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Vol. 6 Nº 3 págs. 467-479. 2008 www.pasosonline.org © PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural. ISSN 1695-7121 Turismo, cultura e desenvolvimento entre sustentabilidades e (in)sustentabilidades Luzia Neide Coriolano Claudia Leitão ii Universidade Estadual do Ceará (Brasil) Resumo: O turismo é um dos fatores de aceleração do desenvolvimento contemporâneo, e de intensifi-cação das relações sociais, típicas do modo de produção capitalista. Trata-se de atividade que necessita do uso e da apropriação de ambientes naturais e culturais, produzidos pelo trabalho, para transformá-lo em espaço de lazer e consumo. Faz parte da dinâmica atual da mundialização do capital, que cria territo-rialidades, como forma de responder às crises da acumulação global, envolvendo, além do mercado, o Estado e a Sociedade Civil. É ainda um serviço de suporte à recuperação do trabalho humano, ao pro-gressivo crescimento das relações do trabalho industrial, comercial e financeiro dos diversos mercados internacionais, além de, enquanto produto de exportação, constituir-se em uma das principais mercado-rias do comércio exterior. É um setor afeito a mitologias, ora é considerado panacéia capaz de resolver os problemas socioeconômicos dos países periféricos, ora é interpretado como indústria selvagem, capaz de destituir comunidades de suas marcas identitárias e de sentimentos de pertença. Há, pois, na atividade turística, elementos contraditórios. Este artigo reflete sobre os significados, contradições e desafios rela-tivos à sustentabilidade do turismo, em face dos significados do desenvolvimento adotados pelas políti-cas governamentais e sua desconexão com as políticas de cultura que podem contribuir, em valores e diretrizes, para a construção do turismo solidário, voltado para o fomento da diversidade cultural e quali-dade de vida das populações. Palavras chave: Turismo; Cultura; Territorialidades; Local; Comunidades; Sustentabilidades. Abstract: The tourism is one of the factors of the contemporary development and of the intensification of the social relationship, typical of the capitalist production model. It is an activity that requires the use and the appropriation of natural and cultural environments, produced by work, to turn it into spaces of leisure and consumption. It is part of the current dynamic of the capital, which creates territorialities, like an answer to the crises of global accumulation, involving the market, the State and the Civilian Society. It is also a service that supports the recovering of the human work, to the progressive growth of the in-dustrial, commercial and financial work relationships of the several international markets, besides, as an export product, to be constituted in one of the main merchandise of the foreign trade. It is a sector accus-tomed to mythologies, sometimes is considered the solution capable to solve the socioeconomic prob-lems of the outlying countries and sometimes is seen as a savage industry, capable to destroy the identity of communities. This article reflects about the meanings, contradictions and challenges related to tourism sustainability, facing of the meanings of the development adopted by the government policies and its disconnection with the culture policies that may contribute, in value and guidelines, to the construction of the solidary tourism, turned to the foment of the cultural diversity and the living quality of the local populations. Keywords: Tourism; Culture; Territorialities; Local; Communities; Sustainabilities. ii • Profa. Dra. Luzia Neide Coriolano; Profa. Dra. Claudia Leitão. Mestrado Acadêmico em Geografia e do Mestra-do Profissional em Gestão de Negócios Turísticos, da Universidade Estadual do Ceará. Email: luzianei-de@ hotmail.com 468 Turismo, cultura e desenvolvimento... PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 6(3). 2008 ISSN 1695-7121 Introdução O turismo é um campo de estudo afeito a tensões e antinomias. De um lado, é consi-derado um dos fatores de aceleração do desenvolvimento moderno e, de outro, da intensificação das redes de relações sociais no planeta ((características do novo século). As imagens do turismo conso-lidadas ao longo do século XX, produzirão signos e símbolos impregnados de significa-dos simultaneamente criativos e destruti-vos. Ao mesmo tempo em que a atividade turística simboliza o uso e a apropriação (muitas vezes inadequada) de ambientes naturais e culturais, transfigurando-os em espaços de lazer e consumo, concentração de riqueza, especulação, segregação de es-paços, degradação de ambientes, destruição de expressões culturais, exploração de tra-balhadores, também simboliza o empreen-dedorismo, a conquista, a descoberta, o sonho. A contradição é especialmente valiosa quando refletimos sobre a (in)sustentabilidade do fenômeno turístico nas sociedades contemporâneas. Tal reflex-ão torna-se gradativamente mais oportuna no contexto em que a atividade turística vem ampliando significados e éticas, ou seja, vem se libertando da imagem mera-mente econômica, passando a adquirir no-vas dimensões e transversalidades. Embora ainda de forma tímida e incipiente, é possí-vel observar-se recente tendência de diálo-go entre as políticas públicas para o turis-mo, especialmente com os campos ambien-tal e cultural. Tais observações propõem indagações para a nossa reflexão neste ar-tigo: é possível definir indicadores de sus-tentabilidade para o fenômeno turístico? A atividade turística pode simbolizar nova compreensão de indústria, capaz de cons-truir relações mais “ecológicas” entre os empreendimentos turísticos e o patrimônio cultural e natural em que estão inseridos? A reflexão sobre a atividade turística pode fazer rever os modelos mentais modernos e nos ampliar nosso repertório de imagens e símbolos, capazes de fazer perceber, de forma transversal, o fenômeno do turismo como criação de socialidades, atividade econômica, assim como repertório de ima-gens das sociedades? Responder a essas indagações implica a compreensão de novas dimensões da ativi-dade turística no século XXI. Os estudos acerca do “pensamento complexo” de Ed-gard Morin, (2003) assim como sobre as “estruturas antropológicas do imaginário” de Gilbert Durand, poderão servir de refe-rencial epistemológico para penetração no campo do turismo mediante as perguntas anteriormente elaboradas. Ao refletir sobre o percurso das ciências até o século XX, Morin constata uma primeira grande dis-tinção entre a cultura geral e a cultura técnica e científica. Enquanto a primeira é ampla e abraça tanto informações quanto idéias, a segunda compartimenta o con-hecimento, tornando difícil sua contextuali-zação. Utilizando-se de metodologia redu-cionista para conhecer (simbolizada pelo método lógico dedutivo que parte do todo para o conhecimento das partes que o compõem e da obsessão determinista pelas leis gerais em que se oculta o acaso, o novo, as exceções) o conhecimento científico mo-derno empobreceu o mundo, retirou o objeto pesquisado do seu contexto, rejeitando co-nexões entre ele e seu ambiente. As Ciências Sociais percorreram o mes-mo caminho, pois reduziram sua atuação ao calculável e formulável, abstraindo os obje-tos de pesquisa dos contextos sociais, histó-ricos, políticos, culturais e ecológicos nos quais foram gerados. Por isso, a Economia, entre as Ciências Sociais, por ser matema-ticamente a mais avançada, é, na perspec-tiva humana, a mais atrasada das Ciências. De forma analógica, também estamos atra-sados, relativamente aos estudos da disci-plina do turismo, fatalmente “atropelados” pelos movimentos desarmônicos do planeta, frustrados com o caráter aleatório do mun-do (Morin: 2003, 69-70). Por outro lado, a Sociologia do Imaginá-rio de Durand convida a criar conexões entre as sociedades do espetáculo, socieda-des da proliferação das imagens, do cresci-mento das indústrias criativas e o fenôme-no da transfiguração do turismo, ao longo das últimas décadas. Pelas imagens do turismo, podemos observar tendências so-ciais, esboçar traços do “espírito do tempo”, neste início de século, do retorno aos mitos, às artes, ao espetáculo, aos afetos, ao no-madismo das sociedades. Ora, não é exata- Luzia Neide Coriolano y Claudia Leitão 469 PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 6(3). 2008 ISSN 1695-7121 mente com este repertório do homo sapiens que o turismo trabalha? Não carregaría-mos, como afirma Jung, imagens universais do nosso inconsciente coletivo, que definem nossas reações e empatias nos lugares visi-tados? Enfim, uma viagem turística não é menos o consumo de produtos e serviços mas uma espécie de “trajeto antropológico” em que revisitamos a nós mesmos pelas narrativas, símbolos e ícones construídos pelo “outro”? Se a modernidade tem como grande símbolo a razão, a análise, a decom-posição dos fenômenos para explicá-los, as sociedades contemporâneas, pelo contrário, vêm, pela imaginação, reinventar e reen-cantar o mundo, ou melhor, buscando abraçá-lo (origem etimológica do verbo compreender), tomá-lo por todos os lados, de forma a percebê-lo não somente pelas ciências mas por outros caminhos: pelos afetos, pelos sentidos, pela memória, pelos mitos, pelas imagens. Os estudos e pesquisas do fenômeno turístico seguiram a herança aristotélica da modernidade, ou seja, do pensamento bipo-lar não complexo, habituado à mera análise “causa x efeito” dos fatos sociais, sem bus-car- lhes maior conexão e aprofundamento com outros campos do conhecimento. Se os novos tempos assentam-se sobre a multipli-cidade e superposição de discursos que indi-cam a fusão e a (con)fusão entre antigas contradições( existência e intelecto, corpo e espírito, arte e vida, conquistas cientificas e renascimento de guerras etnocêntricas e religiosas), vale avaliar em que medida os estudos turísticos foram submetidos, ao lon-go do século XX, às mesmas mazelas sofri-das pelas Ciências Sociais. Mediante méto-dos, ora quantitativos, fruto de visões positi-vistas, ora empíricos, produto de visões fe-nomenológicas, parte significativa dos estu-dos turísticos também simbolizam a dico-tomia do pensamento moderno diante dos dilemas entre explicação x compreensão do mundo. É evidente que não subestimamos, nas sociedades mundializadas, as velhas con-tradições suscitadas pelas tradicionais re-lações capital-trabalho, tão presentes no século XX. Nesse contexto, o turismo, como área de conhecimento acadêmico e ativida-de econômica, se desenvolve, contribuindo para a proliferação de desequilíbrios sócio-espaciais de toda sorte. No plano das relaç-ões trabalhistas, observamos, na atividade turística, acentuada exploração do mercado de trabalho, pela elevada porcentagem de trabalhadores em meio período; grande porcentagem de trabalhadores temporários e ocasionais; intensa presença de mulheres com contratos de meio período, especial-mente em hotelaria e restaurantes; escasso número de mulheres em cargos de maior responsabilidade; presença de trabalhado-res estrangeiros ocupando cargos de maio-res responsabilidades, nos países em de-senvolvimento, em detrimento dos profis-sionais locais; pouca qualificação dos pres-tadores de serviços na hotelaria e em ali-mentos e bebidas; menores níveis de salá-rios em relação a outros setores; maior ex-ploração do trabalhador na jornada de tra-balho; poucos trabalhadores sindicalizados e com algumas atividades com curto ciclo de vida. No plano geográfico, observamos impactos relativos às transformações do território, assim como repercussões sócio-antropológicas para as comunidades e so-ciedades. Nos países periféricos, o turismo produz “ilhas de prosperidade” em conflito com espaços marginais, fazendo emergir contradições, as mais diversas, especial-mente de ordem social, cultural e econômi-ca. No Brasil, o turismo cresce e se consoli-da como atividade geradora de riqueza, tornando-se importante produto de expor-tação. No Nordeste brasileiro, no Ceará (estado emergente para o turismo nacio-nal), o turismo ocupa o quarto lugar entre os produtos de exportação1. No entanto, quanto mais se torna estratégia de desen-volvimento econômico, mais sua imagem é reduzida à dimensão mercadológica. O em-pobrecimento de significados para o setor pode ser percebido nos programas gover-namentais, nas práticas do chamado trade turístico, nos comportamentos dos em-presários da cadeia produtiva. As conseqüências do reducionismo são desastrosas para a atividade turística, nas perspectivas pública e privada. No espaço público, é o turismo como mero “negócio” reduzindo políticas públicas em meras aç-ões de marketing. No espaço privado, a cadeia produtiva do turismo é estruturada nas mesmas bases das economias dos seto-res primário e secundário. Dessa forma, os projetos públicos e privados para o setor 470 Turismo, cultura e desenvolvimento... PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 6(3). 