© PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural. ISSN 1695-7121
Revista de Turismo y Patrimonio Cultural
PAS S
www.pasosonline.org
Vol. 11 N.º 2 págs. 343-350. 2013
Orgulho ou vergonha? O Mané do Rosário:
manifestação do patrimônio cultural intangível de Poxim,
Coruripe, AL, Brasil
Priscylla Silva*
Universidade Federal de Alagoas (Brasil)
Resumo: Este artigo pretende discutir a relação de uma manifestação cultural com a comunidade na qual
ela se originou. É resultado de um projeto de pesquisa da Universidade Federal de Alagoas intitulado
“Levantamento do patrimônio cultural imaterial em Penedo e Coruripe – Alagoas.” Realizado em 2007
a 2008, tal projeto como o próprio título explica, teve por objetivo identificar algumas das manifestações
do patrimônio cultural imaterial nestes municípios. Dentre os objetos de estudo que o formaram, teve-se
o Mané do Rosário, folguedo autêntico do povoado Poxim (Coruripe, AL). Assim, o objetivo deste artigo
é identificar as relações estabelecidas entre a manifestação cultural “O Mané do Rosário” e a própria
população de Poxim.
Palavras chave: Patrimônio cultural. Cultura popular. Pertencimento. Manifestações culturais. (Des)
valorização.
Title: Prime or shame? The “Mané do Rosário”: expression of intangible cultural heritage of
Poxim ,Coruripe-AL, Brazil.
Abstract: This paper discusses the relationship between a cultural manifestation and its own community.
It’s resulted of a research project from Federal University of Alagoas, named “Survey intangible cultural
heritage of Penedo and Coruripe - Alagoas.” The project was realized from 2007 until 2008, and as its title
explains itself, had to order to identify some of the intangible cultural manifestation in these municipa-lity.
One of the study objects of the project was the “Mané do Rosário,” an authentic folklore party from
Poxim village (Coruripe- AL). Then, the order of this paper it’s to identify the relationships established
between the cultural manifestation the “Mané do Rosário” and the Poxim population itself.
Keywords: Cultural heritage. Popular culture. Belonging. Cultural manifestation. Appreciation and
depreciation.
1. Introdução
As manifestações do patrimônio cultural ima-terial
refletem o modo de viver e de celebrar de
determinados grupos sociais, podendo contribuir
para a formação de uma identidade cultural
coletiva.
A valorização de um folguedo depende primei-ramente
do meio que o pratica e está relacionada
ao conhecimento sobre a origem e a compreen-são
de seu significado. As próprias comunidades
que detêm a prática regular de bens culturais
de natureza intangível, através do (re)conheci-mento
de suas singularidades, podem natural-
* Graduada em Turismo pela Universidade Federal de Alagoas (Brasil).
E-mail: priscylla.tur@gmail.com
PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 11(2). 2013 ISSN 1695-7121
344 Orgulho ou vergonha? …
mente exercer um papel eficaz para o resguardo
de suas heranças culturais.
Em tempos em que os padrões globais são
maximizados, é sentida a carência de ações que
visem à valorização de expressões características
da cultura popular de pequenos grupos.
O Mané do Rosário é uma manifestação cul-tural
autêntica de Poxim (Coruripe, AL/ Brasil),
a motivação por estudá-lo se deu, partindo da
premissa de que há um distanciamento da popu-lação
Poxiense com sua própria celebração popu-lar.
Desconsiderando sua autenticidade e valor,
as gerações mais novas se distanciam cada vez
mais dessa cultura.
Por conseguinte, o objetivo deste artigo é iden-tificar
as relações estabelecidas entre a mani-festação
cultural e seu meio detentor. Por isso
o questionamento: orgulho ou vergonha? Sabe-se
que as representações do patrimônio cultural
podem contribuir com o sentimento de pertença,
favorecendo a formação de uma identidade cul-tural,
de uma memória coletiva.
O orgulho individual de sentir-se parte de
um grupo cultural formado por práticas e con-textos
peculiares, torna a comunidade detentora
em um lugar único, tanto aos olhos de seus
moradores como aos de seus visitantes.
