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© PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural. ISSN 1695-7121
Etnografando na cidade: práticas, narrativas e construções
simbólicas sobre o Turismo no Centro Luiz Gonzaga de
Tradições Nordestinas - RJ
Aline Rocha Neryi
Universidade Federal de Juiz de Fora
Resumo: Este trabalho tem como objetivo a exposição de algumas considerações sobre o Centro
Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas, atrativo turístico da cidade do Rio de Janeiro criado no ano
de 2003 a partir da transferência da antiga Feira de São Cristóvão para dentro do Pavilhão de São
Cristóvão. Para tanto, em um exercício de reflexão sobre a subjetividade na pesquisa social, relato os
caminhos que me levaram até este objeto de estudo, tecendo, posteriormente, algumas considerações
preliminares relacionadas ao turismo neste espaço.
Palavras-chave: Etnografia, Subjetividade, Turismo, Construções simbólicas, Feira de São
Cristóvão.
Title: Ethnography in the city: practices, narratives and symbolic constructions on Tourism at Luiz
Gonzaga Northeastern Traditions Center- Rio de Janeiro
Abstract: The research aims to introduce some considerations about “Luiz Gonzaga Center for
Northeastern Traditions”, a tourist attraction located in Rio de Janeiro. The Center was created
in 2003 when the old “São Cristóvão Street Market” (Feira de São Cristóvão) was transferred to
“São Cristóvão Pavillion”. Reflections about subjectivity in social research are registered in this
paper, as well as a description of the ways that took me to this research object and some preliminary
considerations related to tourism in that place.
Keywords: Ethnography; Subjectivity, Tourism, Symbolic constructions, São Cristóvão Street
Market.
i Mestranda em Ciências Sociais, Especialista em Planejamento e Gestão Social e Turismóloga. E-mail: linenery@yahoo.
com.br
Vol. 9(3) Special Issue págs. 31-44. 2011
PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 9(3). Special Issue. 2011 ISSN 1695-7121
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A subjetividade na pesquisa so-cial
e os caminhos que me leva-ram
ao Centro Luiz Gonzaga de
Tradições Nordestinas
A antropologia é também a ciência dos
observadores capazes de observarem a si
próprios
François Laplantine
“Ter valores ou não ter valores: a ques-tão
está sempre conosco”. Ao iniciar com
esta frase o texto “De que lado estamos”,
um dos capítulos de seu livro “Uma teoria
da Ação Coletiva”, Howard Becker (1977)
incita-nos a uma reflexão acerca desta
questão que, ainda tão atual, permeia
o campo das ciências sociais. Como nos
portar diante de nossos interlocutores? É
possível, de algum modo, reprimirmos a
nossa subjetividade? Como pensar a obje-tividade
na pesquisa social?
Para Becker, a questão de termos ou
não valores, aparentemente apresentada
a nós como um dilema, na verdade não
existe, pois, para que existisse, seria pre-ciso
supor que é possível fazermos uma
pesquisa que não seja contaminada por
simpatias pessoais e políticas, o que, de
fato, é impossível; afinal, não podemos
evitar tomar partidos. Deste modo, o au-tor
sugere-nos que a questão seja alçada a
um outro nível de discussão, no qual nos
interroguemos acerca das seguintes ques-tões:
irá a pesquisa ser afetada por esta
simpatia? Será ela útil na construção
da teoria científica ou na aplicação
do conhecimento científico aos proble-mas
práticos da sociedade? Ou o bias
introduzido pela tomada de posição a
tornará inútil para estes fins? (Becker,
1977:123)
De acordo com Becker, não há posição
a partir da qual nossa pesquisa seja feita
que não contenha bias em uma ou outra
direção. O fato é que sempre olhamos a
questão do ponto de vista de alguém. A
própria necessidade da delimitação do
nosso campo de observação nos leva a isto,
o que nos faz pensar que a questão, por-tanto,
é termos a certeza de que,
independentemente do ponto de vista
adotado, nossa pesquisa conseguirá
satisfazer os padrões do bom trabalho
científico; que nossas inevitáveis sim-patias
não tornarão nossos resultados
sem validade. (Becker, 1977:133).
Laplantine (2007), ao discutir a ques-tão
da subjetividade, concorda com Becker
acerca da impossibilidade de uma neutra-lidade
por parte do pesquisador, alegando
inclusive que a busca da mesma constitui
um perigo. Segundo o autor, é justamente
quando almejamos esta suposta neutrali-dade
que corremos o risco de nos afastar-mos
do tipo de objetividade e do modo de
conhecimento específico que objetivamos.
A busca desta suposta auto-suficiência
faz com que acabemos nos esquecendo do
princípio de totalidade, que, no estudo de
um fenômeno social,
supõe a integração do observador no
próprio campo de observação”. Afinal,
“parece impensável dissociar aquele
que observa daquele que é observado,
uma vez que “nunca somos testemu-nhas
objetivas observando objetos, e
sim sujeitos observando outros sujei-tos.
(Laplantine, 2007:169).
Por que, então, muitos de nós, ain-da
assim, teimamos em tentar reprimir
nossa subjetividade? Segundo Laplanti-ne
(2007), isso estaria relacionado a um
modelo objetivista utilizado na física até o
final do século XIX, quando acreditava-se
que um objeto de investigação poderia ser
construído independente do observador.