2008 ISSN 1695-7121 turístico constroem-se pelos mesmos mode-los mentais e mesmas bases semânticas fundadas na imagem do “turis-mo/ mercadoria”, o que também ocorre nos discursos políticos, jurídicos e econômicos relativos às questões de sustentabilidade. Marcados pela vagueza e ambigüidade, os mesmos serão particularmente omissos, mostrando-se incapazes de normatizar e institucionalizar o campo turístico. O crescimento da economia do turismo impacta diversos setores da economia, es-pecialmente o imobiliário, simbolizado pela construção de mega empreendimentos hote-leiros e equipamentos de lazer que, por sua vez provocam danos ambientais, além do que contribuem, como já afirmamos, para concentrar riqueza, causando, conseqüen-temente, disfunções e esgarçamentos do tecido social. Reações a esse quadro, no entanto, começam a acontecer pelos movi-mentos sociais, os mais diversos, que cla-mam por garantias jurídicas que definam critérios de responsabilidade social para esses empreendimentos. As forças sociais se estruturam em reação ao próprio modo de produção capitalista, que vive, de crises periódicas, pois as mesmas condições que proporcionam o crescimento do produto e da riqueza, do trabalho e do lazer, desenca-deiam momentos de autodestruição, no movimento permanente de sustentabilida-des e insustentabilidades. A imagem do mercado passa a simbolizar, gradativamen-te, espaço de instabilidades, uma espécie de “tabuleiro de xadrez” cujos vencedores e perdedores são indefinidos, circunstanciais e imprevisíveis. As reações às ações, no campo turístico, originam estudos e pesquisas que elaboram novos discursos, por meio de novas imagens e de novas representações simbólicas a eles agregadas. As mais significativas, nas últimas décadas, se referem às conexões entre turismo e ambiente. Esse relaciona-mento se traduz no crescimento da legis-lação sobre o direito ambiental, assim como no surgimento de relatórios capazes de salvaguardar os impactos negativos do tu-rismo em face do meio, tão comuns nas práticas do “turismo de massas”, marcado pelo caráter predatório, relativo ao trato irresponsável, com a natureza e a cultura. O desequilíbrio planetário resultante da progressiva degradação e destruição dos recursos naturais, em razão da ação equí-voca do homem sobre o ambiente, traz re-percussões e modificações nas formas har-moniosas de construção do cotidiano de culturas tradicionais. A alteração das aspi-rações dos diferentes grupos sociais e co-munitários e seus modos peculiares de vi-ver foi drasticamente substituída pela im-posição de novos padrões comportamentais, ameaçando a diversidade cultural e a vida no planeta. Se os resorts simbolizam a acumulação e concentração de capital no setor turístico, as pousadas ou os pequenos hotéis podem simbolizar novas imagens de um turismo menos concentrador e mais solidário, me-nos pasteurizado e mais atento à diversida-de cultural. O turismo não somente mapeia territórios mas cria territorialidades, pois define destinos, propõe roteiros, dando visi-bilidade a espaços até então “invisíveis”. Além de construir espaços simbólicos, a atividade turística tece rede extensa de pequenos negócios que, por sua vez, cria socialidades as mais diversas. Neste sentido, o turismo suporta e res-significa o trabalho, propondo-lhe lógicas menos especulativas e invasivas e mais abertas à diversidade e ao compartil-hamento afetivo. Pela própria natureza, a atividade turística, pode, ao mesmo tempo, concentrar lucro, riqueza e renda, mas também criar oportunidades de ganhos aos trabalhadores e às comunidades mais po-bres, visto que a tese incorpora a antítese; o contraponto, o ponto e a contraposição, a posição. A própria transfiguração da ativi-dade turística dá indícios de que o turismo, como mera atividade capitalista voltada unicamente para o lucro financeiro, perde força, fruto dos impasses entre os limites do capital e a própria sobrevivência do homem no ambiente natural e cultural. Não obstante o surgimento de novas mentalidades voltadas para o campo turís-tico, constatamos que, em pleno século XXI, as reflexões acerca da (in)sustentabilidade do turismo ainda estão impregnadas das imagens emprestadas pela ciência econômi-ca e que, se os discursos ambientais passam a estabelecer-lhe novos limites, o mesmo não ocorre, na mesma proporção, no campo cultural. As políticas públicas entre turis-mo e cultura, na América Latina, especial-mente no Brasil, pouco dialogaram até Luzia Neide Coriolano y Claudia Leitão 471 PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 6(3). 2008 ISSN 1695-7121 aqui, não compreendendo que o patrimônio natural é também patrimônio cultural. O isolamento pode ser percebido pela pequena contribuição da cultura nos indicadores de (in)sustentabilidade para o setor turístico e do grande distanciamento entre os projetos de intervenção sobre a paisagem, em geral, realizados por ministérios e secretarias de infra-estrutura, apoiados por conselhos do ambiente, sem a participação dos conselhos de cultura. O discurso ambiental que vem se integrando ás discussões sobre sustenta-bilidade do turismo necessita, por conse-guinte, da contribuição do discurso cultural, ou seja, o próprio direito ambiental deve estabelecer relação dialógica com os “direi-tos culturais”, o que certamente contribuirá para indicadores de sustentabilidade mais transversais para o turismo. A tendência de aproximação e do diálogo entre os campos da cultura e do turismo é, pois, fruto das sociedades ditas pós-modernas ou pós-industriais, as quais pro-duzem novas representações sociais menos marcadas pelas imagens mercadológicas e mais voltadas aos valores culturais, às identidades, aos sentimentos de pertença, ao poder dos mitos e à carga de simbolismo dos indivíduos e das comunidades conside-radas destinos turísticos. A nova mentali-dade compreende a atividade turística como rica e diversa cadeia simbólica capaz de reinventar territórios, criar novas sociabili-dades e estabelecer novas solidariedades. Por uma ampliação dos significados do tu-rismo A atividade do turismo vem sendo histo-ricamente associada aos modos de produção do trabalho industrial, comercial e finan-ceiro, nos diversos mercados internacionais. Dentro dos paradigmas modernos em que foi significado, o turismo transfigurou-se e fragmentou-se. De lazer para as elites até tornar-se atividade massificada, transfor-mada em mercadoria barata, invenção da sociedade de consumo, o turismo transfigu-rou- se, revelando, pelos significados e dile-mas, a complexidade das sociedades con-temporâneas. Como produto moderno, o turismo sofreu da mesma “anemia semântica” do chamado “individualismo possessivo*. Finda a forta-leza do “eu”, nas últimas décadas do século XX, surgem incertezas de ordens diversas. Ora, enquanto conhecimento que almeja o status de ciência, o turismo também exem-plifica os discursos monoteístas promovidos pelo racionalismo moderno. Suas bases e fundamentos alimentam-se, desde origens, do campo moral do “dever-ser”, ou seja, são discursos que objetivavam construir uma sociedade com “s” maiúsculo, assegurando-lhe padrões normativos, regras de conduta, códigos fixos de ser e estar no mundo. Gran-de parte desses discursos foi se desmorali-zando (referimo-nos ao sentido etimológico da expressão, ou seja, os discursos foram abandonando o campo da moral, por não serem capazes de prever, categorizar, nor-matizar ou sancionar a imensa diversidade dos comportamentos sociais). A desmorali-zação dos discursos sociais, políticos e jurídi-cos é perceptível por todos nós a olho nu, tornando-se espetáculos histriônicos a que assistimos diariamente pela televisão, lemos pelos jornais ou acessamos pela internet. O desencanto diante das grandes narrativas “explicadoras” do mundo é um sintoma sobre o qual devemos refletir. Nossa herança ilu-minista encontra-se em grande encruzil-hada; necessitamos construir nossos mode-los mentais, rever dogmas e convicções e, por que não fazê-lo pela análise do fenômeno turístico nas sociedades contemporâneas? O mundo parece encontrar-se cada vez mais em todos, embora todos não se encon-trem no mundo. Expressões como “capital social”, “desenvolvimento sustentável”, “de-senvolvimento com cooperação”, “inclusão social”, “cidadania” estão presentes nos dis-cursos públicos e privados e, de tanto ouvi-los e de tanto utilizá-los, temos a sensação de que, ao invés de nos sentirmos estimula-dos ao debate, à imaginação e à criatividade, temos mentes cada vez mais paralisadas. O resultado e o perigo dos discursos “globali-zantes” é que, quanto mais progride a crise, menos capacidade temos de pensá-la, quanto mais nos submetemos à “economia global” , menos nos indagamos: afinal de contas, de que globalização falamos? No século em que o conhecimento, o ócio e o lazer tomam sig-nificados cada vez mais importantes, no cotidiano das sociedades, o turismo pode, graças à riqueza da carga simbólica, tornar-se campo especialmente fecundo para a compreensão das transfigurações do homo-faber ao homo-ludens. 472 Turismo, cultura e desenvolvimento... PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 6(3). 2008 ISSN 1695-7121 Os significados do turismo ainda são es-sencialmente modernos, pois são originá-rios do século XVII, com as principais teo-rias oriundas do período posterior à Segun-da Guerra Mundial, submetendo-se às re-presentações sociais suscitadas pelo ima-ginário moderno. Dessa forma, os discursos político, econômico e acadêmico chamam de “indústria” a atividade turística, com o ob-jetivo de dar-lhe status de vigor e im-portância social. No discurso legitimador de “indústria”, o turismo abandona-se, ou mesmo, desqualifica-se suas imagens e símbolos de natureza antropológica ou cul-tural. Assim, enfatiza-se a imagem do tu-rista como hóspede, consumidor ou cliente e o turismo como mera fonte de renda e divi-sas, subestimando-se a imagem do turista como protagonista cultural, alguém que estabelece trocas simbólicas com outros indivíduos. Com o desenvolvimento das ciências e das tecnologias, cresce o tempo livre, fruto contraditório da ampliação do trabalho especializado, assim como do desapareci-mento de determinadas profissões. As transformações do trabalho produzem ao mesmo tempo, grande contingente de mul-tiespecialistas e um “exército” de desem-pregados, provocam maiores deslocamentos territoriais dos indivíduos, além do aumen-to do tempo dedicado às férias, movimen-tos migratórios, a banalização das viagens, a democratização do acesso aos meios de transporte, enfim, um cenário cada vez mais favorável à atividade turística. Se as inovações de Thomas Cook, em 1841, inse-riram o turismo no mundo dos negócios, atividade beneficiada, cada vez mais, pela evolução dos transportes e do comércio de bens e serviços, esse movimento, levado ao paroxismo, mostra a atividade turística vítima das próprias contradições. Os pro-cessos massificadores da atividade turística produzem “não-lugares”, desterritorializam indivíduos e comunidades, com efeitos per-versos à vida comunitária e social, gradati-vamente mais órfã de imaginários e desti-tuídas de sentimentos de pertença. Vale, portanto, repensar os modelos de desenvolvimento definidos ou praticados em países latino-americanos com grandes desigualdades como o Brasil. A desigualda-de suscita desconfiança, assim como é pro-dutora da lógica de distanciamento entre grupos e estratos sociais. Desse modo, como habitantes de países em desenvolvimento, podemos perguntar: como reaver o capital social de comunidades excluídas, de ex-colônias submetidas à domesticação de suas culturas, despossuídas de auto-estima e de capacidade de mobilização? As perguntas referem-se não somente a continentes desi-guais como a América Latina ou a África, mas dizem respeito a comunidades periféri-cas em todo o planeta. As políticas públicas, na América Lati-na, especialmente no Brasil, ainda não construíram os necessários canais de inter-secção entre os campos da cultura e do tu-rismo, resumindo-se a compreender o tu-rismo cultural como patrimônio cultural material (prédios e conjuntos tombados) e imaterial (festas e manifestações da cultura tradicional popular). No entanto, os consu-midores da atividade turística começam a desenvolver novas éticas, demonstrando, graças às suas práticas, que os modelos mentais que produzem políticas e progra-mas turísticos necessitam urgentemente de reestruturação. Os próprios turistas pas-sam a exigir, de forma gradativa, um maior espectro, no que se refere à fruição das ati-vidades. Ao mesmo tempo, vale enfatizar que, nas cidades, o lazer urbano vem sendo redimensionado. Assim, as classes de menor poder aquisi-tivo v êm descobrindo o turismo social,2 permitindo que as populações das regiões não direcionadas ao turismo global descu-bram novas formas de inclusão na cadeia produtiva do turismo e nos roteiros de visi-tação. Mais uma vez, constatamos que a dinâmica turística revela a complexidade social, a tensão complementar entre centro e periferia, entre incluídos e excluídos. Afi-nal de contas, nesses tempos nômades, re-pletos de contradições e de redundâncias, o que nos faz realizar atividade turística? Como deslocar-se em um mundo, no qual, quanto mais nos movimentamos, mais pa-recemos estar no mesmo lugar? E, por último, estas indagações: os discursos modernos acerca de sustentabilidade po-dem aplicar-se à atividade turística? As limitações de natureza ambiental/natural e cultural ameaçam o caráter econômico da atividade turística ou, pelo contrário, po-dem representar seu renascimento e res-significação?. Luzia Neide Coriolano y Claudia Leitão 473 PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 6(3). 