Por outro lado, tendo surgido em um momento
passado, as manifestações do patrimônio cultural
podem já não representar qualquer vínculo com
sua comunidade. O tipo de relação estabelecida,
a maneira como a própria população compreende
e mesmo o conhecimento que esta possui a res-peito
da essência de uma manifestação cultural,
é o que vai determinar sua valorização ou não,
enquanto parte indissociável da cultura local.
Esta investigação foi baseada em entrevis-tas
e observações. Buscamos primeiramente
um levantamento de referências bibliográficas
sobre o folguedo e percebemos que os registros
são escassos, o que dificultou a compreensão de
seu histórico. Assim, foi empregada como ferra-menta
metodológica a história oral, que além
de permitir uma visão atual, possibilita ainda o
levantamento de informações relacionadas à sua
origem e histórico, estes essenciais à compreen-são
de qualquer estudo.
Com uma abordagem metodológica pura-mente
qualitativa, foi empregado como método
entrevistas semiestruturadas, direcionadas aos
moradores da comunidade local, aos brincantes
da manifestação cultural e a um representante
do poder público municipal relativo ao órgão de
cultura.
O roteiro para as entrevistas foi elaborado
visando obter o entendimento e a opinião que
os entrevistados possuem a respeito do folguedo.
Perguntou-se sobre o surgimento do Mané do
Rosário, estimulando-os a descrever caracterís-ticas
como as vestimentas e o próprio jeito de
se apresentarem. Queríamos esclarecer, quem
eram os grupos sociais que participavam do
folguedo e, em que momentos as apresentações
ocorriam. Além da compreensão do histórico, as
conversas objetivaram elucidar o significado que
o Mané do Rosário tem, para cada entrevistado
envolvido.
Os sujeitos que colaboraram enquanto entre-vistados
forma escolhidos por terem vínculos
com a manifestação cultural e /ou com lugar
onde se originou. Desse modo, em 29 de outubro
de 2007, foi realizada em Poxim, a entrevista
com a mestra do folguedo, Maria Benedita dos
Santos.
Houve tentativas de conversas com dois
antigos brincantes do folguedo, mas estes não
souberam ou não quiseram falar mais profunda-mente
a respeito do Mané do Rosário. Destaca-ram
somente o longo período em que participam,
declarando que não saberiam opinar ou informar
sobre a origem e o significado do folguedo.
Representando a população local, foram esco-lhidos
um senhor e uma senhora, de 71 e 82
anos respectivamente, ambos residem em Poxim
desde que nasceram. Além disso, a motivação
por escolhê-los se deu pelo fato de o senhor
possuir uma propriedade rural, cuja denomina-ção
faz uma referência ao homem responsável
pela origem do Mané do Rosário. Enquanto a
senhora, ao longo de sua vida, reside nas inter-mediações
da Igreja de São José, cenário onde
historicamente o folguedo acontece. Com estes
as entrevistas aconteceram em 25 de novembro
de 2007.
Por ultimo, foi realizada a entrevista com a
secretária de Cultura do município de Coruripe,
Tereza Beltrão Siqueira Wanderley, em 13 de
fevereiro de 2008.
A observação foi outro método utilizado neste
estudo. Desde que o Mané do Rosário passou
a ser objeto de investigação, observamos suas
apresentações anuais pelas ruas de Poxim,
durante o tradicional evento onde historica-mente
a manifestação cultural acontece (no perí-odo
de 2008 a 2012). A atuação do folguedo foi
analisada, colhendo-se registros fotográficos e
características do grupo de brincantes.
2. Um pouco da história de Poxim
O povoado Poxim está situado no litoral sul
alagoano, a 65 quilômetros de Maceió e a 22 qui-lômetros
da sede do município de Coruripe. Den-
PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 11(2). 2013 ISSN 1695-7121
Priscylla Maria Ferreira da Silva 345
tre seus recursos naturais, destaca-se o rio Poxim,
este que teve significativa importância para o
povoamento da localidade. A palavra Poxim, de
origem tupi guarani (Y- Po - xim), significa “rio
de águas escuras” (Lemos, 1999a). O povoado foi
batizado com o mesmo nome do rio pelo fato de
ter se desenvolvido em sua margem esquerda.