Esta seria, também, contemporaneamen-te,
uma das tendências das ciências hu-manas:
a objetivação dos sujeitos sociais
em consonância a uma dissimulação do
observador. A eliminação do sujeito, neste
caso, consistiria uma premissa na busca
por um modo de racionalidade que almeje
alcançar critérios de objetividade. O autor
nos mostra, no entanto, que, curiosamen-te,
a volta do observador ao campo da ob-servação
se deu não através das ciências
humanas, mas sim pela própria física mo-derna,
ao reintegrar
a reflexão sobre a problemática do su-jeito
como condição de possibilidade da
própria atividade científica. (Laplanti-
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ne, 2007:172).
Uma das alternativas a esta questão
consiste em deixarmos sempre claros os
limites do que estudamos, delineando as
fronteiras além das quais nossas descober-tas
não podem ser aplicadas sem problemas
(Laplantine, 2007; Geertz, 2001). Outra,
ressaltada por Geertz (2001), diz respei-to
ao reconhecimento de que somos todos
“observadores posicionados, ou situados”
(utilizando-se da expressão de Ricardo
Rosaldo). Esta postura, longe de represen-tar
uma fragilidade do trabalho de campo,
deve ser vista como um avanço. Portanto,
é tendo como base estas premissas, e ba-seando-
me na convicção de “aquilo que o
pesquisador vive, em sua relação com seus
interlocutores, é parte integrante de sua
pesquisa”, assim como que “uma verda-deira
antropologia científica deve sempre
colocar o problema das motivações extra-científicas
do observador e da natureza da
interação em jogo” (Laplantine, 2007:170),
é que inicio este trabalho relatando os ca-minhos
que me levaram até a Feira de
São Cristóvão, já Centro Luiz Gonzaga de
Tradições Nordestinas. Nessa “viagem”
que me vi levada a empreender, na qual
ingressei como turista e caminho como
turismóloga e antropóloga, as descobertas
vão sendo efetuadas como na montagem
de peças de um grande quebra-cabeça.
Se no início as informações são mui-tas
e as dificuldades para me situar em
campo se apresentam, aos poucos alguns
aspectos vão se mostrando relevantes
para a análise. Este artigo, portanto,
longe de apresentar verdades absolutas,
constitui uma primeira reflexão sobre o
turismo no Centro Luiz Gonzaga de Tra-dições
Nordestinas, abordando aspec-tos
que ainda serão melhor trabalhados
. Para iniciarmos este percurso, no entan-to,
precisamos retornar ao ano de 2006,
quando pela primeira vez tomei conheci-mento
da feira.
O “causo” Zé da Onça e Carrapeta
Ano: 2006, época em que eu trabalha-va
no turno da tarde como estagiária no
Museu Ferroviário de Juiz de Fora - MG.
Adorava o estágio: os projetos de educação
patrimonial desenvolvidos nas escolas, as
visitas guiadas, o contato com pessoas di-ferentes,
as histórias ouvidas... Cada um
que por ali passava experenciava o acer-vo
e o momento de uma forma diversa.
Objetos para uns sem significados, para
outros, remetiam às lembranças mais
profundas do ser. Risos e lágrimas, longe
de representarem manifestações unica-mente
fisiológicas, expressavam-se ali en-quanto
linguagem, assumindo contornos
simbólicos. (Mauss, 2005).
Foi numa tarde dessas que ocorreu
meu primeiro contato com a Feira de
São Cristóvão, a partir de um caso so-bre
“Zé da Onça” e “Carrapeta” (artis-tas
trabalhadores da Feira) que me foi
contado no Museu por Evandro Teixeira
(na época em passagem pela cidade de
Juiz de Fora com um colega de trabalho
do Jornal do Brasil). Artistas populares
antigos da Feira, “Zé da Onça” e “Carra-peta”
teriam sido convidados, por inter-médio
de Evandro, para uma apresenta-ção
em um evento na Suíça, onde, junto
a demais artistas brasileiros, representa-riam
o Brasil. Como Evandro já estaria
no país a trabalho, combinou de encontrá-
-los no Aeroporto. No entanto, o que ele
não contava é que a dupla se perderia ali,
sem saber falar a língua local e, tampouco
a língua inglesa. Este episódio teria sido
suficiente para o estabelecimento de uma
grande confusão, que só teria sido resol-vida
quando as autoridades locais aciona-das
por Evandro, depois de bastante tem-po,
finalmente encontram “Zé da Onça” e
“Carrapeta” em um canto do Aeroporto.
Chama-me a atenção o fato que se segui-ria.
Recebidos como artistas pela organi-zação
do evento, a dupla teria tido acesso à
comida farta e variada, ou à alimentação
que quisessem; no entanto, por não haver
no local as iguarias com as quais estavam
acostumados, teriam praticamente passa-do
fome durante toda a viagem, voltando,
de certo modo, decepcionados ao Brasil.
Ao chegarem à Feira (divertia-se Evan-dro
enquanto compartilhava conosco essa
estória), antes de iniciarem mais uma de
suas apresentações, teriam pegado o mi-
Aline Rocha Nery
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crofone e começado a compartilhar com os
conterrâneos a saga na “Ôropa”. Na me-dida
em que iam narrando, a multidão se
aglomerava para ouvi-los. E, naquele cli-ma
de retorno ao lar, gritavam ao microfo-ne,
extravasando seus sentimentos:
_ “Conterrânos”, vocês acham que lá é
chique?
_ (E a multidão em coro): Nããããoooo!
_ Vocês acham que lá tem arroz?
_ Nããããoooo!
_ Que tem “feujão”? (feijão)
_ Nããããoooo!
_ Que tem buxada (buchada)? Sarapa-tel?
_ Nããããoooo!
_ E vocês querem ir pra lá?
_ Nããããoooo!
