem quiser ir tem que falar comigo até mês que vem. O Pedro vai distri-buir agora um folheto pra cada um de vocês saberem do que se trata. Ou-tra coisa, quem está indo pra Santiago no próximo mês aí? [quatro pessoas levantaram as mãos]. Eu trouxe a credencial do peregrino que, para quem não sabe, é o passaporte que o peregrino carimba durante o Cami-nho e marca os lugares por que pas-sou. Quem estiver indo pode pegar ela comigo quando terminarmos a cami-nhada, a gente não cobra nada, só o custo da postagem, porque vem da Espanha, custa quatro reais.” Após Fernanda deixar o microfone, Mar-cos, membro da diretoria da ACA-SARGS e dono de uma editora que publica, exclusivamente, livros relacio-nados ao Caminho de Santiago tomou a palavra: “Olá escritores peregrinos, eu quero fazer um convite rápido pra vocês. Vocês sabem que nosso livro “Diários Peregrinos” esgotou rapida-mente seus 1300 exemplares. Este livro tornou-se um marco na li-teratura peregrina porque teve características de antologia. Este livro registrou os desafios enfrenta-dos pelos peregrinos que mostraram em seus relatos um mundo diferente, mais autêntico e mais natural que é o que vivemos em Santiago. Agora estamos com um novo trabalho, o livro “Relatos peregrinos” e vocês podem participar desse livro com quantas páginas quiserem. Pode ser foto, poema, relato, qualquer coisa. Quanto aos valores, são R$ 70,00 cada página, no mínimo de três pá-ginas. Se vocês escreverem mais de dez páginas cai pra R$ 60,00. Vocês recebem três exemplares do livro por página que escrevem e ainda ganham uma Cruz de Santiago, exclusiva, ba-nhada a ouro. Podem dividir o pa-gamento em quatro vezes. Quem se interessar, fala comigo” [Nota de 07 de julho de 2009]. O Caminho de Santiago é o assunto predominante durante as caminhadas promovidas pela ACASARGS. Embora seja abordado sob diversos aspectos, a referência ao Caminho é constante. Ela é, em geral, acionada por elementos que remetem a lembranças vividas durante a peregrinação à Santiago de Compostela. Em variadas ocasiões, ouvi referências, por exemplo, a uma árvore parecida com a que se viu durante a peregrinação, a uma bolha que surge no pé e no mesmo lugar de quando se fez o Caminho, ou mesmo à comida que, em Teutônia/RS, afirmava Paula, “é muito diferente de todas que ti-nha provado em Santiago”. Enquanto caminhavam, numa das ati-vidades da ACASARGS, numa intermi-nável subida, os peregrinos que já haviam ido à Santiago lembravam das dificulda-des de atravessar, já no primeiro dia do Caminho, os Pirineus. Essas memórias são despertadas a cada reta, a cada novo detalhe que surge no ambiente em que se caminha. No meio de uma conversa que não era sequer sobre Santiago, uma pere-grina afirma: Essa estrada está muito parecida com uma região da Galícia na primavera. Outra peregrina fala sobre como as ca-minhadas que faz com a ACASARGS se relacionam com suas experiências no Caminho: Isso daqui me lembra muito de quando fiz o Caminho. É uma pena, mas acho que não vou voltar para lá tão cedo e para quem ficou, o Caminho tem que ser feito aqui mesmo. A ambiência das caminhadas promo-vidas pela ACASARGS estabelecem uma “O caminho é aqui”: um estudo antropológico da experiência do Caminho... 79 PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 9(3). Special Issue. 2011 ISSN 1695-7121 Rodrigo Toniol significativa relação com a memória do peregrino, assumindo um sentido parti-cular com a história do próprio indivíduo, presentificando seu passado em Santiago por meio do ambiente em que caminha no Brasil. A fala dos peregrinos que reme-te a possibilidade de se fazer o Caminho “aqui”, conduz a reflexão acerca de um processo que consolidou Santiago não ape-nas como um local de peregrinação mas, sobretudo, como um tipo de experiência. Ao se colocar como divulgadora do Cami-nho no mundo as AACS têm divulgado uma sensibilidade, um modo de relação com o sagrado e com a paisagem, enfim, têm criado diversos Caminhos de Santia-go. A caminhada como prática do espaço e de experiência temporal Na Atenas contemporânea, os trans-portes coletivos se chamam metapho-rai. Para ir para o trabalho ou voltar para casa, toma-se uma “metáfora” – um ônibus ou um trem. Os relatos po-deriam igualmente ter esse belo nome: todo dia, eles atravessam e organizam lugares: eles os selecionam e os reúnem num só conjunto; deles fazem