Segundo Lemos (1999a: 173): “Poxim surgiu
como um pequeno vilarejo por volta de 1600
e tornou-se rapidamente ponto de apoio para
os viajantes com destino às cidades de Penedo
e Salvador.” Ainda de acordo com o autor, as
características físicas do povoado, os recursos
naturais disponíveis, a fertilidade do solo, den-tre
outros, foram fatores determinantes para o
rápido povoamento do lugar.
O povoado foi se formando e paralelo ao cres-cimento
da população, foram surgindo condições
estruturais urbanas, comércio, inclusive enge-nhos
de açúcar. A Igreja de São José, de 1762,
data provável de sua última reforma, por suas
características expressivas enquanto patrimô-nio
edificado é um registro de Poxim no século
XVIII.
A história revela a ascensão, até a formação
legal de município e paróquia:
“Poxim se torna município por ordem do governo
de Pernambuco em 08 de julho de 1799. Só em
02 de agosto de 1801 o ouvidor, Manoel Joaquim
de Matos Castelo Branco instala, oficialmente, a
Vila do Poxim, construindo um pelourinho a uns
40 metros da Igreja”. (Lemos, 1999b: 77)
A partir de tal fato, Poxim foi oficialmente
nomeado Vila Real de São José do Poxim do Sul.
Durante toda essa trajetória, Coruripe cons-tituía-
se em um pequeno arruado pertence a
Poxim, porém, com o passar do tempo a situa-ção
se modificou. O pequeno arruado cresceu,
dotando-se de boa infraestrutura ao tempo
em que Poxim vivia uma época de estagnação
de seu desenvolvimento. Tanto que, “em 1866
o Poxim deixa de ser cidade e paróquia e fica
dependendo de Coruripe que cresceu mais que o
Poxim” (Lemos,1999b: 79).
A partir de tais circunstâncias, o povoado se
desmembrou de Coruripe tendo sido reanexado
algum tempo após, consolidando-se como distrito
Coruripense.
Não há registros de qualquer tipo de mani-festação
popular que objetivasse a retomada de
Poxim enquanto cidade. Sabe-se apenas, segundo
os comentários dos residentes mais velhos, que o
povoado vivenciou uma fase de crescimento e/ou
desenvolvimento. No entanto, Coruripe teria se
sobressaído com relação a Poxim com um comér-cio,
infraestrutura e demais características que
foram responsáveis pela transferência da sede
do município.
3. O surgimento do Mané do Rosário
O folguedo, desde sua origem, é tradicional-mente
celebrado nas ruas do povoado durante as
festividades religiosas comemorativas ao padro-eiro
católico São José. Intimamente relacionado
ao meio religioso, a manifestação teria surgido
espontaneamente a partir do momento em que
um homem, conhecido por Manoel, popular-mente
chamado por Mané, realizou o pagamento
de uma promessa, onde teria saído de sua
residência até a Igreja dançando com rosários
pendurados no pescoço. O que explica a deno-minação
“O Mané do Rosário.” Como relatam os
entrevistados:
“Naquele tempo, o zabumba tocava na porta da
igreja durante a festa, e os homens gostavam de
“tá” dançando na porta da igreja. E esse cida-dão
vinha, só era quando vinha pra rua. Ele
morava numa casinha de palha, de caibo no
chão. Quando ele vinha de lá pra cá, pra dan-çar
no zabumba, ele vinha todo cheio de rosário,
todo enfeitado, com uma chibata feita de trança
de cebola, de bananeira quando não tinha [...] E
vinha pra rua, dançar na porta da igreja, dan-çar
o Mané do Rosário.” (Informante da popu-lação
local)
“Ninguém sabia quem era este homem, e ele
carregava nele um rosário. Que quando foi um...
muitos anos já “né”, aí perguntaram a ele: quem
era ele. Ele disse: eu sou o Manoel do Rosário.