_ Por que qual é o melhor lugar do
mundo?
_ É aquiiiiiii!
E, assim, teriam dado início ao show
da noite. (Adaptação minha).
Entre os vários casos contados por
Evandro durante nossa conversa, cha-mou-
me a atenção este em particular. En-quanto
Evandro relatava sobre a Feira, a
produção de seu livro com fotos da Feira
“antiga” (ao ar livre) e da “nova” (após sua
transferência para dentro do Pavilhão de
São Cristóvão), silenciosamente eu ficava
me perguntando que lugar seria aquele.
Quem seriam aquelas pessoas que encon-travam
ali segurança afetiva e acolhimen-to?
Sem que eu me atentasse para este
fato na época, começava naquele momento
o início de minha viagem à Feira de São
Cristóvão, através da busca por maiores
informações e da construção de aspectos
subjetivos que moldariam a minha expe-riência
futura. Trata-se do que Santana
(2009:77) define como a primeira fase da
experiência turística: o momento que an-tecede
o deslocamento propriamente dito
e durante o qual a viagem em si chega a
ocupar uma parte considerável do nosso
tempo, que passa a ser “alterado, progra-mado
e condicionado por e para a idéia” de
abandono do cotidiano. Longe de ser gasto
apenas com os aspectos práticos da via-gem
(como a escolha do meio de transpor-te,
de hospedagem, do roteiro a ser feito,
e a arrumação da bagagem, por exemplo),
é também empregado na construção das
nossas expectativas.
Passaram-se alguns meses até que
chegasse o mês de novembro de 2006, épo-ca
em que finalmente surgiria a oportu-nidade
de, talvez, conhecer a Feira! Apre-sentaria
um trabalho em um Congresso
em Curitiba – PR, para onde iria a partir
de um vôo saindo do Rio de Janeiro, em
uma segunda-feira. Combinei com Flávia,
amiga que na época também trabalhava
comigo no Museu Ferroviário, de passar-mos
o fim de semana anterior à viagem no
Rio. Assim, conheceríamos um pouco a ci-dade
e, na segunda, eu embarcaria rumo
a Curitiba. E dessa forma aconteceu.
Fomos para o Rio de Janeiro de ôni-bus
até a Rodoviária, onde Evandro nos
aguardava para gentilmente nos levar até
o Albergue da Juventude em que ficarí-amos
hospedadas, no bairro de Ipanema
. Após colocarmos “o papo em dia”, com-binamos
que ele nos buscaria de carro à
noite, no Albergue, para irmos à Feira.
Logo, algumas horas depois, lá estávamos
nós em direção à Feira de São Cristóvão.
Éramos quatro: Flávia, Evandro, uma
amiga sua (também Flávia) e eu. Como
não conhecia o Rio de Janeiro na época,
não fazia a menor idéia da distância em
que nos encontrávamos de lá. Mas isso,
naquele momento, parecia ser o que me-nos
importava.
Muitas expectativas e emoções nos cer-
Fachada do Centro Luiz Gonzaga de Tradições
Nordestinas (Foto: Aline Nery. Junho de 2009).
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cavam em direção ao nosso destino. Den-tro
do carro, eu olhava atenciosamente o
cenário daquela cidade grande. Devia ser
pouco antes das 22h quando adentramos
um grande estacionamento, sendo avisa-dos
por Evandro que chegamos. Lembro-
-me que o Pavilhão (onde a Feira está lo-calizada),
bem à nossa frente, me chamou
bastante a atenção. Afinal, não era bem
aquela a idéia que eu fazia de uma Feira.
A música alta ultrapassava as barrei-ras
físicas do Pavilhão e parecia nos con-vidar
a entrar. Assim, após comprarmos
nossos ingressos, finalmente, adentramos
na Feira. Cheiros variados nos recebiam,
como o de milho cozido e churrasco. A fu-maça
advinda de pequenas churrasquei-ras
localizadas na porta das barracas era
encontrada em vários espaços da feira.
Uma variedade de músicas se misturava
a um grande número de pessoas, também
muito diversificado. Na medida em que eu
percorria o espaço, minha visão se perdia
entre a multiplicidade de cores, sons e
pessoas no ambiente.
Aproveitamos a noite como turis-tas.
Apreciamos as barracas, compra-mos
sandálias de couro, comemos, con-versamos,
rimos, dançamos. Em frente
a um pequeno palco de madeira, onde
um trio tocava forró “pé-de-serra”
, Evandro se divertia fotografando-me en-quanto
eu era rodopiada e virada de ca-beça
para baixo por um exímio parceiro
de dança, em uma performance de atrair
a atenção do público que estava ao redor.
Evandro estava radiante, gritava “mais,
mais”, para que pudesse captar a imagem
nos momentos em que eu estava no alto.
Meu parceiro de dança, mostrando toda a
sua habilidade, me girava cada vez mais.
Em meio à tentativa de ganhar fôlego, ao
medo de cair e às crises de riso (que de
vez em quando me acompanham em mo-mentos
de tensão) eu não conseguia pedir
para ele parar. Foi preciso esperar o fim
da música para que eu conseguisse, edu-cadamente,
me esquivar da dança.
Seguimos para a “Barraca da Chiqui-ta”,
que, segundo Evandro, era uma das
melhores ali no ramo da alimentação.
Comemos carne de sol, conversamos, e,
embora eu tenha passado mal devido aos
minutos precedentes de forró e ao abuso
subseqüente da manteiga de garrafa, con-tinuamos
nosso passeio, e o tempo trans-correu
sem que nos déssemos conta. Por
volta das 3h da madrugada, lá estávamos
nós voltando rumo ao Albergue em Ipane-ma.