2008 ISSN 1695-7121 Meio ambiente e desenvolvimento O meio ambiente é significado e estrutu-rado por diferentes discursos, produzidos pelas ciências, pelo senso comum, ou ainda pela normatização realizada pelos poderes legislativos. Alguns discursos, de escopo limitado, abrangem apenas as imagens, os símbolos ou as representações naturais, outros, mais abrangentes, referem-se ao meio ambiente como espaço social, econô-mico, cultural e político, ou seja, como espa-ço de interação entre os homens e a nature-za e do homem com seus pares. O ambiente é o próprio espaço do turismo, seja nature-za, campo ou cidade. Milton Santos (1997) o entendia como o conjunto de complexos territoriais que constituem a base física do trabalho humano. O meio ambiente é, pois, o conjunto, em um dado momento, dos agentes físicos, químicos, biológicos, culturais e dos fatores socioeconômicos susceptíveis de efeito dire-to ou indireto, imediato ou a termo, sobre os seres vivos e as atividades humanas (Pou-trel e Wasserman,1977). A natureza, as praias, as cidades, os lugares visitados pe-los turistas constituem o meio ambiente. Constituem ainda espaço complexo, pois contêm o ar, o solo, a água, as plantas, os animais e o homem, com todas as condições econômicas e sociais que influenciam a vida em geral. Desse ambiente, depende a vida, em especial, a vida humana. Nele estão todas as construções, máquinas, estruturas e objetos feitos pelo homem ou objetos ge-ográficos, assim como sólidos, líquidos, ga-ses, odores, cores, calor, sons, vibrações, radiações e ações resultantes das ativida-des culturais e naturais. Portanto, é cons-tantemente impactado, exigindo cuidados, ponderações e novas abordagens acerca de significados e conexões. Trata-se, enfim, de espaço geográfico simultaneamente natural, social, econômi-co, político e cultural, que contém todos os seres vivos em interação, um espaço político e não neutro, pois se encontra eivado de ideologias, conceitos e preconceitos. Nele se desenvolvem as atividades humanas, ani-mais e vegetais, possibilitando condições para a dinâmica imbricada e complementar entre o natural e o social. Constituem, en-fim, espaços submetidos a sucessivas trans-formações, com formas de apropriação e usos variados. Não é o espaço absoluto da natureza infinita e passiva, mas o espaço relativo produzido e reprodutor de relações sociais, que também estão submetidas aos modos capitalistas de produção e de con-sumo. O meio ambiente constitui, por último, território, alvo de políticas transdisciplina-res e não somente ambientais. As questões ambientais ampliam-se para sociais, cultu-rais e territoriais, incluindo as interações entre o homem, a comunidade e a natureza. Moraes (2002, p. 30) entende o ambiental para além de vetor reestruturador da lógica cientifica (a razão ambientalista como propõem alguns), ou seja, como mais um fator a ser considerado na modelagem do espaço terrestre. Entretanto a preocupação ambiental se dessacraliza, circunscrevendo um campo teórico mais restrito que o alme-jado pelas proposições holísticas. A redução ambientalista e a presunção holística aca-bam por gerar empobrecimento significati-vo, na análise dos processos políticos e econômicos do ambiente. O modo de produzir e de consumir tem a natureza como recurso, portanto reduziu-a também à imagem de “mercadoria”, degra-dando- a até a exaustão, fazendo emergir, na pauta das discussões mundiais, as questões relativas à (in)sustentabilidade. Para o imaginário moderno, a natureza existe pra ser dominada pelo homem, para servir às suas finalidades, mesmo que aca-be por comprometer a própria sobrevivên-cia. Desde os meados do século XX, verifica-se o fortalecimento da consciência ambien-tal (incluindo o social e o político) de grupos que se solidarizam com pessoas de todo o mundo, exigindo mudanças comportamen-tais, produção ecologicamente correta, res-ponsabilidade social das empresas e mode-los alternativos de turismo. Buscamos avaliar os empreendimentos por fatores, com a consciência de que o pla-neta é a casa de todos, a “consciência pla-netária” tão discutida por Leonardo Boff (1999), que diz respeito às habilidades, responsabilidades, atitudes e visão de mundo e do cosmo, responsabilidade diante do planeta e senso de cidadania. Capra (2003) acredita que a chave para tal defi-nição operacional é a tomada de consciência de que não precisamos inventar comunida-des humanas sustentáveis a partir do zero, 474 Turismo, cultura e desenvolvimento... PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 6(3). 2008 ISSN 1695-7121 mas que podemos modelá-las, seguindo os ecossistemas da natureza que são comuni-dades sustentáveis de plantas, animais e micro-organismos. Uma vez que a carac-terística principal da biosfera consiste na habilidade para sustentar a vida, uma co-munidade humana sustentável deve ser planejada de maneira que as formas de vida, negócios, economia, estruturas físicas e tecnológicas não venham a interferir na habilidade inerente à Natureza ou à sus-tentação da vida. Mesmo que a natureza não ofereça modelos para todos os compor-tamentos sociais, como acreditam cientistas de visão crítica, todos são unânimes em admitir que a transição para um futuro sustentável ou uma sociedade sustentável se configura como postura política pautada em visão de mundo e de valores éticos. As conceituações de meio-ambiente in-cluem e se aproximam cada vez mais dos significados da cultura, pois nele estão con-tidos ritos, mitos, as manifestações do cotidiano, a natureza, as cidades, o habitat, os saberes e fazeres, enfim, tudo que o homem cria ou dá significado, tudo o que constitui sua memória, o que lhe é imposto e também o que ele espera. Desse modo, meio-ambiente e cultura estão de tal forma imbricados, que a atividade turística não poderá produzir indicadores de sustentabi-lidade sem a compreensão de que, ao criar espaços de diálogo com a natureza, neces-sariamente os criará com a cultura, pois o turismo necessita do espaço geográfico, do ambiente entendido dessa forma mais am-pla. Turistas buscam paisagens, cultura, patrimônio histórico, tudo que faz parte dos ambientes, dos lugares e territórios e de que essa atividade se apropria. É um tipo de consumo do espaço (natureza), portanto fazer turismo significa viver a própria na-tureza. Mesmo protegendo-a, é sempre uma atividade de risco que implica (in) susten-tabilidade ou permanente controle das polí-ticas territoriais ou ambientais. Cultura e desenvolvimento A conferência Geral da UNESCO, logo após o dramático atentado de 11 de setem-bro de 2001 formata a “Declaração Univer-sal sobre a Diversidade Cultural”. O docu-mento ratifica o esforço dos países, na cons-trução de um dialogo intercultural, capaz de contribuir para a cultura de paz entre os povos, considerando a diversidade cultural, patrimônio comum da humanidade. Identi-dade, diversidade, criatividade, solidarie-dade são as palavras chaves dos novos tempos, presentes nos discursos internacio-nais, nacionais e locais, em contextos políti-cos, educativos, econômicos, jurídicos ou sociais. Ao mesmo tempo, agências de desenvol-vimento, como o Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID passam a priorizar o financiamento de projetos, pela capacida-de de mobilização do capital social e da dinâmica cultural, específicos das populaç-ões, às quais os projetos se aplicam. Ao se levar em conta a diversidade cultural, abo-le- se a concepção hierárquica do desenvol-vimento, dando-se voz a populações que até então não constituíam parte integrante deste “capital social”. Vale aqui conceituar capital social a partir da visão de Pierre Bourdieu, ou seja, “um atributo individual e coletivo de distinção e, com isso, de domí-nio dos membros das categorias privilegia-das”. O capital social, segundo o sociólogo francês, se apóia no capital econômico (na segurança material), no capital cultural (no manejo do idioma) e no capital social (na constituição de relações). Esses capitais convertem-se, por sua vez, em capital simbólico, instrumento maior da garantia de sobrevivência dos discursos dominantes. Em 1999, em Paris, o Fórum “Desenvol-vimento e Cultura”, organizado pelo BID, traz novos significados a essas expressões. A cultura passa a ser percebida como ma-triz dinâmica das formas de ser, estar, rela-cionar- se e perceber o mundo. Deste modo, desenvolvimento significa pouco, se o redu-zirmos seus significados a meras represen-tações de benefícios infra-estruturais ofere-cidos às comunidades (saneamento, estra-das, urbanizações etc.), mas de forma cres-cente ele está associado às reações e inter-venções das pessoas atingidas por estes benefícios. Desenvolvimento, portanto, não significa unicamente geração de riqueza ou aumento do Produto Interno Bruto (PIB) dos países, embora o crescimento e a distri-buição menos desigual da riqueza material sejam decisivos para a qualidade de vida dos indivíduos. Como se vê, desenvolvimen-to não se confunde com “desenvolvimentis-mo”, tônica da América Latina dos anos 50 Luzia Neide Coriolano y Claudia Leitão 475 PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 6(3). 2008 ISSN 1695-7121 e 60, presente no projeto militar brasileiro resultante do golpe de 1964. Se os significados de Desenvolvimento submetem-se ao reducionismo da Ciência Econômica, no campo da Antropologia, os significados de Cultura também são redu-zidos. Os estudos da “cultura”, assim como os de “desenvolvimento” fixaram e “conge-laram” conteúdos e conceitos, criaram fal-sas oposições ao invés de se abrirem para novas percepções das experiências huma-nas. Ao reconhecermos a natureza fluida da realidade e o distanciamento cada vez mais desconcertante entre as abstrações teóricas e as experiências humanas, no século XX, não queremos aqui defender o pensamento anárquico ou desestruturado para o século XXI. Pelo contrário, necessitamos rever mentalidade categórica e reducionista para que possamos identificar princípios gerado-res e estruturadores, externos a nós. Para compreendermos a complexa teia dos pro-cessos sociais, especialmente os de mais larga escala, necessitamos considerar a existência de interesses, instituições, agên-cias e atores dos diversos campos sociais (Knutsson in Arizpe: 2001,140). Essas re-des, sobre as quais se constroem as relações entre Cultura e Desenvolvimento, possuem especial complexidade no Brasil, país onde a fusão do arcaico e do moderno invalidam categorias sociológicas. É o caso da catego-ria “campo” de Pierre Bourdieu, a qual bus-ca definir áreas de interesse profissional. No Brasil, os “campos” se sobrepõem, os indivíduos alternam papéis, vivem e convi-vem em diversas “constelações” que se te-rritorializam e se desterritorializam, ao sabor de interesses, valores, crenças, hábi-tos e éticas. Ao tratarmos historicamente o desenvolvimento pela matriz econômica, subestimamos os papéis da cultura, en-quanto espaço da produção de mitos, símbo-los e metáforas, capaz de produzir novas categorias que, por sua vez, desempenhas-sem papel estratégico para a própria res-significação do desenvolvimento. “É preciso unir a memória de nossa cul-tura com a intuição de nossas ciências mais avançadas. Precisamos juntar a ciência da nossa modernidade mais moderna com o saber tradicional” (Rocha Pitta: 2005, 62). A advertência de Gilbert Durand poderia simbolizar a chave para novas conexões entre Cultura e Desenvolvimento. No en-tanto, as reflexões do antropólogo francês não encontraram acolhimento digno de nota no pensamento ocidental, especial-mente nas décadas em que os processos de globalização transformavam a criação, a transmissão, a apropriação e a interpretaç-ão dos bens simbólicos. Na nova “paisagem cultural”, de in-tercâmbio intenso entre pessoas que criam, se apropriam e dão significado aos bens culturais, nosso olhar limitou-se à mera descrição dos fatos, mostrando-se incapaz de produzir exegese sobre os diversos mundos e suas narrativas. Não construí-mos, como desejava Durand, um novo mo-delo mental capaz de aproximar e fundir o moderno e o tradicional. A incapacidade, por sua vez produziu o colapso, um “beco sem saída” para o pensamento ocidental, simbolizado pelas narrativas apocalípticas sobre o “Fim da História”. Afinal, o desen-volvimento do homem seria um mito? O discurso da evolução do homem do estágio de barbárie à civilização seria insustentá-vel? Se não conduzimos a História, acabe-mos com ela, disseram muitos, ou brademos o nosso desapontamento diante de nossas tentativas de explicar os fatos. A utopia da sustentabilidade no turismo A idéia de sustentabilidade surgiu em 1983, na Comissão Mundial do Meio Am-biente e Desenvolvimento – Comissão Brundtland - CMMAD/ONU – com o relató-rio Nosso Futuro Comum – apresentando os princípios: Equidade social: direito de cada um (de todos) se inserir no processo de desenvolvimento, Eficiência econômica: gestão dos recursos econômicos e financei-ros para garantir o funcionamento eficiente da sociedade e Prudência ecológica: a racio-nalização do consumo, usos de tecnologias limpas, definição de regras para a proteção ambiental. Portanto, há mais de duas déca-das, se discute o tema, levantando algumas preocupações em relação à natureza e so-ciedade. Sustentabilidade significa política e es-tratégia de desenvolvimento econômico, social e cultural contínuos, sem prejuízo do ambiente (inclusive dos recursos naturais) e do homem. Desse desenvolvimento, de-pende a continuidade da vida, da atividade 476 Turismo, cultura e desenvolvimento... PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 6(3). 