Aí ele se pintava assim todinho, todinho, [...] e a
cara toda pintada que era pra ninguém reconhe-cer
ele.” (Mestra do folguedo)
“Só vinha pra rua dançar na porta da igreja
durante a festa. Aí o povo apelidou de Mané do
Rosário, porque ele vivia arrodeado de rosário.
[...] Mas o nome dele era Mané Félix.” (Infor-mante
da população local)
Assim, “O Mané do Rosário” despertou o
interesse e a curiosidade da população da época.
Apresentando-se de forma que não pudesse ser
reconhecido, disfarçava-se através de pinturas
escuras que lhe cobriam totalmente o corpo.
Usava ainda um chocalho pendurado na cin-tura
e um chapéu sobre a cabeça, além de uma
espécie de corda vegetal, supostamente utilizada
para afastar curiosos que tentassem algum tipo
de aproximação indevida, garantindo dessa
forma a preservação de seu disfarce, sua verda-deira
identidade.
Conta-se que este homem teria realizado este
ritual sozinho, por cerca de dois anos consecu-
PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 11(2). 2013 ISSN 1695-7121
346 Orgulho ou vergonha? …
tivos, chamando a atenção dos participantes da
festa, o mesmo finalizava sua “apresentação”
ao som de bandas de pífano que animavam as
comemorações nas intermediações da Igreja.
Com o passar do tempo, homens da população
local, de forma programada ou não, passaram a
acompanhar o tal Mané do Rosário, originando
o folguedo.
Vestidos disfarçadamente, com longos e roda-dos
saiões femininos, blusas de manga comprida,
usavam também chapéus de palha, toalhas
penduradas sobre os braços e tinham os rostos
cobertos por tecidos parcialmente transparentes.
Já acompanhados ao som de bandas de pífano,
saíam dançando em uma sintonia espontânea,
mas envolvente. Enquanto acompanhavam o
homem “Mané do Rosário”, formavam a mani-festação
cultural O Mané do Rosário, e assim
percorriam as ruas do povoado, tendo sempre
como destino final a Igreja de São José.
“Quando depois os outros homens, vendo isso, se
trajou com roupa de mulher, ele ficou como “bobo
de guerreiro”, assim. E o pessoal ia dançando
com uma toalha branca no braço, aquela rou-pona
de mulher que naquele tempo as mulheres
usavam aquelas roupas “grande”. E os homens,
eu me “alembro”, botava o pano ralinho, assim
na vista, no rosto, e dançando, aí pronto, criou
o Mané do Rosário assim. E ele era dançando
na frente do dançarino, espantando os “menino”
com aquela chibata.” (Informante da população
local)
“[...] é um folguedo que não tem uma coreo-grafia
característica, não tem uma coreografia
ensaiada. Ele é um folguedo, é... dançado atra-vés
de uma banda de pífano, mas que retrata
muito bem, não é? Uma história de um povo
que é devoto a São José.” (Informante do poder
público municipal)
A partir do envolvimento de parte da comu-nidade
local, a manifestação ganhou apoio popu-lar,
passando de um estágio espontâneo para o
programado. Crianças e jovens acompanhavam
as apresentações do folguedo, exercendo um
lúdico papel. Tentavam se aproximar dos brin-cantes,
provavelmente com o intuito de “desmas-cara-
los”, mas o personagem principal não per-mitia,
correndo atrás dos que os “ameaçavam”,
afastando-os com sua chibata.
“Os meninos acompanhavam, então ele voltava
e dava uma carreira nos meninos. Aí vinha, os
meninos “vinha” de novo, aí voltava dava uma
carreira. Mas aquilo era tudo dependente já
da brincadeira, né? Já fazia parte, os meninos
andarem atrás. Já fazia parte.” (Informante da
população local)
Sendo relevante para a comunidade, o fol-guedo
passou a ser uma marca da religiosidade
e um traço cultural intimamente relacionado às
festividades católicas anuais, ao padroeiro São
José.