frases e itinerários. São percursos de espaços (De Certeau, 1994: 199). Se a conseqüência mais evidente do que Michel De Certeau afirma é que as estruturas narrativas têm valores de sin-taxes espaciais, também é verdadeiro que os deslocamentos no espaço adquirem va-lores narrativos. Ao se deslocarem, os ca-minhantes moldam espaços, seguem por trajetos já traçados, mas também podem subvertê-los e reorganizá-los. Para De Certeau, o ato de caminhar é um espaço de enunciação com uma tríplice função, em que cada um dos termos encontra paralelo com a língua: é um processo de apropriação do sistema topográfico pelo pedestre – assim como o locutor se apro-pria e assume a língua; é uma realização espacial do lugar – assim como o ato da palavra é uma realização sonora da lín-gua; implica o estabelecimento de relações entre posições diferenciadas – assim como a língua coloca seus falantes em relação (De Certeau, 1994:177). As caminhadas dos pedestres tornam-se, conforme esta perspectiva, retóricas ambulatórias que moldam percursos como os falantes mol-dam frases. Estas retóricas são formuladas, para De Certeau, a partir da articulação en-tre lugar e espaço. Lugar é aquilo que está estabelecido, a disposição das coisas conforme, por exemplo, o planejamento do trajeto elaborado pelos coordenadores da caminhada, já espaço é o lugar prati-cado, é o efeito da criatividade que deslo-ca, transgride o que está prescrito. Neste sentido, o espaço está para o lugar assim como a língua falada está para a gramá-tica. Ao lançarmos mão do estabelecimento desta relação entre aqueles que falam e aqueles que caminham, passamos a nos balizar por uma espécie de sombra em que todas as funções e práticas do idioma en-contram correspondentes no que De Cer-teau chama de retóricas ambulatórias. Por um lado, esta hipotética paridade per-mite que o ato ordinário de caminhar, de compor percursos adquira “dignidade de atenção”, mas por outro, limita as múlti-plas possibilidades de expressão deste ato como detentor de características específi-cas de manifestação, para além daquelas do idioma. Bachelard, em “A poética do espaço” (1984), aponta para uma perspectiva que reconhece a importância desta relação entre sujeito e espaço sem, contudo, cons-trangê- la a uma referência lingüística. Para o autor, a imaginação trabalha nos espaços verdadeiramente habitados a par-tir de imagens capazes de ditar a dinâmi-ca da relação entre passado, presente e futuro. O jogo temporal se dá a partir de uma espacialidade que não designa ape-nas um ambiente exterior ao sujeito, mas que o inclui, uma vez que a imagem, o es-paço e o tempo não se dão nem no sujeito, nem fora dele, mas a partir da relação. Aqui o espaço é tudo. Porque o tem-po não mais anima a memória. A memó-ria — coisa estranha! — não registra a duração concreta, a duração no sentido PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 9(3). Special Issue. 2011 ISSN 1695-7121 80 bergsoniano. Não se podem reviver as du-rações abolidas. Só se pode pensá-las na linha de um tempo abstrato privado de toda densidade. É pelo espaço, é no espaço que encontramos os belos fósseis de uma duração concretizados em longos estágios (Bachelard, 1984:203). Assim, é na medida em que estabele-cemos relações, constituímos histórias, e percorremos o espaço, que ele toma forma. Trata-se de concebê-lo não mais como externo aos Humanos, mas como constitutivo das dinâmicas sociais e tem-porais daqueles que o habitam, bem como constituído pelas relações nele engajadas, tornando-se, num jogo relacional, modifi-cador das práticas nele produzidas, mas também modificado por elas. A projeção de um lugar para caminhar, por parte dos organizadores da caminha-da, que fosse capaz de remeter o peregrino à Santiago, e a prática de um espaço por parte dos caminhantes, coloca em evi-dência não apenas a relação intrínseca e indistinta entre um sujeito que habita e um mundo que é habitado, como também evidencia a multiplicidade de imagens, no sentido bachelardiano, que as ações em torno de uma caminhada – seja de elabo-ração do trajeto, seja de sua feitura – com-portam. Isto é, a elaboração de um trajeto no Brasil que presentifique o passado em Santiago é possível na medida em que os espaços em que se caminha, podem ser ex-perimentados de maneiras distintas. De-terminados artifícios como fazer a oração do peregrino