No dia seguinte, domingo, devia ser
por volta das 12h quando falamos com
Evandro. Ele daria um curso prático de
fotografia na Feira à tarde e convidou-nos
a ir com ele. Nos fins de semana a Feira
funciona ininterruptamente, das 10h de
sexta-feira às 20h do domingo, com uma
programação fixa. Alguns trabalhadores,
na tentativa de descansarem um pouco
Trio de “forró pé de serra”. (Foto: Flávia Paiva.
Junho de 2009).
Freqüentadores dançando o “forró pé de
serra”, em área afastada do centro. Para
muitos, ali estaria o “autêntico” forró da Feira,
em oposição ao forró eletrônico, tocado nos
palcos principais. (Foto: Flávia Paiva. Junho
de 2009).
Aline Rocha Nery
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para mais um dia de trabalho, dormem
em suas próprias barracas no início da
manhã.
Neste domingo era dia de show do
“Brega” na Feira, e tivemos a oportunida-de
de assistir, dentre outros, ao show de
Bernadete. Acima dos 50 anos de idade,
cabelos curtos pintados de loiro, vestido
vermelho e bastante maquiagem, Berna-dete
cantava e dançava em um ritmo de
tirar o fôlego até dos mais jovens. Junto
a um outro artista do show brega da Fei-ra,
figura engraçadíssima, encenava suas
músicas (quase todas com duplo sentido)
para delírio e risadas da platéia. Pessoas
de todas as faixas etárias, de crianças a
idosos, se aglomeravam ali para assistir
ao show, inseridas naquele contexto sig-nificacional
em que a música brega cria
uma reflexividade com o público, havendo
uma interação entre mensagem e recep-tor.
Rede de significados que são interpre-tados
por aqueles que se sentem inseri-dos
naquele sistema significacional, onde
significado e significante intercambiam e
dialogam. Há um mergulho na história
e o público participa da mesma, um ir e
vir atemporal, onde público e artistas fa-zem
parte da grande ópera multi-cultural
(Giacomini e Costa; 2008).
Nos intervalos, Bernadete vendia seus
CDs. As pessoas a parabenizavam e pe-diam
autógrafos. Fui cumprimentá-la e
aproveitei para perguntar como ela conse-guia
dançar por tanto tempo. Bernadete
contou-me que tinha um problema sério
na coluna que lhe causava muitas dores,
e que, assim como eu, também não sabia
como conseguia dançar, tampouco por
tanto tempo.
No artigo intitulado “Emoção e re-lações
de gênero no universo “brega”:
corpos, corações e mentes em transbor-damento
emocional”, Sônia Maria Giaco-mini
(2007) auxilia-nos na compreensão
do universo brega na Feira de São Cris-tóvão.
Ao apresentar alguns resultados
parciais sobre as práticas de sociabilida-de
e relações afetivas em um grupo de
freqüentadores das barracas “brega” da
Feira, Giacomini esclarece que, de modo
geral, “é possível afirmar que o “brega” é
considerado como parte de um conjunto
genericamente caracterizado como a “cul-tura
regional nordestina”, cuja celebração
constituiria o motivo e a própria razão de
ser da Feira. Ainda que não goze de es-tatuto
equivalente ao cordel ou do forró,
que são expressões culturais vistas como
as mais genuinamente nordestinas, a mú-sica
“brega”, com sua forma expressiva
e seus personagens característicos, está
longe de ser considerada algo estranho ou
destoante na Feira, mesmo do ponto de
vista dos freqüentadores mais tradiciona-listas.
De fato, nos anúncios oficiais que
propagandeiam a Feira, a música “brega”
é apresentada como uma das mais “mar-cantes”
atrações, incluída, ao lado do for-ró,
entre as expressões que desde o início
marcaram o local”. (p.05).
Isso explica-nos a reação calorosa da
platéia à performance de Bernadete, bem
como a duração de seu show naquele do-mingo
de 2006 (aproximadamente quatro
horas), em que figurava como uma das
principais apresentações do dia. De acor-do
com informações obtidas pela autora
no site oficial da Feira, o brega já existi-ria
ali desde os tempos em que a mesma
funcionava ao ar livre, quando já se en-contravam
aquelas “figuras excêntricas e
engraçadas da música brega na Feira que
nunca deixaram de se exibir naquele es-paço”.
De acordo com as informações for-necidas
no site
essas tradicionais expressões do mun-do
brega fazem parte do CLGTN e aju-dam
o local a se tornar um autêntico
reduto dos paus-de-arara no Rio de
Janeiro. (Fonte: www.feiradesaocristo-vao.
com.br apud Giacomini. Acesso em
14/09/2007).
Continuamos a percorrer a Feira.
Impressionava-me a heterogeneidade dos
espaços e dos freqüentadores dos mesmos.
Andamos um pouco e paramos em frente
a uma barraca onde estava tocando sam-ba.
Dois travestis dançavam em cima de
um tambor, enquanto o restante das pes-soas
sambava no chão ou apenas aprecia-va
a cena. Continuamos a caminhar e nos
deparamos com um grupo distinto dan-çando
funk. Mais à frente, caixas de som
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instaladas nas barracas exibiam música
sertaneja. Casais se abraçando e dançan-do
juntos. Roupas, gestos, comportamen-tos
distintos em cada um desses espaços.
Emoções vivenciadas de várias formas
dentro daquele espaço maior, a Feira de
São Cristóvão.