4. Patrimônio cultural intangível: conceitos
e possibilidades
Para identificar a relação entre o Mané do
Rosário e a população de Poxim, faz-se necessá-rio
a exposição de algumas considerações sobre
patrimônio cultural, focando-nos nas caracterís-ticas
e conceitos dos bens de natureza intangível.
Referindo-se à origem etimológica da pala-vra
patrimônio, Ribeiro (2010: 20) ressalta: “que
o conceito que conhecemos atualmente advém
dos romanos, que definiram patrimonium como
herança, algo herdado, tendo etimologicamente
o termo patere, ou herança paterna.”
A noção de patrimônio cultural, por muito
tempo se restringiu aos bens tangíveis. Somente
monumentos que se destacavam por suas carac-terísticas
arquitetônicas, por representarem um
momento histórico relevante, ou mesmo como
símbolo de poder para determinados grupos
sociais, eram considerados como patrimônio cul-tural.
Dado o reconhecimento e a valorização dos
bens patrimoniais, surgiram os mecanismos de
proteção que objetivavam a preservação, selecio-nando
templos religiosos, palácios, teatros, obras
de arte, e demais objetos ou edificações, que se
destacavam por suas expressivas características
históricas e arquitetônicas.
As destruições provocadas pela Segunda
Guerra Mundial, porém, foram de encontro a
todos os mecanismos de proteção já estabeleci-
Foto 1: Apresentação do folguedo em 2009.
PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 11(2). 2013 ISSN 1695-7121
Priscylla Maria Ferreira da Silva 347
dos. Com as ruínas de bens envolvidos em pro-gramas
de proteção, aos poucos as sociedades
ocidentais passaram a partilhar um pensamento
já comum entre os orientais. Compreendendo
que “mais relevante do que conservar um objeto
como testemunho de um processo histórico e cul-tural
passado, é preservar e transmitir o saber
que o produz, permitindo a vivência da tradição
no presente.” (Sant’Anna, 2003: 49)
A mesma autora ainda comenta que: “no
mundo oriental, os objetos jamais foram vistos
como os principais depositários da tradição cul-tural”
(Sant’Anna, 2003: 49). Assim, os processos
e práticas culturais traduzidos nas formas de
saber, fazer, e celebrar, conquistam espaço. Com
isso os mecanismos de proteção ao patrimônio
cultural, foram aos poucos envolvendo os bens
intangíveis, através de políticas e diretrizes de
salvaguarda, que basicamente se dão por meio
de inventários e publicações, e principalmente,
a partir da valorização do homem que detém o
saber e capacidade de transmiti-lo.
No Brasil, poetas do Modernismo foram pre-cursores
para a inclusão dos registros de aspec-tos
do patrimônio cultural imaterial brasileiro.
Oliven (2003: 78) comenta que em 1936, Mário
de Andrade propôs um projeto de lei em que os
falares, os cantos, as lendas, as magias, a medi-cina
e a culinária indígena fossem considerados
como patrimônio brasileiro. Mas o governo consi-derou
apenas o patrimônio material, com o con-sequente
tombamento de edificações e a criação
do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional) em 1937.
Somente no ano de 2000, através do decreto
3.551 é que se institui o Registro de Bens Cultu-rais
de Natureza Imaterial que constituem patri-mônio
cultural brasileiro, e com isso criou-se o
Programa Nacional de Patrimônio Imaterial.
Dessa forma, considera-se como patrimônio
cultural intangível:
“Todo o legado cultural de um povo, como suas
lendas, festas, folguedos, costumes, crenças,
manifestações artísticas, etc., tudo o que existe
como elemento essencial para o registro da
memória individual e coletiva, e que possa con-tribuir
com a formação do sentimento de per-tença
de uma comunidade.” (Macena, 2003: 63)
Já que os aspectos intangíveis são tidos como
parte integrante do patrimônio cultural brasi-leiro,
os mecanismos de proteção devem também
acolhê-los. A intangibilidade, porém, requer
formas de preservação que considerem que as
manifestações do patrimônio cultural imaterial,
por estarem ligadas às práticas espontâneas
e regulares, são fortemente influenciadas pelo
tempo e pelo meio.