como se faz em Santiago, es-palhar setas amarelas para indicar o ca-minho como em Santiago e caminhar por paisagens e distâncias como em Santiago, sugerem uma experiência específica. A caminhada – seja no Brasil seja em Santiago -, conforme a concebo, promove este deslocamento, tanto objetivo como subjetivo, e o que interessa aqui talvez não seja nem um e nem outro como ele-mentos autônomos, mas enquanto rela-cionados. Flaneurs, voyeurs, peregrinos, caminhantes não são denominações que se constituem enquanto tal por conta de um território privilegiado a cada um de-les, mas na medida em que os espaços são mobilizados subjetivamente de maneiras específicas. Este tipo de perspectiva nos coloca diante de outro horizonte de ques-tões em que o que está em jogo é a expe-riência do turista e o modo pelo qual ele articula elementos como tempo, espaço e subjetividade. Trata-se de buscar perce-ber sua experiência como resultado de um arranjo relacional entre uma série de di-mensões e não de partir de um a priori em que esta experiência já está circunscrita numa única possibilidade, neste caso, a do não-cotidiano. Bibliografia: Bachelard, Gaston 1984 A poética do espaço A poética do es-paço. São Paulo: Martins Fontes. Barretto, Margarita. 2000 “As ciências sociais aplicadas ao turismo”. In Serrano, Célia; Bruhns, Heloísa T.; Luchiari, M. Tereza. (org.). Olhares contemporâneos sobre o turismo. Campinas: Papirus, (pp. 17- 36) 2003 “O imprescindível aporte das ciên-cias sociais para o planejamento e a compreensão do turismo”. In Hori-zontes Antropológicos, Porto Alegre, (20):15-30). Carneiro, Sandra de Sá. 2007 A pé e com fé: brasileiros no Cami-nho de Santiago. São Paulo: CNPq/ Pronex: Attar. Coleman, Simon e Eade, John. 2004 Reframing pilgrimage: cultures in motion. London/ New York: Routledge De Certeau, Michel 1994 A invenção do cotidiano: artes de fa-zer. Petrópolis:Vozes. Dupront, Alphonse. 1987 Du Sacré. Paris: Gallimard. Durkheim, Emile. 1996 As formas elementares da vida reli-giosa. São Paulo: Martins Fontes. Eade, John e Sallnow, Michael (eds) 1991 Contesting the Sacred: the Antro-pology of christian pilgrimage. Lon-don and New York, Routledge. Frey, Nancy Louise. 1998 Pilgrim Stories: on and off the “O caminho é aqui”: um estudo antropológico da experiência do Caminho... 81 PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 9(3). Special Issue. 2011 ISSN 1695-7121 road to Santiago. California: Univer-sity of California Press. Graburn, Nelson. 1989 “Tourism: the sacred journey”. In Smith, V. (ed.). Hosts and guests: the anthropology of touris : 21-36. Phila-delphia: University of Pennsylvania Press. Marx, Emanuel 1977 “Communal and individual pilgri-mage: the region of saints tombs in South Sinai”. In Werbner, R. P. (eds) Regional cults. London: London Aca-demic Press Rabinow, Paul 1975 Symbolic domination: cultural form and historical change in Morocco. Chi-cago: University of Chicago Press Smith, Valene (ed.). 1989 Hosts and guests: the anthropology of tourism. Philadelphia: University of Pennsylvania Press. Steil, Carlos Alberto. 2003 “Peregrinação, romaria e turismo religioso: raízes etimológicas e in-terpretações antropológicas”. In Abu-manssur, Edin Sued. (org.). Turismo religioso: ensaios antropológicos sobre religião e turismo: 29-52. Campinas: Papirus. Steil, Carlos Alberto e Carneiro, Sandra de Sá. 2008 Peregrinação, turismo e nova era: Caminhos de Santiago de Compos-tela no Brasil. Religião e Sociedade, 28(1):108-124. Silveira, Emerson 2007 Por uma Sociologia do Turismo. Por-to Alegre: Zouk. Spiro, Melford E. 1970 Budhism and society: a great tradi-tion and its burmese vicissitudes. New York, Harper & Row. Toniol, Rodrigo; Steil, Carlos Alberto. 2010 Ecologia, Nova Era e Peregrinação: uma etnografia da experiência de ca-minhadas na Associação dos Amigos do Caminho de Santiago de Composte-la do Rio Grande do Sul. In Debates do NER, 17:97-120). Tuan, Yi-Fu. 1983 Espaço e Lugar: a perspectiva da ex-periência. São Paulo: Difel. Turner, Victor. 1978 O processo ritual : estrutura e an-tiestrutura. Petropolis: Vozes. Turner, Victor. 1978b Image and Pilgrimage in Chris-tian Culture. New York, Columbia University Press. 