2008 ISSN 1695-7121 humana, da capacidade dos animais e das plantas de se reproduzirem ao longo do tempo. Sustentabilidade e capitalismo est-ão sempre em contradição, mas, tratados como pensamento complexo, podem abrir caminhos para a construção de um modelo cuja matriz permita não a oposição mas ação dinâmica entre as oposições. Conside-remos, portanto, sustentabilidade um con-ceito complexo, no sentido em que abriga a objetividade que não deve excluir, de sua análise, o espírito humano, o sujeito indi-vidual, a cultura e a sociedade. Buscar va-riáveis para qualificar a sustentabilidade de um fenômeno significa criar consensos mas também pressupõe o antagonismo dos conflitos presentes nas diversas formas de o homem ser e estar no mundo. Neste sentido, as variáveis e os próprios significados de (in)sustentabilidade são naturalmente abertos e passíveis a flexibi-lidades, adaptações, pois este conhecimento é fruto de uma cultura dada, a qual, por sua vez, alimenta-se do repertório de noç-ões, crenças, linguagens etc. Por isso, cate-gorizar o fenômeno de (in)sustentável sig-nifica, antes construir um pensamento ca-paz de detectar as falhas, as lacunas, as contradições de todas as tentativas de re-dução da própria categoria (in) sustentabi-lidade e sua impotência diante das tentati-vas de generalização e definição de leis gerais acerca dos fenômenos sociais. Dessa forma, algo é sustentável ou in-sustentável pela compreensão, a priori, de que o objeto pensado (no caso, o fenômeno turístico) possui uma relativa autonomia, não sendo necessariamente determinado por forças específicas (no caso, os modos de produção capitalista). Desta forma, mitos e ideologias habitam os discursos e não mais se excluem, ou seja, para compreendermos as repercussões da (in)sustentabilidade do fenômeno jurídico necessitamos rever a estruturação do pensamento, da capacidade de pensar. Necessitamos ir além da racio-nalização que escraviza os objetos estuda-dos buscando encerrá-los em sistema lógico e coerente. Enfim, só avançamos na nova estrutura de pensamento, se aliarmos diversas com-petências relativas ao ato de conhecer. No caso da (in)sustentabilidade do fenômeno turístico, urge que acrescentemos novos olhares e contribuições de outros campos do conhecimento humano. Pela própria cons-tituição, o fenômeno se alimenta do con-hecimento racional-empírico, associado à esfera simbólico-mítico-mágica, ou seja, no turismo é especialmente necessária a com-preensão da dificuldade de permanecermos em conceitos claros, distintos, fáceis. Em face da constatação, podemos convocar os protagonistas do campo turístico a rever mentalidades, perceber que, tendo ou não status de ciência, não existem ciências pu-ras, e políticas públicas para o turismo são menos o fruto de pesquisas quantitativas que de bom senso capaz de superar precon-ceitos e visões maniqueístas da vida social. Aí está o desafio aos governantes, empresá-rios, planejadores, investidores, e, espe-cialmente, as comunidades receptoras. A "Carta da Terra" - documento da UNESCO - (2000) é uma tentativa de com-plementar a Declaração Universal dos Di-reitos Humanos, agregando a dimensão planetária, partindo do princípio de que não adianta garantir os direitos humanos, se o planeta continuar em processo de de-vastação. (a questão é que estes direitos humanos não foram garantidos a todos) O grande desafio é a defesa do homem, de seu trabalho, de sua dignidade, da extinção das desigualdades sociais e o da conservação do ambiente onde se vive. O documento afirma que humanidade é parte de vasto universo em evolução. Que a Terra, nosso lar, está viva com uma comunidade de vida única. As forças da natureza fazem da existência uma aventura exigente e incerta, mas a Terra providenciou as condições essenciais para a evolução da vida. A capacidade de recuperação da comunidade da vida e o bem-estar da humanidade dependem da preservação da biosfera saudável, com to-dos os sistemas ecológicos, uma rica varie-dade de plantas e animais, solos férteis, águas puras e ar limpo. O meio ambiente global, com seus recursos finitos, é preocu-pação comum de todas as pessoas. A pro-teção da vitalidade, diversidade e beleza da Terra é um dever sagrado. E erradicar a pobreza é imperativo ético, social, econômi-co e ambiental. A “Agenda 21”, transformada em Pro-grama, procura integrar as atividades rela-tivas ao desenvolvimento e meio ambiente, ou seja, quer realizar o desenvolvimento sustentável, evitando o esgotamento da Luzia Neide Coriolano y Claudia Leitão 477 PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 6(3). 2008 ISSN 1695-7121 natureza, e redirecionar as políticas. Al-guns empresários, que entenderam os ques-tionamentos, buscam agregar valor am-biental, cultural e social aos produtos, utili-zando tecnologias brandas e políticas para diminuir impactos negativos, assumindo responsabilidade social, embora muitos outros permaneçam utilizando apenas a propaganda e o marketing da maquiagem verde para tentar passar imagem positiva. Responsabilidade Social é o compromis-so contínuo da empresa em adotar a ética do desenvolvimento social, sustentada so-bre o tripé da qualidade de vida, inclusão social e respeito ao homem, à natureza e às gerações futuras. Nela, estão presentes a Responsabilidade Ambiental e a Responsa-bilidade Cultural. A Responsabilidade Am-biental não se limita ao compromisso volta-do para a natureza (flora, fauna, ar e água), mas cada vez mais se funde com a Respon-sabilidade Cultural, no que se refere à compreensão estratégica dos recursos cul-turais, históricos e sociais para o desenvol-vimento humano. Não se deve poluir a praia, o ambiente, assim como não se pode depredar o patrimônio histórico, os modos de vida e as culturas. Em alguns empreendimentos turísticos, podemos encontrar exemplos indicativos de possibilidade de mudanças sociais diferen-tes dos modelos vigentes. Algumas iniciati-vas, em Fortaleza, capital do Ceará e quar-ta maior cidade do Brasil, indicam tendên-cias animadoras para o exercício da respon-sabilidade social, caminhando na busca de iniciativas turísticas mais solidárias: • Combatendo e denunciando o trabalho infantil nos empreendimentos; • Capacitando trabalhadores de bares e restaurantes populares localizados no entorno dos grandes hotéis e resorts; • Patrocinando empreendimentos cultu-rais e de lazer popular; • Combatendo a prática de esportes inse-guros, oferecendo condição para aqueles passíveis de controle de segurança; • Combatendo a displicência e a desones-tidade praticada contra o turista; • Ajudando a organização comunitária na luta por seus direitos e concretização da cidadania; • Apoiando a realização de estudos, pes-quisas e programas com objetivos de de-senvolvimento sustentável, de melhoria de ambientes, de recuperação ambiental; • Discutindo a possibilidade de geração de oportunidades para os considerados ex-cluídos do trabalho, da chamada cadeia produtiva do turismo; • Tornando a qualidade de vida mais viá-vel nas cidades, com políticas alternati-vas de habitação, de educação e de pe-quenos negócios; • Participando da implementação local da Agenda 21 seguindo os princípios de sustentabilidade estabelecidos na Confe-rencia Rio/92. De algoz a protagonista de ações afirma-tivas, na proteção das cidades, paisagens, serras, litorais, sertões, enfim, de grande variedade de geossistemas ou espaços ge-ográficos, os programas governamentais começam timidamente a criar políticas al-ternativas de turismo voltado à diminuição das desigualdades regionais, disparidades sociais, à conservação ambiental, à manu-tenção de lugares saudáveis. Dessa for-ma, vão integrando novos elementos para a (re)definição de variáveis relativas à reflex-ão acerca da (in)sustentabilidade das ações do turismo, os quais passam a observar ou a refletir sobre: • Um novo paradigma para o desenvolvi-mento; • Uma sociedade mais justa e solidária; • As práticas do consumo; • Aumento da consciência ecológica, da cidadania, da educação ambiental dos visitantes e visitados; • A biodiversidade e diversidade cultural não como recursos produtivo, mas como patrimônios da humanidade; • As formas compartilhadas de planejar e gerir com base local; • A formação profissional voltada para o resgate da afetividade e da visão humanística; • O comportamento ético das operadores e agências especializadas – comprometi-das cada vez mais com a prática turísti-ca responsável; • A construção de sistemas de promoção e marketing turístico adequada aos am-bientes frágeis utilizados para o ecotu-rismo; • O apoio às pequenas e médias empresas; • A Proteção / conservação dos recursos naturais / culturais; 478 Turismo, cultura e desenvolvimento... PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 6(3). 2008 ISSN 1695-7121 • O investimento em pesquisas cientificas, voltadas ao turismo. Tais iniciativas são mais ou menos efi-cazes em função das respostas culturais das sociedades nas quais são experimentadas. No entanto, mantêm-se enquanto utopias, como possibilidade, sonho e desejo de nos conhecermos mais, pelo conhecimento e reconhecimento dos limites do homem. Muitos movimentos socio-cultural-ambientais vêm propondo programas e ações neste sentido, como é o caso da coa-lizão globalizada de Organizações Não Go-vernamentais, pautada nos valores centrais da dignidade humana, base de quaisquer projetos ditos sustentáveis. Em 1999, as organizações realizaram protestos ao mode-lo de consumo insustentável da sociedade capitalista, na reunião da Organização Mundial do Comércio, em Seattle. A “Coa-lizão de Seattle”, como foi chamado o mo-vimento (paralelo ao da Organização Mun-dial do Comércio), é a luta por outra globa-lização. Trata-se de movimento global pela justiça social, pela busca da sustentabilida-de social que vem realizando os Fóruns Sociais Mundiais, em Porto Alegre, Brasil. Todos os movimentos e encontros sistemá-ticos vêm estimulando o surgimento de contra-propostas políticas em busca de uma sociedade sustentável, para que se possa pensar na sustentabilidade do desenvolvi-mento, particularmente, por meio do fenô-meno turístico. Os movimentos associam-se na busca de novas reflexões acerca das nos-sas relações com o mundo, e para conosco, que definem papéis, espacialidades, hierar-quias e formas de dominação. Que essas reflexões perdurem, pois são especialmente necessárias aos destinos da América Lati-na, historicamente constituída de ex-colônias ainda hoje periféricas aos proces-sos de mundialização econômica e, por isso, ciosas de novas alternativas para o desen-volvimento dod povos. Bibliografia AGENDA 21. 1992 Diário Oficial da União em 02/06/1992. 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Recibido: 13 de septiembre de 2007 Reenviado: 05 de marzo de 2008 Aceptado: 20 de abril de 2008 Sometido a evaluación por pares anónimos
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Calificación | |
Título y subtítulo | Turismo, cultura e desenvolvimento entre sustentabilidades e (in)sustentabilidades |
Autor principal | Neide Coriolano, Luzia ; Leitão, Claudia |
Publicación fuente | Pasos. Revista de turismo y patrimonio cultural |
Numeración | Volumen 06. Número 3 |
Sección | Artículos |
Tipo de documento | Artículo |
Lugar de publicación | El Sauzal, Tenerife |
Editorial | Universidad de La Laguna |
Fecha | 2008-10 |
Páginas | pp. 467-479 |
Materias | Turismo ; Patrimonio cultural ; Publicaciones periódicas |
Enlaces relacionados | Página web: http://todopatrimonio.com/revistas/101-pasos-revista-de-turismo-y-patrimonio-cultural |
Copyright | http://biblioteca.ulpgc.es/avisomdc |
Formato digital | |
Tamaño de archivo | 155689 Bytes |