A ideia de “congelamento,” sempre presente
quando se pensa em preservação do patrimônio
edificado, não pode ser destinada com o mesmo
grau, aos aspectos do patrimônio imaterial. O
próprio IPHAN contribui, ao destacar os proces-sos
de criação e recriação consequentes das trans-missões
das práticas e saberes entre gerações:
“O Patrimônio Imaterial é transmitido de
geração em geração e constantemente recriado
pelas comunidades e grupos em função de seu
ambiente, de sua interação com a natureza e de
sua história, gerando um sentimento de identi-dade
e continuidade, contribuindo assim para
promover o respeito à diversidade cultural e à
criatividade humana.” (IPHAN, 2012)
Essa constante (re)criação reflete a dificul-dade
de se preservar os bens intangíveis. Oli-ven
(2003: 79), remete à reflexão ao questionar:
“Como tratar aqueles que se consideram bens
imateriais? Desejamos que um ritual, uma vez
registrado, nunca mais se modifique?”
No caso do Mané do Rosário, por exemplo,
tem-se uma indumentária característica do fol-guedo.
E sendo assim, possíveis mudanças nes-sas
vestimentas, podem se caracterizar enquanto
consequência desse processo de recriação, inter-ligado
aos bens intangíveis. Mas até que ponto
essa tal recriação configuraria em descaracteri-zação
cultural? Características próprias de um
folguedo, não são as bases da autenticidade?
“A distinção entre bens materiais e bens imate-riais
não é pacífica. As propriedades químicas da
água benta e da água comum são as mesmas;
entretanto, a primeira água, ao contrário da
segunda, tem um poder sagrado, que lhe foi con-ferido
pela Igreja. Uma bandeira é um pedaço
de tecido, ao qual os habitantes de uma nação
atribuem um significado igualmente sagrado. A
comida é material, mas a culinária é imaterial.
Como separar ambas?” (Oliven, 2003: 79)
O posicionamento do autor possibilita a com-preensão
de que a valorização da intangibilidade
repassa também pela salvaguarda de bens mate-riais
que são necessários para a caracterização
de uma manifestação do patrimônio imaterial.
Somente a prática regular, desvinculada de
características originárias, levaria a uma padro-nização
dos aspectos culturais, por isso se con-sidera
que a obediência à materialidade, pode
interferir diretamente na preservação de carac-terísticas
do patrimônio cultural intangível.
Observando as definições de patrimônio cul-tural
intangível citadas, pode-se constatar que
PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 11(2). 2013 ISSN 1695-7121
348 Orgulho ou vergonha? …
expressões como a “formação do sentimento de
pertença” ou a “geração de uma identidade,”
estão presentes em ambos os conceitos e não
por acaso. A valorização de um folguedo, reco-nhecida
primeiramente pela comunidade que o
pratica, é consequência do conhecimento, e se
traduz em uma forma eficaz de se resguardá-lo,
através de laços invisíveis capazes de produzir
no homem um vínculo natural e constante com
suas próprias formas de viver, de celebrar.
5. O Mané do Rosário e sua relação com a
comunidade de Poxim: a fotografia regis-trada
Desde sua origem, por volta de 1762, de
acordo com o autor Lemos (2001), obviamente a
manifestação sofre as influências do tempo e do
meio. A preservação dos bens de natureza intan-gível
é uma das características que o difere do
patrimônio tangível.
Tendo surgido a partir de iniciativas popula-res,
o folguedo teria passado por um “estágio de
elitização” somente sendo praticado por homens
influentes da sociedade. Com o passar do tempo,
as mulheres também foram se inserindo.
Segundo a organização da manifestação cul-tural,
a participação nas apresentações é aberta
à comunidade geral, não havendo critérios para
a escolha dos brincantes. Além da tradicional
festividade católica anual, a manifestação faz
apresentações em eventos culturais em que o
grupo é convidado a participar.