Embora provavelmente devêssemos
ter passado várias vezes pelos mesmos
lugares na Feira, não consegui me situ-ar.
Tampouco ter a dimensão exata do
tamanho da mesma. As imagens que eu
captava pareciam-me fragmentadas, como
se eu tivesse que selecionar o que ver, em
meio a tanta coisa a ser vista.
Anoiteceu, e, mais uma vez, lá es-távamos
nós em direção ao Albergue.
Repassando mentalmente os momentos
vivenciados, em meu íntimo ressoavam
as seguintes questões: que espaço seria
aquele, para comportar tanta diversida-de?
Quem seriam aquelas pessoas que ali
se encontravam? Como Bernadete conse-guia
dançar quatro horas seguidas, com
dores na coluna, se eu não consigo? E
aqueles ritmos diversos, abrigando públi-cos
também diversos, convivendo dentro
de um mesmo espaço físico? Como seriam
estabelecidas essas fronteiras? Fui para
Curitiba cheia de questionamentos.
Passaram-se quase três anos até que
eu retornasse à Feira, em julho de 2009,
para a pesquisa exploratória (Nery, 2010)
que me fez decidir por ela como meu cam-po
de estudo no mestrado em Ciências
Sociais da Universidade Federal em Juiz
de Fora – MG. Desta vez, o olhar foi ou-tro.
A preocupação também. Neste es-tudo
preliminar, conversei com alguns
trabalhadores a fim de investigar o que
a Feira representava para eles. Que sig-nificados
eram construídos socialmente
ali. Nos momentos em que estive com eles,
dividiram comigo suas conquistas, seus
anseios e experiências compartilhadas.
Outras idas se seguiram até o momento
presente. Em cada uma delas, amplia-se
minha compreensão. Aquela feira que eu,
despretensiosamente, conheci em 2006,
trata-se na verdade do Centro Luiz Gon-zaga
de Tradições Nordestinas - CLG-TN.
Um espaço resultante da transfe-rência
da antiga Feira de São Cristóvão
para dentro do Pavilhão de São Cristóvão,
a partir de um acordo envolvendo interes-ses
distintos e tendo como mediadores a
Caixa Econômica Federal, a Prefeitura do
Praça Catolé da Rocha, mais conhecida como
Praça dos Repentistas. Na foto, senhor Zé Duda e
seu parceiro cantam o repente para a platéia que
se renova durante a noite. (Foto: Aline Nery. Julho
de 2010).
O público assistindo aos repentistas. (Foto: Aline
Nery. Julho de 2010).
Avenida principal que estabelece ligação entre os
dois palcos principais: palco João do Vale e palco
Jackson do Pandeiro. (Foto: Aline Nery. Junho de
2009).
Aline Rocha Nery
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Município do Rio de Janeiro e a Coopera-tiva
dos Comerciantes da Feira de Tradi-ções
Nordestinas do Campo de São Cristó-vão
(presidida na época por Agamenon de
Almeida). Este processo, no entanto, apre-senta
características complexas o bastan-te
para ser aqui exposto em poucas linhas.
Para o momento, gostaria de frisar apenas
que, a partir da transferência da Feira de
São Cristóvão para dentro do Pavilhão, a
mesma adquire uma nova configuração,
passando a ser divulgada como um atra-tivo
turístico da cidade do Rio de Janeiro
. É, portanto, sobre algumas resultantes
deste processo, cujos resultados começam
a ser percebidos mais nitidamente agora,
que busco discorrer brevemente nas li-nhas
a seguir.
Reflexões preliminares sobre o
turismo no Centro Luiz Gonzaga
de Tradições Nordestinas
Adentrar o Centro Luiz Gonzaga de
Tradições Nordestinas, ou melhor, a atual
Feira de São Cristóvão (como o CLGTN é
conhecido), é adentrar em um espaço ex-tremamente
múltiplo e heterogêneo. Uma
variedade de estímulos (visuais, sonoros,
olfativos) nos permeia em um cenário cul-tural
onde modernidade e tradição se mis-turam.
A diversidade encontrada na Feira
ao ar livre permanece neste novo cenário,
agora institucionalizado.
O antigo campo de São Cristóvão,
onde a feira acontecia, transforma-se em
um estacionamento com capacidade para
aproximadamente 700 veículos, onde nos
finais de semana pode-se notar a presença
de automóveis de diversas regiões do país.
Com a transferência da Feira de São
Cristóvão para dentro do Pavilhão, mui-tas
foram as transformações ocorridas.
Na medida em que o novo espaço é inau-gurado,
novos atores sociais entram em
cena: ao mesmo tempo em que surgem
estabelecimentos nunca antes existentes
na Feira, muitos feirantes antigos são ex-cluídos
do processo.
Muitos antigos feirantes acharam que
não poderiam comportar as despesas
referentes ao novo espaço: cobertura,
acabamento nas instalações da sua
unidade produtiva, luz, água e outras
despesas. E no espaço de quem não
pôde ou não quis, alguns feirantes se
expandiram ou outros chegaram, acre-ditando
em bons negócios num futuro
promissor. (Ribeiro, 2004:88).
Rua localizada em área mais periférica. À esquerda,
exemplo dos churrasquinhos mencionados
anteriormente, muito comuns na Feira. (Foto: Aline
Nery. Julho de 2010).
Entrada do restaurante “Baião de Dois”, localizado
em uma das avenidas principais. (Foto: Aline Nery.
Julho de 2010).
Cozinha Industrial. Restaurante “Baião de Dois”.
(Foto: Aline Nery. Julho de 2010).