Texto | Vol. 6 Nº 3 págs. 467-479. 2008 www.pasosonline.org © PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural. ISSN 1695-7121 Turismo, cultura e desenvolvimento entre sustentabilidades e (in)sustentabilidades Luzia Neide Coriolano Claudia Leitão ii Universidade Estadual do Ceará (Brasil) Resumo: O turismo é um dos fatores de aceleração do desenvolvimento contemporâneo, e de intensifi-cação das relações sociais, típicas do modo de produção capitalista. Trata-se de atividade que necessita do uso e da apropriação de ambientes naturais e culturais, produzidos pelo trabalho, para transformá-lo em espaço de lazer e consumo. Faz parte da dinâmica atual da mundialização do capital, que cria territo-rialidades, como forma de responder às crises da acumulação global, envolvendo, além do mercado, o Estado e a Sociedade Civil. É ainda um serviço de suporte à recuperação do trabalho humano, ao pro-gressivo crescimento das relações do trabalho industrial, comercial e financeiro dos diversos mercados internacionais, além de, enquanto produto de exportação, constituir-se em uma das principais mercado-rias do comércio exterior. É um setor afeito a mitologias, ora é considerado panacéia capaz de resolver os problemas socioeconômicos dos países periféricos, ora é interpretado como indústria selvagem, capaz de destituir comunidades de suas marcas identitárias e de sentimentos de pertença. Há, pois, na atividade turística, elementos contraditórios. Este artigo reflete sobre os significados, contradições e desafios rela-tivos à sustentabilidade do turismo, em face dos significados do desenvolvimento adotados pelas políti-cas governamentais e sua desconexão com as políticas de cultura que podem contribuir, em valores e diretrizes, para a construção do turismo solidário, voltado para o fomento da diversidade cultural e quali-dade de vida das populações. Palavras chave: Turismo; Cultura; Territorialidades; Local; Comunidades; Sustentabilidades. Abstract: The tourism is one of the factors of the contemporary development and of the intensification of the social relationship, typical of the capitalist production model. It is an activity that requires the use and the appropriation of natural and cultural environments, produced by work, to turn it into spaces of leisure and consumption. It is part of the current dynamic of the capital, which creates territorialities, like an answer to the crises of global accumulation, involving the market, the State and the Civilian Society. It is also a service that supports the recovering of the human work, to the progressive growth of the in-dustrial, commercial and financial work relationships of the several international markets, besides, as an export product, to be constituted in one of the main merchandise of the foreign trade. It is a sector accus-tomed to mythologies, sometimes is considered the solution capable to solve the socioeconomic prob-lems of the outlying countries and sometimes is seen as a savage industry, capable to destroy the identity of communities. This article reflects about the meanings, contradictions and challenges related to tourism sustainability, facing of the meanings of the development adopted by the government policies and its disconnection with the culture policies that may contribute, in value and guidelines, to the construction of the solidary tourism, turned to the foment of the cultural diversity and the living quality of the local populations. Keywords: Tourism; Culture; Territorialities; Local; Communities; Sustainabilities. ii • Profa. Dra. Luzia Neide Coriolano; Profa. Dra. Claudia Leitão. Mestrado Acadêmico em Geografia e do Mestra-do Profissional em Gestão de Negócios Turísticos, da Universidade Estadual do Ceará. Email: luzianei-de@ hotmail.com 468 Turismo, cultura e desenvolvimento... PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 6(3). 2008 ISSN 1695-7121 Introdução O turismo é um campo de estudo afeito a tensões e antinomias. De um lado, é consi-derado um dos fatores de aceleração do desenvolvimento moderno e, de outro, da intensificação das redes de relações sociais no planeta ((características do novo século). As imagens do turismo conso-lidadas ao longo do século XX, produzirão signos e símbolos impregnados de significa-dos simultaneamente criativos e destruti-vos. Ao mesmo tempo em que a atividade turística simboliza o uso e a apropriação (muitas vezes inadequada) de ambientes naturais e culturais, transfigurando-os em espaços de lazer e consumo, concentração de riqueza, especulação, segregação de es-paços, degradação de ambientes, destruição de expressões culturais, exploração de tra-balhadores, também simboliza o empreen-dedorismo, a conquista, a descoberta, o sonho. A contradição é especialmente valiosa quando refletimos sobre a (in)sustentabilidade do fenômeno turístico nas sociedades contemporâneas. Tal reflex-ão torna-se gradativamente mais oportuna no contexto em que a atividade turística vem ampliando significados e éticas, ou seja, vem se libertando da imagem mera-mente econômica, passando a adquirir no-vas dimensões e transversalidades. Embora ainda de forma tímida e incipiente, é possí-vel observar-se recente tendência de diálo-go entre as políticas públicas para o turis-mo, especialmente com os campos ambien-tal e cultural. Tais observações propõem indagações para a nossa reflexão neste ar-tigo: é possível definir indicadores de sus-tentabilidade para o fenômeno turístico? A atividade turística pode simbolizar nova compreensão de indústria, capaz de cons-truir relações mais “ecológicas” entre os empreendimentos turísticos e o patrimônio cultural e natural em que estão inseridos? A reflexão sobre a atividade turística pode fazer rever os modelos mentais modernos e nos ampliar nosso repertório de imagens e símbolos, capazes de fazer perceber, de forma transversal, o fenômeno do turismo como criação de socialidades, atividade econômica, assim como repertório de ima-gens das sociedades? Responder a essas indagações implica a compreensão de novas dimensões da ativi-dade turística no século XXI. Os estudos acerca do “pensamento complexo” de Ed-gard Morin, (2003) assim como sobre as “estruturas antropológicas do imaginário” de Gilbert Durand, poderão servir de refe-rencial epistemológico para penetração no campo do turismo mediante as perguntas anteriormente elaboradas. Ao refletir sobre o percurso das ciências até o século XX, Morin constata uma primeira grande dis-tinção entre a cultura geral e a cultura técnica e científica. Enquanto a primeira é ampla e abraça tanto informações quanto idéias, a segunda compartimenta o con-hecimento, tornando difícil sua contextuali-zação. Utilizando-se de metodologia redu-cionista para conhecer (simbolizada pelo método lógico dedutivo que parte do todo para o conhecimento das partes que o compõem e da obsessão determinista pelas leis gerais em que se oculta o acaso, o novo, as exceções) o conhecimento científico mo-derno empobreceu o mundo, retirou o objeto pesquisado do seu contexto, rejeitando co-nexões entre ele e seu ambiente. As Ciências Sociais percorreram o mes-mo caminho, pois reduziram sua atuação ao calculável e formulável, abstraindo os obje-tos de pesquisa dos contextos sociais, histó-ricos, políticos, culturais e ecológicos nos quais foram gerados. Por isso, a Economia, entre as Ciências Sociais, por ser matema-ticamente a mais avançada, é, na perspec-tiva humana, a mais atrasada das Ciências. De forma analógica, também estamos atra-sados, relativamente aos estudos da disci-plina do turismo, fatalmente “atropelados” pelos movimentos desarmônicos do planeta, frustrados com o caráter aleatório do mun-do (Morin: 2003, 69-70). Por outro lado, a Sociologia do Imaginá-rio de Durand convida a criar conexões entre as sociedades do espetáculo, socieda-des da proliferação das imagens, do cresci-mento das indústrias criativas e o fenôme-no da transfiguração do turismo, ao longo das últimas décadas. Pelas imagens do turismo, podemos observar tendências so-ciais, esboçar traços do “espírito do tempo”, neste início de século, do retorno aos mitos, às artes, ao espetáculo, aos afetos, ao no-madismo das sociedades. Ora, não é exata- Luzia Neide Coriolano y Claudia Leitão 469 PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 6(3). 2008 ISSN 1695-7121 mente com este repertório do homo sapiens que o turismo trabalha? Não carregaría-mos, como afirma Jung, imagens universais do nosso inconsciente coletivo, que definem nossas reações e empatias nos lugares visi-tados? Enfim, uma viagem turística não é menos o consumo de produtos e serviços mas uma espécie de “trajeto antropológico” em que revisitamos a nós mesmos pelas narrativas, símbolos e ícones construídos pelo “outro”? Se a modernidade tem como grande símbolo a razão, a análise, a decom-posição dos fenômenos para explicá-los, as sociedades contemporâneas, pelo contrário, vêm, pela imaginação, reinventar e reen-cantar o mundo, ou melhor, buscando abraçá-lo (origem etimológica do verbo compreender), tomá-lo por todos os lados, de forma a percebê-lo não somente pelas ciências mas por outros caminhos: pelos afetos, pelos sentidos, pela memória, pelos mitos, pelas imagens. Os estudos e pesquisas do fenômeno turístico seguiram a herança aristotélica da modernidade, ou seja, do pensamento bipo-lar não complexo, habituado à mera análise “causa x efeito” dos fatos sociais, sem bus-car- lhes maior conexão e aprofundamento com outros campos do conhecimento. Se os novos tempos assentam-se sobre a multipli-cidade e superposição de discursos que indi-cam a fusão e a (con)fusão entre antigas contradições( existência e intelecto, corpo e espírito, arte e vida, conquistas cientificas e renascimento de guerras etnocêntricas e religiosas), vale avaliar em que medida os estudos turísticos foram submetidos, ao lon-go do século XX, às mesmas mazelas sofri-das pelas Ciências Sociais. Mediante méto-dos, ora quantitativos, fruto de visões positi-vistas, ora empíricos, produto de visões fe-nomenológicas, parte significativa dos estu-dos turísticos também simbolizam a dico-tomia do pensamento moderno diante dos dilemas entre explicação x compreensão do mundo. É evidente que não subestimamos, nas sociedades mundializadas, as velhas con-tradições suscitadas pelas tradicionais re-lações capital-trabalho, tão presentes no século XX. Nesse contexto, o turismo, como área de conhecimento acadêmico e ativida-de econômica, se desenvolve, contribuindo para a proliferação de desequilíbrios sócio-espaciais de toda sorte. No plano das relaç-ões trabalhistas, observamos, na atividade turística, acentuada exploração do mercado de trabalho, pela elevada porcentagem de trabalhadores em meio período; grande porcentagem de trabalhadores temporários e ocasionais; intensa presença de mulheres com contratos de meio período, especial-mente em hotelaria e restaurantes; escasso número de mulheres em cargos de maior responsabilidade; presença de trabalhado-res estrangeiros ocupando cargos de maio-res responsabilidades, nos países em de-senvolvimento, em detrimento dos profis-sionais locais; pouca qualificação dos pres-tadores de serviços na hotelaria e em ali-mentos e bebidas; menores níveis de salá-rios em relação a outros setores; maior ex-ploração do trabalhador na jornada de tra-balho; poucos trabalhadores sindicalizados e com algumas atividades com curto ciclo de vida. No plano geográfico, observamos impactos relativos às transformações do território, assim como repercussões sócio-antropológicas para as comunidades e so-ciedades. Nos países periféricos, o turismo produz “ilhas de prosperidade” em conflito com espaços marginais, fazendo emergir contradições, as mais diversas, especial-mente de ordem social, cultural e econômi-ca. No Brasil, o turismo cresce e se consoli-da como atividade geradora de riqueza, tornando-se importante produto de expor-tação. No Nordeste brasileiro, no Ceará (estado emergente para o turismo nacio-nal), o turismo ocupa o quarto lugar entre os produtos de exportação1. No entanto, quanto mais se torna estratégia de desen-volvimento econômico, mais sua imagem é reduzida à dimensão mercadológica. O em-pobrecimento de significados para o setor pode ser percebido nos programas gover-namentais, nas práticas do chamado trade turístico, nos comportamentos dos em-presários da cadeia produtiva. As conseqüências do reducionismo são desastrosas para a atividade turística, nas perspectivas pública e privada. No espaço público, é o turismo como mero “negócio” reduzindo políticas públicas em meras aç-ões de marketing. No espaço privado, a cadeia produtiva do turismo é estruturada nas mesmas bases das economias dos seto-res primário e secundário. Dessa forma, os projetos públicos e privados para o setor 470 Turismo, cultura e desenvolvimento... PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 6(3). 