2008 Dramas, campos e metáforas: ação simbólica na sociedade humana. Nite-rói: Ed. UFF. Urry, John 1990 The tourist gaze. Leisure and tra-vel in contemporary societies. London: Sage. Van Gennep, Arnold 1978 Os ritos de passagem. Petrópolis: Vozes Wolf, Eric 1958 The Virgin of Guadalupe: a Mexican national symbol. Journal of American Folklore 71(1): 34-39. NOTAS 1 Uma primeira versão deste trabalho foi apresenta-da na 27ª. Reunião Brasileira de Antropologia, reali-zada entre os dias 01 e 04 de agosto de 2010, Belém, Pará, Brasil. Agradeço aos comentários de Carlos Alberto Steil, Margarita Barretto, Álvaro Banducci Júnior e Rodrigo Grünewald. 2 T rata-se de u m símbolo do C aminho de San-tiago muito difundido entre os peregrinos. Sua origem é pagã e, durante a Idade média, era usada entre os cristãos como forma de identificação. 3 Sandra de Sá Carneiro propõe uma divisão em seis fases histórica do Caminho de Santiago. “A primeira fase vai do descobrimento do sepulcro até meados do século X, em que se iniciam as peregrinações a partir d os países estrangeiros; A segunda fase vai desde esse momento até o século XI, quando se entra na segunda fase de formação ou expansão do fenômeno; A terceira fase abrange os séculos XII, XIII e XIV, que constituem o esplendor d as pere-grinações jacobeas; A quarta fase está situada entre meados do século XIV até princípios do século XVI, esta é a fase mais crítica do fenômeno; A quinta fase vai desde o século XVI até praticamente o século XX; A sexta fase situa-se no século XX, quando co-meça o processo de revitalização sob novos padrões simbólicos, religiosos, sociais e culturais” (Carnei-ro, 2007: 66) 4 Um dos principais livros que promoveram o Ca-minho de Santiago no mundo foi o “Diário de um PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 9(3). Special Issue. 2011 ISSN 1695-7121 82 Mago” de Paulo Coelho, publicado pela primeira vez em 1987 e traduzido para 21 línguas. 5 Rota Jacobea é o nome como era conheci o Cami-nho de Santiago durante a Idade Média. Assim ficou conhecida a rota de peregrinação após o papa Ca-lixto II, no século XIII, considera-la uma forma de obtenção de indulgência plenária. Os termos Rota Jacobea e Caminho de Santiago são usados, atual-mente, como sinônimos. 6 A Xunta de Galícia é um colegiado do governo da Galícia responsável por promover as atividades relacionadas ao Caminho de Santiago que são de in-teresse da província espanhola. 7 Oficina de peregrinaciones é uma organização que tem como objetivos, segundo o site www.pe-regrinando. org, “conservar, proteger e fomentar o Caminho de Santiago e coordenar o voluntariado, ampliando-o ao Brasil, Itália e outros países, criando assim uma rede de Voluntários para a execução de todos os fins e objetivos de seus estatutos”. 8 Fonte: http://www.santiago.org.br/ (consultado em 15/08/2009) 9 Fonte: http://www.santiago.org.br/ (consultado em 15/08/2009) 10 Fonte: http://www.santiago.org.br/ (consultado em 15/08/2009) 11 Existem, ao menos, nove rotas que levam a Igre-ja de Santiago de Compostela, sendo a mais popular entre os brasileiros o Caminho Francês. 12 Estas dicas vão desde longas discussões a respei-to de que calçado usar, ou quantas calças levar até albergues que se deve ficar e pessoas que se deve procurar. 13 A compostelana é um documento fornecido pela Igreja que certifica a realização da peregrinação. Para recebê-la o peregrino precisa: apresentar um documento chamado credencial do peregrino que comprova os locais em que se passou durante a peregrinação, dizer que uma das razões para a realização da pere-grinação foi religiosa e provar que percorreu os últimos 100 Km, para os que estão a pé, e 200 Km, para os que estão de bicicleta ou a cavalo, sem auxílio de transportes mo-torizados 14 Os valores em dólares seria entre U$22.00 e U$ 32.00 15 www.santiagoperegrino.com.br 16 Fonte: http://www.santiagoperegrino.com.br/ (consultado em 15/08/2009) 17 Fonte: http://www.santiago.org.br/ (consultado em 15/08/2009) 18 Turner define estrutura como “arranjos padroni-zados de conjuntos de papéis, conjuntos de posições e seqüências de posições reconhecidas consciente-mente e operado regularmente em uma sociedade determinada e intimamente ligados a normas e san-ções locais e políticas” (Turner, 2008:221) Recibido: Reenviado: Aceptado: Sometido a evaluación por pares anónimos 18/08/2010 27/09/2010 05/12/2010 “O caminho é aqui”: um estudo antropológico da experiência do Caminho... |
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