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Na nova Feira, duas são as entradas
principais, que dão acesso a uma avenida
que liga uma extremidade à outra do Pa-vilhão.
Na parte interna, perpendicular-mente
a estas entradas, uma outra ave-nida
liga os dois palcos principais (João
do Vale e Jackson do Pandeiro), formando
uma espécie de cruz na qual no centro
localiza-se a Praça dos Repentistas, uma
das atrações principais do espaço.
O espaço interno é dividido em ruas,
que recebem nomes dos Estados e artis-tas
nordestinos. Ao mesmo tempo em que
ocorre um processo de valorização das
ruas próximas ao centro e aos palcos prin-cipais,
verifica-se um movimento de peri-ferização
das áreas do entorno. Devido à
forma como foi projetada, a Feira passa a
ter valores imobiliários. Palcos fixos são
criados para as manifestações artísticas,
denominados também por nomes de artis-tas
nordestinos. Muitos barraqueiros, no
entanto, criam estruturas de som em suas
próprias barracas, onde ocorrem shows
diversos, reproduzindo algo que já acon-tecia
na antiga feira. É criada também
Área interna do Restaurante “Fome Zero”,
localizado em área mais periférica. (Foto: Aline
Nery. Julho de 2010).
Substituindo o cardápio formal, tabela de preços
improvisada afixada na parede. (Foto: Aline Nery.
Julho de 2010).
Na foto, barraca vazia sendo utilizada para
armazenamento de materiais de construção. (Foto:
Aline Nery. Julho de 2010).
Barraca de produtos nordestinos. (Foto: Flávia
Paiva. Junho de 2009).
Casa de Shows “Mistura Brasileira”. (Foto: Aline
Nery. Julho de 2010).
Aline Rocha Nery
PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 9(3). Special Issue. 2011 ISSN 1695-7121
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uma agenda fixa de atrações, assim como
grandes shows passam a ser realizados no
local.
Dentre as transformações estruturais,
as barracas ganham não apenas insta-lações
fixas, cobertura e infra-estrutura
(água-encanada, cartão de crédito e telefo-ne),
mas também se modificam para aten-der
ao novo público. Da decoração diferen-ciada
para atrair os clientes à instalação
de ar-condicionado em algumas barracas
centrais. Em algumas, como a “Baião de
Dois”, localizada em espaço privilegiado
em uma das ruas centrais da Feira, próxi-ma
a um dos palcos principais, encontra-mos
uma estrutura típica de um grande
restaurante: dezenas de funcionários, co-zinha
industrial, padronização de utensí-lios
como uniformes, toalhas e todo o res-tante,
ambiente climatizado, delimitação
da “barraca” toda em blindex, e, finalmen-te,
a capacidade de atender centenas de
pessoas. Contrastando com barracas como
a Baião de Dois, temos uma série de bar-racas
menores, com uma infraestrutura
também menor. Em cada uma delas, um
tipo de público. Um tipo de uso. Formas
distintas de se vivenciar o lazer. Embora
não haja delimitações físicas separando
estes vários espaços no interior do Pavi-lhão,
verifica-se a presença de fronteiras
simbólicas demarcando o que podemos de-nominar
como os “vários mundos” ali na
Feira.
Atualmente, o Centro Luiz Gonzaga de
Tradições Nordestinas conta com aproxi-madamente
700 barracas fixas. O núme-ro
de visitantes recebidos mensalmente,
no entanto, é impreciso. No site oficial do
mesmo constam tanto a informação de
que passam pelo local cerca de 250.000 vi-sitantes
por mês quanto “mais de 500.000
pessoas todo mês”. Uma das dificuldades
encontradas no trabalho de campo refere-
-se à obtenção de documentos oficiais (algo
praticamente impossível) e ao contato com
a administração do espaço.
Neste momento inicial da pesquisa, al-gumas
questões, a princípio, me chamam
a atenção. Se, por um lado, a transferên-cia
para dentro do Pavilhão trouxe maior
conforto para os barraqueiros, que agora
possuem uma estrutura fixa para arma-zenar
seus produtos e recursos como água
encanada e luz elétrica, por exemplo, trou-xe
também a responsabilidade de arcar
com custos fixos muitas vezes inviáveis
para os pequenos estabelecimentos, que
não conseguem competir com a estrutura
Área próxima ao palco em noite de show do cantor
Leonardo. (Foto: Aline Nery. 23 de julho de 2010).
Área distante do palco, na mesma noite. (Foto:
Aline Nery. 23 de julho de 2010).
Etnografando na cidade: práticas, narrativas e construções simbólicas...
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PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 9(3). Special Issue. 2011 ISSN 1695-7121
dos maiores, cujos donos em alguns casos
são empresários que compraram pontos
dentro do espaço, no período da transfe-rência.
Esse processo vem fazendo com
que muitos feirantes tenham que passar
seus pontos para quitar suas dívidas. As-sim,
é bastante comum encontrarmos bar-racas
fechadas ou até mesmo vazias, como
mostra a foto abaixo. Também comum
é o fato de você visitar uma barraca em
um mês e, no mês seguinte, já ter outra
em seu lugar. Novos donos, vendo no lo-cal
uma oportunidade de negócio, chegam
constantemente. Para atender a esta de-manda,
há até um arquiteto que trabalha
como freelancer na Feira.
Estabelecimentos diversos dividem es-paço
neste que vem a ser um cenário cul-tural
sincrético - onde podemos encontrar
barracas de produtos nordestinos ao redor
de loja de artigos de rock ou uma boate,
por exemplo.