2008 ISSN 1695-7121 turístico constroem-se pelos mesmos mode-los mentais e mesmas bases semânticas fundadas na imagem do “turis-mo/ mercadoria”, o que também ocorre nos discursos políticos, jurídicos e econômicos relativos às questões de sustentabilidade. Marcados pela vagueza e ambigüidade, os mesmos serão particularmente omissos, mostrando-se incapazes de normatizar e institucionalizar o campo turístico. O crescimento da economia do turismo impacta diversos setores da economia, es-pecialmente o imobiliário, simbolizado pela construção de mega empreendimentos hote-leiros e equipamentos de lazer que, por sua vez provocam danos ambientais, além do que contribuem, como já afirmamos, para concentrar riqueza, causando, conseqüen-temente, disfunções e esgarçamentos do tecido social. Reações a esse quadro, no entanto, começam a acontecer pelos movi-mentos sociais, os mais diversos, que cla-mam por garantias jurídicas que definam critérios de responsabilidade social para esses empreendimentos. As forças sociais se estruturam em reação ao próprio modo de produção capitalista, que vive, de crises periódicas, pois as mesmas condições que proporcionam o crescimento do produto e da riqueza, do trabalho e do lazer, desenca-deiam momentos de autodestruição, no movimento permanente de sustentabilida-des e insustentabilidades. A imagem do mercado passa a simbolizar, gradativamen-te, espaço de instabilidades, uma espécie de “tabuleiro de xadrez” cujos vencedores e perdedores são indefinidos, circunstanciais e imprevisíveis. As reações às ações, no campo turístico, originam estudos e pesquisas que elaboram novos discursos, por meio de novas imagens e de novas representações simbólicas a eles agregadas. As mais significativas, nas últimas décadas, se referem às conexões entre turismo e ambiente. Esse relaciona-mento se traduz no crescimento da legis-lação sobre o direito ambiental, assim como no surgimento de relatórios capazes de salvaguardar os impactos negativos do tu-rismo em face do meio, tão comuns nas práticas do “turismo de massas”, marcado pelo caráter predatório, relativo ao trato irresponsável, com a natureza e a cultura. O desequilíbrio planetário resultante da progressiva degradação e destruição dos recursos naturais, em razão da ação equí-voca do homem sobre o ambiente, traz re-percussões e modificações nas formas har-moniosas de construção do cotidiano de culturas tradicionais. A alteração das aspi-rações dos diferentes grupos sociais e co-munitários e seus modos peculiares de vi-ver foi drasticamente substituída pela im-posição de novos padrões comportamentais, ameaçando a diversidade cultural e a vida no planeta. Se os resorts simbolizam a acumulação e concentração de capital no setor turístico, as pousadas ou os pequenos hotéis podem simbolizar novas imagens de um turismo menos concentrador e mais solidário, me-nos pasteurizado e mais atento à diversida-de cultural. O turismo não somente mapeia territórios mas cria territorialidades, pois define destinos, propõe roteiros, dando visi-bilidade a espaços até então “invisíveis”. Além de construir espaços simbólicos, a atividade turística tece rede extensa de pequenos negócios que, por sua vez, cria socialidades as mais diversas. Neste sentido, o turismo suporta e res-significa o trabalho, propondo-lhe lógicas menos especulativas e invasivas e mais abertas à diversidade e ao compartil-hamento afetivo. Pela própria natureza, a atividade turística, pode, ao mesmo tempo, concentrar lucro, riqueza e renda, mas também criar oportunidades de ganhos aos trabalhadores e às comunidades mais po-bres, visto que a tese incorpora a antítese; o contraponto, o ponto e a contraposição, a posição. A própria transfiguração da ativi-dade turística dá indícios de que o turismo, como mera atividade capitalista voltada unicamente para o lucro financeiro, perde força, fruto dos impasses entre os limites do capital e a própria sobrevivência do homem no ambiente natural e cultural. Não obstante o surgimento de novas mentalidades voltadas para o campo turís-tico, constatamos que, em pleno século XXI, as reflexões acerca da (in)sustentabilidade do turismo ainda estão impregnadas das imagens emprestadas pela ciência econômi-ca e que, se os discursos ambientais passam a estabelecer-lhe novos limites, o mesmo não ocorre, na mesma proporção, no campo cultural. As políticas públicas entre turis-mo e cultura, na América Latina, especial-mente no Brasil, pouco dialogaram até Luzia Neide Coriolano y Claudia Leitão 471 PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 6(3). 2008 ISSN 1695-7121 aqui, não compreendendo que o patrimônio natural é também patrimônio cultural. O isolamento pode ser percebido pela pequena contribuição da cultura nos indicadores de (in)sustentabilidade para o setor turístico e do grande distanciamento entre os projetos de intervenção sobre a paisagem, em geral, realizados por ministérios e secretarias de infra-estrutura, apoiados por conselhos do ambiente, sem a participação dos conselhos de cultura. O discurso ambiental que vem se integrando ás discussões sobre sustenta-bilidade do turismo necessita, por conse-guinte, da contribuição do discurso cultural, ou seja, o próprio direito ambiental deve estabelecer relação dialógica com os “direi-tos culturais”, o que certamente contribuirá para indicadores de sustentabilidade mais transversais para o turismo. A tendência de aproximação e do diálogo entre os campos da cultura e do turismo é, pois, fruto das sociedades ditas pós-modernas ou pós-industriais, as quais pro-duzem novas representações sociais menos marcadas pelas imagens mercadológicas e mais voltadas aos valores culturais, às identidades, aos sentimentos de pertença, ao poder dos mitos e à carga de simbolismo dos indivíduos e das comunidades conside-radas destinos turísticos. A nova mentali-dade compreende a atividade turística como rica e diversa cadeia simbólica capaz de reinventar territórios, criar novas sociabili-dades e estabelecer novas solidariedades. Por uma ampliação dos significados do tu-rismo A atividade do turismo vem sendo histo-ricamente associada aos modos de produção do trabalho industrial, comercial e finan-ceiro, nos diversos mercados internacionais. Dentro dos paradigmas modernos em que foi significado, o turismo transfigurou-se e fragmentou-se. De lazer para as elites até tornar-se atividade massificada, transfor-mada em mercadoria barata, invenção da sociedade de consumo, o turismo transfigu-rou- se, revelando, pelos significados e dile-mas, a complexidade das sociedades con-temporâneas. Como produto moderno, o turismo sofreu da mesma “anemia semântica” do chamado “individualismo possessivo*. Finda a forta-leza do “eu”, nas últimas décadas do século XX, surgem incertezas de ordens diversas. Ora, enquanto conhecimento que almeja o status de ciência, o turismo também exem-plifica os discursos monoteístas promovidos pelo racionalismo moderno. Suas bases e fundamentos alimentam-se, desde origens, do campo moral do “dever-ser”, ou seja, são discursos que objetivavam construir uma sociedade com “s” maiúsculo, assegurando-lhe padrões normativos, regras de conduta, códigos fixos de ser e estar no mundo. Gran-de parte desses discursos foi se desmorali-zando (referimo-nos ao sentido etimológico da expressão, ou seja, os discursos foram abandonando o campo da moral, por não serem capazes de prever, categorizar, nor-matizar ou sancionar a imensa diversidade dos comportamentos sociais). A desmorali-zação dos discursos sociais, políticos e jurídi-cos é perceptível por todos nós a olho nu, tornando-se espetáculos histriônicos a que assistimos diariamente pela televisão, lemos pelos jornais ou acessamos pela internet. O desencanto diante das grandes narrativas “explicadoras” do mundo é um sintoma sobre o qual devemos refletir. Nossa herança ilu-minista encontra-se em grande encruzil-hada; necessitamos construir nossos mode-los mentais, rever dogmas e convicções e, por que não fazê-lo pela análise do fenômeno turístico nas sociedades contemporâneas? O mundo parece encontrar-se cada vez mais em todos, embora todos não se encon-trem no mundo. Expressões como “capital social”, “desenvolvimento sustentável”, “de-senvolvimento com cooperação”, “inclusão social”, “cidadania” estão presentes nos dis-cursos públicos e privados e, de tanto ouvi-los e de tanto utilizá-los, temos a sensação de que, ao invés de nos sentirmos estimula-dos ao debate, à imaginação e à criatividade, temos mentes cada vez mais paralisadas. O resultado e o perigo dos discursos “globali-zantes” é que, quanto mais progride a crise, menos capacidade temos de pensá-la, quanto mais nos submetemos à “economia global” , menos nos indagamos: afinal de contas, de que globalização falamos? No século em que o conhecimento, o ócio e o lazer tomam sig-nificados cada vez mais importantes, no cotidiano das sociedades, o turismo pode, graças à riqueza da carga simbólica, tornar-se campo especialmente fecundo para a compreensão das transfigurações do homo-faber ao homo-ludens. 472 Turismo, cultura e desenvolvimento... PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 6(3). 2008 ISSN 1695-7121 Os significados do turismo ainda são es-sencialmente modernos, pois são originá-rios do século XVII, com as principais teo-rias oriundas do período posterior à Segun-da Guerra Mundial, submetendo-se às re-presentações sociais suscitadas pelo ima-ginário moderno. Dessa forma, os discursos político, econômico e acadêmico chamam de “indústria” a atividade turística, com o ob-jetivo de dar-lhe status de vigor e im-portância social. No discurso legitimador de “indústria”, o turismo abandona-se, ou mesmo, desqualifica-se suas imagens e símbolos de natureza antropológica ou cul-tural. Assim, enfatiza-se a imagem do tu-rista como hóspede, consumidor ou cliente e o turismo como mera fonte de renda e divi-sas, subestimando-se a imagem do turista como protagonista cultural, alguém que estabelece trocas simbólicas com outros indivíduos. Com o desenvolvimento das ciências e das tecnologias, cresce o tempo livre, fruto contraditório da ampliação do trabalho especializado, assim como do desapareci-mento de determinadas profissões. As transformações do trabalho produzem ao mesmo tempo, grande contingente de mul-tiespecialistas e um “exército” de desem-pregados, provocam maiores deslocamentos territoriais dos indivíduos, além do aumen-to do tempo dedicado às férias, movimen-tos migratórios, a banalização das viagens, a democratização do acesso aos meios de transporte, enfim, um cenário cada vez mais favorável à atividade turística. Se as inovações de Thomas Cook, em 1841, inse-riram o turismo no mundo dos negócios, atividade beneficiada, cada vez mais, pela evolução dos transportes e do comércio de bens e serviços, esse movimento, levado ao paroxismo, mostra a atividade turística vítima das próprias contradições. Os pro-cessos massificadores da atividade turística produzem “não-lugares”, desterritorializam indivíduos e comunidades, com efeitos per-versos à vida comunitária e social, gradati-vamente mais órfã de imaginários e desti-tuídas de sentimentos de pertença. Vale, portanto, repensar os modelos de desenvolvimento definidos ou praticados em países latino-americanos com grandes desigualdades como o Brasil. A desigualda-de suscita desconfiança, assim como é pro-dutora da lógica de distanciamento entre grupos e estratos sociais. Desse modo, como habitantes de países em desenvolvimento, podemos perguntar: como reaver o capital social de comunidades excluídas, de ex-colônias submetidas à domesticação de suas culturas, despossuídas de auto-estima e de capacidade de mobilização? As perguntas referem-se não somente a continentes desi-guais como a América Latina ou a África, mas dizem respeito a comunidades periféri-cas em todo o planeta. As políticas públicas, na América Lati-na, especialmente no Brasil, ainda não construíram os necessários canais de inter-secção entre os campos da cultura e do tu-rismo, resumindo-se a compreender o tu-rismo cultural como patrimônio cultural material (prédios e conjuntos tombados) e imaterial (festas e manifestações da cultura tradicional popular). No entanto, os consu-midores da atividade turística começam a desenvolver novas éticas, demonstrando, graças às suas práticas, que os modelos mentais que produzem políticas e progra-mas turísticos necessitam urgentemente de reestruturação. Os próprios turistas pas-sam a exigir, de forma gradativa, um maior espectro, no que se refere à fruição das ati-vidades. Ao mesmo tempo, vale enfatizar que, nas cidades, o lazer urbano vem sendo redimensionado. Assim, as classes de menor poder aquisi-tivo v êm descobrindo o turismo social,2 permitindo que as populações das regiões não direcionadas ao turismo global descu-bram novas formas de inclusão na cadeia produtiva do turismo e nos roteiros de visi-tação. Mais uma vez, constatamos que a dinâmica turística revela a complexidade social, a tensão complementar entre centro e periferia, entre incluídos e excluídos. Afi-nal de contas, nesses tempos nômades, re-pletos de contradições e de redundâncias, o que nos faz realizar atividade turística? Como deslocar-se em um mundo, no qual, quanto mais nos movimentamos, mais pa-recemos estar no mesmo lugar? E, por último, estas indagações: os discursos modernos acerca de sustentabilidade po-dem aplicar-se à atividade turística? As limitações de natureza ambiental/natural e cultural ameaçam o caráter econômico da atividade turística ou, pelo contrário, po-dem representar seu renascimento e res-significação?. Luzia Neide Coriolano y Claudia Leitão 473 PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 6(3). 2008 ISSN 1695-7121 Meio ambiente e desenvolvimento O meio ambiente é significado e estrutu-rado por diferentes discursos, produzidos pelas ciências, pelo senso comum, ou ainda pela normatização realizada pelos poderes legislativos. Alguns discursos, de escopo limitado, abrangem apenas as imagens, os símbolos ou as representações naturais, outros, mais abrangentes, referem-se ao meio ambiente como espaço social, econô-mico, cultural e político, ou seja, como espa-ço de interação entre os homens e a nature-za e do homem com seus pares. O ambiente é o próprio espaço do turismo, seja nature-za, campo ou cidade. Milton Santos (1997) o entendia como o conjunto de complexos territoriais que constituem a base física do trabalho humano. O meio ambiente é, pois, o conjunto, em um dado momento, dos agentes físicos, químicos, biológicos, culturais e dos fatores socioeconômicos susceptíveis de efeito dire-to ou indireto, imediato ou a termo, sobre os seres vivos e as atividades humanas (Pou-trel e Wasserman,1977). A natureza, as praias, as cidades, os lugares visitados pe-los turistas constituem o meio ambiente. Constituem ainda espaço complexo, pois contêm o ar, o solo, a água, as plantas, os animais e o homem, com todas as condições econômicas e sociais que influenciam a vida em geral. Desse ambiente, depende a vida, em especial, a vida humana. Nele estão todas as construções, máquinas, estruturas e objetos feitos pelo homem ou objetos ge-ográficos, assim como sólidos, líquidos, ga-ses, odores, cores, calor, sons, vibrações, radiações e ações resultantes das ativida-des culturais e naturais. Portanto, é cons-tantemente impactado, exigindo cuidados, ponderações e novas abordagens acerca de significados e conexões. Trata-se, enfim, de espaço geográfico simultaneamente natural, social, econômi-co, político e cultural, que contém todos os seres vivos em interação, um espaço político e não neutro, pois se encontra eivado de ideologias, conceitos e preconceitos. Nele se desenvolvem as atividades humanas, ani-mais e vegetais, possibilitando condições para a dinâmica imbricada e complementar entre o natural e o social. Constituem, en-fim, espaços submetidos a sucessivas trans-formações, com formas de apropriação e usos variados. Não é o espaço absoluto da natureza infinita e passiva, mas o espaço relativo produzido e reprodutor de relações sociais, que também estão submetidas aos modos capitalistas de produção e de con-sumo. O meio ambiente constitui, por último, território, alvo de políticas transdisciplina-res e não somente ambientais. As questões ambientais ampliam-se para sociais, cultu-rais e territoriais, incluindo as interações entre o homem, a comunidade e a natureza. Moraes (2002, p. 30) entende o ambiental para além de vetor reestruturador da lógica cientifica (a razão ambientalista como propõem alguns), ou seja, como mais um fator a ser considerado na modelagem do espaço terrestre. Entretanto a preocupação ambiental se dessacraliza, circunscrevendo um campo teórico mais restrito que o alme-jado pelas proposições holísticas. A redução ambientalista e a presunção holística aca-bam por gerar empobrecimento significati-vo, na análise dos processos políticos e econômicos do ambiente. O modo de produzir e de consumir tem a natureza como recurso, portanto reduziu-a também à imagem de “mercadoria”, degra-dando- a até a exaustão, fazendo emergir, na pauta das discussões mundiais, as questões relativas à (in)sustentabilidade. Para o imaginário moderno, a natureza existe pra ser dominada pelo homem, para servir às suas finalidades, mesmo que aca-be por comprometer a própria sobrevivên-cia. Desde os meados do século XX, verifica-se o fortalecimento da consciência ambien-tal (incluindo o social e o político) de grupos que se solidarizam com pessoas de todo o mundo, exigindo mudanças comportamen-tais, produção ecologicamente correta, res-ponsabilidade social das empresas e mode-los alternativos de turismo. Buscamos avaliar os empreendimentos por fatores, com a consciência de que o pla-neta é a casa de todos, a “consciência pla-netária” tão discutida por Leonardo Boff (1999), que diz respeito às habilidades, responsabilidades, atitudes e visão de mundo e do cosmo, responsabilidade diante do planeta e senso de cidadania. Capra (2003) acredita que a chave para tal defi-nição operacional é a tomada de consciência de que não precisamos inventar comunida-des humanas sustentáveis a partir do zero, 474 Turismo, cultura e desenvolvimento... PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 6(3). 2008 ISSN 1695-7121 mas que podemos modelá-las, seguindo os ecossistemas da natureza que são comuni-dades sustentáveis de plantas, animais e micro-organismos. Uma vez que a carac-terística principal da biosfera consiste na habilidade para sustentar a vida, uma co-munidade humana sustentável deve ser planejada de maneira que as formas de vida, negócios, economia, estruturas físicas e tecnológicas não venham a interferir na habilidade inerente à Natureza ou à sus-tentação da vida. Mesmo que a natureza não ofereça modelos para todos os compor-tamentos sociais, como acreditam cientistas de visão crítica, todos são unânimes em admitir que a transição para um futuro sustentável ou uma sociedade sustentável se configura como postura política pautada em visão de mundo e de valores éticos. As conceituações de meio-ambiente in-cluem e se aproximam cada vez mais dos significados da cultura, pois nele estão con-tidos ritos, mitos, as manifestações do cotidiano, a natureza, as cidades, o habitat, os saberes e fazeres, enfim, tudo que o homem cria ou dá significado, tudo o que constitui sua memória, o que lhe é imposto e também o que ele espera. Desse modo, meio-ambiente e cultura estão de tal forma imbricados, que a atividade turística não poderá produzir indicadores de sustentabi-lidade sem a compreensão de que, ao criar espaços de diálogo com a natureza, neces-sariamente os criará com a cultura, pois o turismo necessita do espaço geográfico, do ambiente entendido dessa forma mais am-pla. Turistas buscam paisagens, cultura, patrimônio histórico, tudo que faz parte dos ambientes, dos lugares e territórios e de que essa atividade se apropria. É um tipo de consumo do espaço (natureza), portanto fazer turismo significa viver a própria na-tureza. Mesmo protegendo-a, é sempre uma atividade de risco que implica (in) susten-tabilidade ou permanente controle das polí-ticas territoriais ou ambientais. Cultura e desenvolvimento A conferência Geral da UNESCO, logo após o dramático atentado de 11 de setem-bro de 2001 formata a “Declaração Univer-sal sobre a Diversidade Cultural”. O docu-mento ratifica o esforço dos países, na cons-trução de um dialogo intercultural, capaz de contribuir para a cultura de paz entre os povos, considerando a diversidade cultural, patrimônio comum da humanidade. Identi-dade, diversidade, criatividade, solidarie-dade são as palavras chaves dos novos tempos, presentes nos discursos internacio-nais, nacionais e locais, em contextos políti-cos, educativos, econômicos, jurídicos ou sociais. Ao mesmo tempo, agências de desenvol-vimento, como o Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID passam a priorizar o financiamento de projetos, pela capacida-de de mobilização do capital social e da dinâmica cultural, específicos das populaç-ões, às quais os projetos se aplicam. Ao se levar em conta a diversidade cultural, abo-le- se a concepção hierárquica do desenvol-vimento, dando-se voz a populações que até então não constituíam parte integrante deste “capital social”. Vale aqui conceituar capital social a partir da visão de Pierre Bourdieu, ou seja, “um atributo individual e coletivo de distinção e, com isso, de domí-nio dos membros das categorias privilegia-das”. O capital social, segundo o sociólogo francês, se apóia no capital econômico (na segurança material), no capital cultural (no manejo do idioma) e no capital social (na constituição de relações). Esses capitais convertem-se, por sua vez, em capital simbólico, instrumento maior da garantia de sobrevivência dos discursos dominantes. Em 1999, em Paris, o Fórum “Desenvol-vimento e Cultura”, organizado pelo BID, traz novos significados a essas expressões. A cultura passa a ser percebida como ma-triz dinâmica das formas de ser, estar, rela-cionar- se e perceber o mundo. Deste modo, desenvolvimento significa pouco, se o redu-zirmos seus significados a meras represen-tações de benefícios infra-estruturais ofere-cidos às comunidades (saneamento, estra-das, urbanizações etc.), mas de forma cres-cente ele está associado às reações e inter-venções das pessoas atingidas por estes benefícios. Desenvolvimento, portanto, não significa unicamente geração de riqueza ou aumento do Produto Interno Bruto (PIB) dos países, embora o crescimento e a distri-buição menos desigual da riqueza material sejam decisivos para a qualidade de vida dos indivíduos. Como se vê, desenvolvimen-to não se confunde com “desenvolvimentis-mo”, tônica da América Latina dos anos 50 Luzia Neide Coriolano y Claudia Leitão 475 PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 6(3). 2008 ISSN 1695-7121 e 60, presente no projeto militar brasileiro resultante do golpe de 1964. Se os significados de Desenvolvimento submetem-se ao reducionismo da Ciência Econômica, no campo da Antropologia, os significados de Cultura também são redu-zidos. Os estudos da “cultura”, assim como os de “desenvolvimento” fixaram e “conge-laram” conteúdos e conceitos, criaram fal-sas oposições ao invés de se abrirem para novas percepções das experiências huma-nas. Ao reconhecermos a natureza fluida da realidade e o distanciamento cada vez mais desconcertante entre as abstrações teóricas e as experiências humanas, no século XX, não queremos aqui defender o pensamento anárquico ou desestruturado para o século XXI. Pelo contrário, necessitamos rever mentalidade categórica e reducionista para que possamos identificar princípios gerado-res e estruturadores, externos a nós. Para compreendermos a complexa teia dos pro-cessos sociais, especialmente os de mais larga escala, necessitamos considerar a existência de interesses, instituições, agên-cias e atores dos diversos campos sociais (Knutsson in Arizpe: 2001,140). Essas re-des, sobre as quais se constroem as relações entre Cultura e Desenvolvimento, possuem especial complexidade no Brasil, país onde a fusão do arcaico e do moderno invalidam categorias sociológicas. É o caso da catego-ria “campo” de Pierre Bourdieu, a qual bus-ca definir áreas de interesse profissional. No Brasil, os “campos” se sobrepõem, os indivíduos alternam papéis, vivem e convi-vem em diversas “constelações” que se te-rritorializam e se desterritorializam, ao sabor de interesses, valores, crenças, hábi-tos e éticas. Ao tratarmos historicamente o desenvolvimento pela matriz econômica, subestimamos os papéis da cultura, en-quanto espaço da produção de mitos, símbo-los e metáforas, capaz de produzir novas categorias que, por sua vez, desempenhas-sem papel estratégico para a própria res-significação do desenvolvimento. “É preciso unir a memória de nossa cul-tura com a intuição de nossas ciências mais avançadas. Precisamos juntar a ciência da nossa modernidade mais moderna com o saber tradicional” (Rocha Pitta: 2005, 62). A advertência de Gilbert Durand poderia simbolizar a chave para novas conexões entre Cultura e Desenvolvimento. No en-tanto, as reflexões do antropólogo francês não encontraram acolhimento digno de nota no pensamento ocidental, especial-mente nas décadas em que os processos de globalização transformavam a criação, a transmissão, a apropriação e a interpretaç-ão dos bens simbólicos. Na nova “paisagem cultural”, de in-tercâmbio intenso entre pessoas que criam, se apropriam e dão significado aos bens culturais, nosso olhar limitou-se à mera descrição dos fatos, mostrando-se incapaz de produzir exegese sobre os diversos mundos e suas narrativas. Não construí-mos, como desejava Durand, um novo mo-delo mental capaz de aproximar e fundir o moderno e o tradicional. A incapacidade, por sua vez produziu o colapso, um “beco sem saída” para o pensamento ocidental, simbolizado pelas narrativas apocalípticas sobre o “Fim da História”. Afinal, o desen-volvimento do homem seria um mito? O discurso da evolução do homem do estágio de barbárie à civilização seria insustentá-vel? Se não conduzimos a História, acabe-mos com ela, disseram muitos, ou brademos o nosso desapontamento diante de nossas tentativas de explicar os fatos. A utopia da sustentabilidade no turismo A idéia de sustentabilidade surgiu em 1983, na Comissão Mundial do Meio Am-biente e Desenvolvimento – Comissão Brundtland - CMMAD/ONU – com o relató-rio Nosso Futuro Comum – apresentando os princípios: Equidade social: direito de cada um (de todos) se inserir no processo de desenvolvimento, Eficiência econômica: gestão dos recursos econômicos e financei-ros para garantir o funcionamento eficiente da sociedade e Prudência ecológica: a racio-nalização do consumo, usos de tecnologias limpas, definição de regras para a proteção ambiental. Portanto, há mais de duas déca-das, se discute o tema, levantando algumas preocupações em relação à natureza e so-ciedade. Sustentabilidade significa política e es-tratégia de desenvolvimento econômico, social e cultural contínuos, sem prejuízo do ambiente (inclusive dos recursos naturais) e do homem. Desse desenvolvimento, de-pende a continuidade da vida, da atividade 476 Turismo, cultura e desenvolvimento... PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 6(3). 