Os grandes shows que vêm sendo real
zados parecem acentuar as desigualdades
decorrentes do espaço. A entrada, que em
dias comuns custa R$ 2,00, nestes dias
pode chegar a custar até R$ 20,00 (ou
mais, dependendo da atração). Os ingres-sos,
desta forma, acabam funcionando
como um filtro social, determinando quem
entra e quem não entra nestes dias. Se a
criação do CLGTN estabeleceu, ou refor-çou,
a divisão espacial em áreas centrais
e áreas periféricas, os shows parecem re-
A estátua em bronze de Luiz Gonzaga em uma das
entradas principais do Centro Luiz Gonzaga de
Tradições Nordestinas. Na foto, turista americano
posa para a foto com a esposa (brasileira). (Foto:
Aline Nery. Julho de 2010).
Estátua de Padre Cícero, localizada em uma das
entradas principais da Feira.
(Foto: Aline Nery. Julho de 2010).
Em uma das bilheterias, fila para a compra do
ingresso, em uma tarde de domingo. (Foto: Aline
Nery. Julho de 2010).
Painel localizado em uma das entradas, onde se
encontram pintadas as figuras dos mediadores da
transição da Feira para dentro do Pavilhão de São
Cristóvão: o presidente da Feira de São Cristóvão
na época, Agamenon de Almeida (abraçado a
Lampião), e o prefeito César Maia (à esquerda).
(Foto: Aline Nery. Julho/ 2010)
Aline Rocha Nery
PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 9(3). Special Issue. 2011 ISSN 1695-7121
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forçar as desigualdades decorrentes desta
estrutura. Nos dias em que acontecem,
enquanto as áreas onde se localizam os
estabelecimentos próximos ao palco abri-gam
um fluxo grande de pessoas, que ali
se aglomera para assistir à atração, as
demais ficam vazias, dando à Feira uma
aparência desértica. Muitos feirantes re-clamam
que, nestes dias, “a Feira pratica-mente
acabou”.
Os restaurantes maiores geralmente
abrem de terça a domingo. Realizam re-servas
e disponibilizam seus espaços para
a realização de festas e demais eventos.
Já os menores, em sua maioria, costu-mam
abrir apenas aos finais de semana
(no horário já mencionado). O Restauran-te
Baião de Dois (supracitado), é o único
do qual tomei conhecimento até o momen-to
que faz propagandas em hotéis e pon-tos
turísticos da cidade. Talvez seja este
um dos motivos que leve a muitos turistas
irem “direto para ele”, como atestam al-guns
trabalhadores. Nos demais empre-endimentos,
a panfletagem nas ruas da
Feira feita por funcionários dos estabele-cimentos
é a estratégia mais utilizada.
Se o turismo ainda parece acontecer de
forma “solta” por ali, e a infra-estrutura
turística mostra-se precária, o caráter
turístico da “nova feira” vem sendo cons-truído
gradativamente. É importante res-saltar
que o caráter turístico de um local
não é de algo natural (visto que nenhum
lugar é, por si mesmo, naturalmente tu-rístico),
mas sim uma construção cultural
que envolve a criação de todo um sistema
de significados através dos quais a reali-dade
é estabelecida, mantida e negocia-da.
(Castro, 2002). Mais do que a simples
criação de infra-estrutura turística, trata-
-se de um processo que envolve a escolha
de alguns elementos para figurar no que
Grünewald denomina “arena turística”,
que define como um “espaço social onde
ocorrem interações geradas pela atividade
turística” (2003:154), assim como a cria-ção
de narrativas a povoar o imaginário
coletivo, antecipando, de certo modo, a ex-periência
turística.
No caso da Feira, discursos como “o
Nordeste é aqui” ou “um pedaço do Nor-deste
no Rio de Janeiro” se articulam
povoando o imaginário dos turistas com
idéias de um lugar único e especial. Os
nove estados da região nordeste, agora,
são sintetizados em um espaço único,
“um Nordeste bem perto de você”. O Cen-tro
Luiz Gonzaga de Tradições Nordesti-nas
passa a ser divulgado como um ele-mento
com o qual todos os que se vêem
como nordestinos, ou se afinizam com
eles, podem se identificar, a partir de
uma “unidade totalizadora englobante”
(Siqueira, 2008). Ele é, portanto, um sím-bolo,
cujo significado é o de representar
TODO o povo nordestino, independente
das diferenças entre eles. Se a trajetória
da Feira de São Cristóvão é marcada por
vários interesses políticos, o Pavilhão ago-ra,
como símbolo desta nova feira, passa a
figurar como pano de fundo das propagan-das
eleitorais, muitas delas realizadas ali
mesmo no local. Nos folhetos dos candida-tos,
a foto do Pavilhão recebe destaque, e
pretende informar, simbolicamente, que
aquele político é alguém que cuidará de
toda a “família” nordestina no Rio de Ja-neiro.
Verifica-se a tentativa de se fixar ca-racteres
e imagens constituintes do que
seria uma identidade nordestina. Tal fato
pode ser percebido logo em uma das en-tradas
principais da feira, na qual o visi-tante
é recebido pela estátua em bronze
do músico Luiz Gonzaga, o “rei do baião”,
anunciando, simbolicamente, com sua
sanfona, um pouco do que pode ser en-contrado
dentro do Pavilhão. A figura de
Lampião, tendo o Pavilhão como pano de
fundo, também pode ser encontrada no
banner afixado nas divisórias da entra-da,
próximo à roleta. Nele, a Associação
dos Feirantes junto à Prefeitura do Rio de
Janeiro dá as boas vindas a todos os vi-sitantes,
conclamando-os a conhecerem o
“nosso” Nordeste. Recentemente, foi inau-gurada
na entrada oposta uma nova está-tua:
a de Padre Cícero!