2008 ISSN 1695-7121 humana, da capacidade dos animais e das plantas de se reproduzirem ao longo do tempo. Sustentabilidade e capitalismo est-ão sempre em contradição, mas, tratados como pensamento complexo, podem abrir caminhos para a construção de um modelo cuja matriz permita não a oposição mas ação dinâmica entre as oposições. Conside-remos, portanto, sustentabilidade um con-ceito complexo, no sentido em que abriga a objetividade que não deve excluir, de sua análise, o espírito humano, o sujeito indi-vidual, a cultura e a sociedade. Buscar va-riáveis para qualificar a sustentabilidade de um fenômeno significa criar consensos mas também pressupõe o antagonismo dos conflitos presentes nas diversas formas de o homem ser e estar no mundo. Neste sentido, as variáveis e os próprios significados de (in)sustentabilidade são naturalmente abertos e passíveis a flexibi-lidades, adaptações, pois este conhecimento é fruto de uma cultura dada, a qual, por sua vez, alimenta-se do repertório de noç-ões, crenças, linguagens etc. Por isso, cate-gorizar o fenômeno de (in)sustentável sig-nifica, antes construir um pensamento ca-paz de detectar as falhas, as lacunas, as contradições de todas as tentativas de re-dução da própria categoria (in) sustentabi-lidade e sua impotência diante das tentati-vas de generalização e definição de leis gerais acerca dos fenômenos sociais. Dessa forma, algo é sustentável ou in-sustentável pela compreensão, a priori, de que o objeto pensado (no caso, o fenômeno turístico) possui uma relativa autonomia, não sendo necessariamente determinado por forças específicas (no caso, os modos de produção capitalista). Desta forma, mitos e ideologias habitam os discursos e não mais se excluem, ou seja, para compreendermos as repercussões da (in)sustentabilidade do fenômeno jurídico necessitamos rever a estruturação do pensamento, da capacidade de pensar. Necessitamos ir além da racio-nalização que escraviza os objetos estuda-dos buscando encerrá-los em sistema lógico e coerente. Enfim, só avançamos na nova estrutura de pensamento, se aliarmos diversas com-petências relativas ao ato de conhecer. No caso da (in)sustentabilidade do fenômeno turístico, urge que acrescentemos novos olhares e contribuições de outros campos do conhecimento humano. Pela própria cons-tituição, o fenômeno se alimenta do con-hecimento racional-empírico, associado à esfera simbólico-mítico-mágica, ou seja, no turismo é especialmente necessária a com-preensão da dificuldade de permanecermos em conceitos claros, distintos, fáceis. Em face da constatação, podemos convocar os protagonistas do campo turístico a rever mentalidades, perceber que, tendo ou não status de ciência, não existem ciências pu-ras, e políticas públicas para o turismo são menos o fruto de pesquisas quantitativas que de bom senso capaz de superar precon-ceitos e visões maniqueístas da vida social. Aí está o desafio aos governantes, empresá-rios, planejadores, investidores, e, espe-cialmente, as comunidades receptoras. A "Carta da Terra" - documento da UNESCO - (2000) é uma tentativa de com-plementar a Declaração Universal dos Di-reitos Humanos, agregando a dimensão planetária, partindo do princípio de que não adianta garantir os direitos humanos, se o planeta continuar em processo de de-vastação. (a questão é que estes direitos humanos não foram garantidos a todos) O grande desafio é a defesa do homem, de seu trabalho, de sua dignidade, da extinção das desigualdades sociais e o da conservação do ambiente onde se vive. O documento afirma que humanidade é parte de vasto universo em evolução. Que a Terra, nosso lar, está viva com uma comunidade de vida única. As forças da natureza fazem da existência uma aventura exigente e incerta, mas a Terra providenciou as condições essenciais para a evolução da vida. A capacidade de recuperação da comunidade da vida e o bem-estar da humanidade dependem da preservação da biosfera saudável, com to-dos os sistemas ecológicos, uma rica varie-dade de plantas e animais, solos férteis, águas puras e ar limpo. O meio ambiente global, com seus recursos finitos, é preocu-pação comum de todas as pessoas. A pro-teção da vitalidade, diversidade e beleza da Terra é um dever sagrado. E erradicar a pobreza é imperativo ético, social, econômi-co e ambiental. A “Agenda 21”, transformada em Pro-grama, procura integrar as atividades rela-tivas ao desenvolvimento e meio ambiente, ou seja, quer realizar o desenvolvimento sustentável, evitando o esgotamento da Luzia Neide Coriolano y Claudia Leitão 477 PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 6(3). 2008 ISSN 1695-7121 natureza, e redirecionar as políticas. Al-guns empresários, que entenderam os ques-tionamentos, buscam agregar valor am-biental, cultural e social aos produtos, utili-zando tecnologias brandas e políticas para diminuir impactos negativos, assumindo responsabilidade social, embora muitos outros permaneçam utilizando apenas a propaganda e o marketing da maquiagem verde para tentar passar imagem positiva. Responsabilidade Social é o compromis-so contínuo da empresa em adotar a ética do desenvolvimento social, sustentada so-bre o tripé da qualidade de vida, inclusão social e respeito ao homem, à natureza e às gerações futuras. Nela, estão presentes a Responsabilidade Ambiental e a Responsa-bilidade Cultural. A Responsabilidade Am-biental não se limita ao compromisso volta-do para a natureza (flora, fauna, ar e água), mas cada vez mais se funde com a Respon-sabilidade Cultural, no que se refere à compreensão estratégica dos recursos cul-turais, históricos e sociais para o desenvol-vimento humano. Não se deve poluir a praia, o ambiente, assim como não se pode depredar o patrimônio histórico, os modos de vida e as culturas. Em alguns empreendimentos turísticos, podemos encontrar exemplos indicativos de possibilidade de mudanças sociais diferen-tes dos modelos vigentes. Algumas iniciati-vas, em Fortaleza, capital do Ceará e quar-ta maior cidade do Brasil, indicam tendên-cias animadoras para o exercício da respon-sabilidade social, caminhando na busca de iniciativas turísticas mais solidárias: • Combatendo e denunciando o trabalho infantil nos empreendimentos; • Capacitando trabalhadores de bares e restaurantes populares localizados no entorno dos grandes hotéis e resorts; • Patrocinando empreendimentos cultu-rais e de lazer popular; • Combatendo a prática de esportes inse-guros, oferecendo condição para aqueles passíveis de controle de segurança; • Combatendo a displicência e a desones-tidade praticada contra o turista; • Ajudando a organização comunitária na luta por seus direitos e concretização da cidadania; • Apoiando a realização de estudos, pes-quisas e programas com objetivos de de-senvolvimento sustentável, de melhoria de ambientes, de recuperação ambiental; • Discutindo a possibilidade de geração de oportunidades para os considerados ex-cluídos do trabalho, da chamada cadeia produtiva do turismo; • Tornando a qualidade de vida mais viá-vel nas cidades, com políticas alternati-vas de habitação, de educação e de pe-quenos negócios; • Participando da implementação local da Agenda 21 seguindo os princípios de sustentabilidade estabelecidos na Confe-rencia Rio/92. De algoz a protagonista de ações afirma-tivas, na proteção das cidades, paisagens, serras, litorais, sertões, enfim, de grande variedade de geossistemas ou espaços ge-ográficos, os programas governamentais começam timidamente a criar políticas al-ternativas de turismo voltado à diminuição das desigualdades regionais, disparidades sociais, à conservação ambiental, à manu-tenção de lugares saudáveis. Dessa for-ma, vão integrando novos elementos para a (re)definição de variáveis relativas à reflex-ão acerca da (in)sustentabilidade das ações do turismo, os quais passam a observar ou a refletir sobre: • Um novo paradigma para o desenvolvi-mento; • Uma sociedade mais justa e solidária; • As práticas do consumo; • Aumento da consciência ecológica, da cidadania, da educação ambiental dos visitantes e visitados; • A biodiversidade e diversidade cultural não como recursos produtivo, mas como patrimônios da humanidade; • As formas compartilhadas de planejar e gerir com base local; • A formação profissional voltada para o resgate da afetividade e da visão humanística; • O comportamento ético das operadores e agências especializadas – comprometi-das cada vez mais com a prática turísti-ca responsável; • A construção de sistemas de promoção e marketing turístico adequada aos am-bientes frágeis utilizados para o ecotu-rismo; • O apoio às pequenas e médias empresas; • A Proteção / conservação dos recursos naturais / culturais; 478 Turismo, cultura e desenvolvimento... PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 6(3). 2008 ISSN 1695-7121 • O investimento em pesquisas cientificas, voltadas ao turismo. Tais iniciativas são mais ou menos efi-cazes em função das respostas culturais das sociedades nas quais são experimentadas. No entanto, mantêm-se enquanto utopias, como possibilidade, sonho e desejo de nos conhecermos mais, pelo conhecimento e reconhecimento dos limites do homem. Muitos movimentos socio-cultural-ambientais vêm propondo programas e ações neste sentido, como é o caso da coa-lizão globalizada de Organizações Não Go-vernamentais, pautada nos valores centrais da dignidade humana, base de quaisquer projetos ditos sustentáveis. Em 1999, as organizações realizaram protestos ao mode-lo de consumo insustentável da sociedade capitalista, na reunião da Organização Mundial do Comércio, em Seattle. A “Coa-lizão de Seattle”, como foi chamado o mo-vimento (paralelo ao da Organização Mun-dial do Comércio), é a luta por outra globa-lização. Trata-se de movimento global pela justiça social, pela busca da sustentabilida-de social que vem realizando os Fóruns Sociais Mundiais, em Porto Alegre, Brasil. Todos os movimentos e encontros sistemá-ticos vêm estimulando o surgimento de contra-propostas políticas em busca de uma sociedade sustentável, para que se possa pensar na sustentabilidade do desenvolvi-mento, particularmente, por meio do fenô-meno turístico. Os movimentos associam-se na busca de novas reflexões acerca das nos-sas relações com o mundo, e para conosco, que definem papéis, espacialidades, hierar-quias e formas de dominação. Que essas reflexões perdurem, pois são especialmente necessárias aos destinos da América Lati-na, historicamente constituída de ex-colônias ainda hoje periféricas aos proces-sos de mundialização econômica e, por isso, ciosas de novas alternativas para o desen-volvimento dod povos. Bibliografia AGENDA 21. 1992 Diário Oficial da União em 02/06/1992. Arizpe, Lourdes (Org.) 2004 As dimensões culturais da transfor-mação global: uma abordagem antro-pológica. Brasília: UNESCO. Boff, Leonardo 1999 Saber Cuidar. Ética do Humano – Compaixão pela Terra. Petrópolis: Vo-zes. Bourdieu, Pierre 1979 La distinction: critique sociale du jugement. Paris, Les éditions de minuit. Capra, Fritjof 2003 As Conexões Ocultas: Ciência para uma Vida Sustentável. São Paulo. Carta da Terra 2000 Rio de Janeiro: Ibase - Instituto Brasi-leiro de Análises Sociais e Econômicas. Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento 1991 Nosso Futuro Comum. Rio de Janeiro: Ed Fundação Getulio Vargas. Coriolano, Luzia Neide M. T. 1998 Do local ao global: O Turismo litorâ-neo cearense. Campinas-SP: Papirus. 2003 Turismo de inclusão e Desenvolvi-mento Local. Fortaleza: FUNECE. Coriolano, Luzia Neide M. T, Lima, Luiz Cruz (orgs.) 2003a Turismo Comunitário e Responsabi-lidade Socioambiental. Fortaleza: EDUECE. 2003b Turismo e desenvolvimento social sustentável. Fortaleza: EDUECE. 2004 Turismo, territórios e sujeitos nos discursos e práticas políticas. Tese de doutorado. Aracaju: UFS / NPGEO. 295p. Coriolano, Luzia Neide M.T, e SILVA, Syl-vio Bandeira de M. e. 2005 Turismo e Geografia: reflexões críti-cas. Fortaleza: EDUECE. Cunha Filho, Francisco Humberto 2006 Cultura e Democracia na Constituiç-ão Federal de 1988. Rio de Janeiro, Edi-tora Letra Legal. Dowbor, Ladislau 1998 A Reprodução Social: proposta para uma gestão descentralizada. Petrópolis: Vozes. Luzia Neide Coriolano y Claudia Leitão 479 PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 6(3). 2008 ISSN 1695-7121 Dupas, Gilberto 1999 Economia global e exclusão social: pobreza, emprego, estado e o futuro do capitalismo. São Paulo: Paz e Terra. Hermet, Guy 2002 Cultura e Desenvolvimento. Petrópo-lis, RJ: Vozes. Leitão, Cláudia (Org.) 2003 Gestão Cultural: significados e dile-mas na contemporaneidade. Fortaleza, Banco do Nordeste. 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Recibido: 13 de septiembre de 2007 Reenviado: 05 de marzo de 2008 Aceptado: 20 de abril de 2008 Sometido a evaluación por pares anónimos |
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