É interessante observarmos como
a Feira, ao ser transformada no Centro
Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas,
encontrou na mídia um poderoso agente
social central e privilegiado para a cons-
Etnografando na cidade: práticas, narrativas e construções simbólicas...
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trução, produção e circulação de sentidos
acerca desta identidade nordestina no Rio
de Janeiro, identidade esta reforçada na
medida em que ela passa a ser divulgada
como um atrativo turístico da cidade. Em
seu site oficial, a mesma é divulgada como
uma “homenagem” aos nordestinos. O guia
online “Guia Rio de Janeiro” e a “Rio Tur”
(órgão executivo da Secretaria Especial
de Turismo) apresentam-na como “um pe-daço
do Nordeste no Rio”. Já no guia de
viagens “O seu guia”, encontra-se na lis-ta
das 50 coisas que traduzem o que é ser
carioca. O caráter turístico da nova Feira
vai sendo, aos poucos, construído no ima-ginário
dos cariocas e daqueles que alme-jam
visitar a “cidade maravilhosa”.
Muito embora o olhar do turista seja
mediado pelas coisas que ele vê, lê ou ouve
sobre determinada atração, é importante
nos atentarmos ao fato de que não se trata,
sobremaneira, de um processo mecânico.
Afinal, a partir de diferentes narrativas,
cada um de nós constrói a sua própria,
“selecionando, manipulando e brincando
com as imagens” que nos são oferecidas.
E esta narrativa, na sua singularidade,
pode ser considerada “verdadeira e autên-tica”
(Castro, 2002:85). Estudar o turismo
na Feira de São Cristóvão implica, pois,
refletirmos também acerca dos vínculos
que tanto a Feira, quanto o próprio turis-mo,
mantêm com as demais dimensões da
dinâmica urbana. Afinal, ambos, assim
como a própria cidade, não só admitem e
abrigam grupos heterogêneos, como tam-bém
estão fundados nessa heterogeneida-de
(Magnani, 1996).
O Centro Luiz Gonzaga de Tradições
Nordestinas, enquanto uma organização
da vida social, apresenta-se constituído
não apenas por aparatos físicos e recur-sos
humanos, mas sim por toda uma rede
simbólica que o permeia (Laplantine e
Trindade, 2007). Sob esta ótica, as está-tuas
com ícones nordestinos localizadas
nas entradas, o guichê da venda de in-gressos,
as fotos dos possíveis fundadores
da Feira pintadas nos muros, as grades
que separam a área da feira, da rua, e, a
música em volume audível do lado de fora,
fazem parte de toda uma rede simbólica
Aline Rocha Nery
que prepara os visitantes para a saída
da vida cotidiana e entrada em um outro
universo de significações. Não um lugar
comum, mas o lugar da festa, da alegria,
da performance muitas vezes, onde emo-ções
raramente expressas no dia a dia são
capazes de ser vivenciadas.
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NOTAS
1 Iguaria típica nordestina.
2 Localizada no bairro de São Cristóvão e reduto da cul-tura
nordestina na cidade do Rio de Janeiro, a tradicional
Feira de São Cristóvão, também conhecida como “Feira
dos Paraíbas”, teve origem com a chegada de retirantes
nordestinos na cidade, por volta do ano de 1945. Embora
existam várias versões para o surgimento da Feira, o fato
é que ela surge como um território simbólico de perten-cimento
– uma tentativa de se reproduzir um pedaço do
Nordeste – ou uma junção de vários nordestes – no Rio de
Janeiro. Criam-se cheiros, sons e cores que visam remeter
a um Nordeste sonhado, amenizando a saudade e auxilian-do
o migrante em sua nova vida na “cidade grande”. Loca-lizada
no Campo de São Cristóvão, a Feira permaneceu ao
ar livre por cerca de 58 anos, até a inauguração, no ano de
2003, do Centro Luiz Gonzaga de Tradições Nordestinas.
3 O Pavilhão de São Cristóvão é um projeto arquitetônico
modernista do arquiteto Sérgio Bernardes, famoso devido
à sua cobertura sustentada por cabos de aços que cobriam
grandes vãos livres, compondo uma superfície parabólica.
Criado para abrigar a Exposição Internacional da Indús-tria
e do Comércio, deveria ser uma construção temporá-ria,
mas acabou permanecendo no local, sendo utilizado
posteriormente para a realização de alguns eventos, como
a Comemoração do IV Centenário da Cidade, mostras co-merciais
e culturais (Cardoso, 2006). Na década de 1970,
sua famosa cobertura é danificada por uma ventania e,
com isso, removida. O Pavilhão vive, durante anos, uma
situação de abandono, até ser utilizado na década de 1990
como sede dos barracões das Escolas de Samba do Rio de
Janeiro. No entanto, após a transferência das mesmas para
o Cais do Porto, o Pavilhão é desativado e passa por um
processo intenso de constante degradação, vindo a abri-gar,
no ano de 2003, o Centro Luiz Gonzaga de Tradições
Nordestinas.
4 No ano de 1993, a Lei Municipal nº 2052, de 26 de no-vembro,
já havia instituído no Campo de São Cristóvão o
Espaço Turístico e Cultural Rio/Nordeste, ponto de inte-resse
turístico. (Fonte: www.jusbrasil.com.br).
Recibido:
Reenviado:
Aceptado:
Sometido a evaluación por pares anónimos
30/09/2010
22/10/2010
09/12/2010