O folguedo tem como mestra a Senhora Maria
Benedita dos Santos que declarou exercer a fun-ção
há mais de 30 anos, seguindo uma tradição
de seus familiares. Em seu discurso, é nítida a
preocupação com a carência do grupo, demos-trando
a esperança de conquistas, estas não
especificadas, mas provavelmente relacionadas
com vestimentas adequadas e melhoria das con-dições
para as apresentações do folguedo.
Desde o ano de 2006, a organizadora da mani-festação
recebeu oficialmente o título de mestra
do Mané do Rosário e foi incluída em uma polí-tica
de preservação fomentada pela Secretaria
do Estado da Cultura. A lei nº 6.513/2004 insti-tui
o Registro de Patrimônio Vivo do Estado de
Alagoas, (RPV-AL), e em parágrafo único de seu
artigo 1º, define:
“Será considerado como Patrimônio Vivo do
Estado de Alagoas, apto, na forma prevista
nesta Lei, a ser inscrito no RPV-AL, a pessoa
natural que detenha os conhecimentos ou as
técnicas necessárias para a produção e para a
preservação de aspectos da cultura tradicional
ou popular de uma comunidade estabelecida no
Estado de Alagoas”. (SECULT/AL, 2012)
O Artigo 90 da subseção da cultura, da lei
orgânica do município de Coruripe-AL diz que:
“O Município apoiará e incentivará a valorização
e a difusão das manifestações culturais, priori-tariamente,
as diretamente ligadas a historia
da cidade, à sua comunidade e aos seus bens.”
(Coruripe/AL, 1990)
No entanto, o apoio do poder público se
restringe a uma bolsa de incentivo, direito
decorrente da inscrição no RPV-AL. Sem des-considerar
a necessidade desse tipo de apoio, é
necessário entender que este não deve ser visto
como condição suficiente para garantir a ocorrên-cia
e principalmente a valorização do folguedo.
Por cinco anos consecutivos, foi possível
acompanhar e registrar por meio de fotografias
e diários de campo as apresentações do folguedo
pelas ruas de Poxim durante a festa de São José,
possibilitando constatar características do grupo
de brincantes, encontrando sentido em opiniões
expressadas pelos moradores locais.
A partir das análises dos discursos obtidos
com as entrevistas percebe-se que, no geral,
a visão da população autóctone é pessimista
quanto ao futuro do Mané do Rosário. Apesar de
haver certo interesse e reconhecimento de sua
relevância, os entrevistados relatam a ocorrência
de hábitos atuais que levam a uma descaracteri-zação
da manifestação, criticando negativamente
práticas, como a mudança nas vestimentas, na
própria dança e o consumo de bebidas alcoólicas
durante as apresentações. Outro item pontuado
foi o fato comum de os brincantes descobrirem os
rostos, o que faz com que o mistério natural que
envolve a celebração da manifestação cultural se
perca.
O que se percebe é uma lembrança positiva
com relação ao passado do folguedo que, no
entanto, já não pode ser vivenciado, e o que
é pior: sem qualquer perspectiva de futuras
mudanças, como relata um dos entrevistados:
“Agora que ele era uma maravilha de folclore.
Eram as mulheres tudo com roupas bonitas,
saias estampadas. Bem bonita! Uma toalha
branca, dobrada no braço, um pano na cabeça,
e o rosto tampado com um filó [...] saíam dan-çando,
muito bacana, tudo direitinha, não tinha
essa história de bebida, não tinha essa história
de bagunça [...] Era uma brincadeira muito
popular, já hoje não está. Ele “tá” todo diferente.
(Informante da população local)
Não era traje enfeitado como quem fosse uma
Baiana, não! Era um traje comum! Agora que
os homens vestidos de mulher com aquelas saias
PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 11(2). 2013 ISSN 1695-7121
Priscylla Maria Ferreira da Silva 349
“grande”, que as mulheres velhas tinham que
arrastavam no chão. (Informante da população
local)”
Para os entrevistados, as modificações rela-tadas
tornam-se inaceitáveis, configurando um
tempo de desrespeito e desvalorização da cul-tura.
Como fator determinante para isso, elenca-se
a falta de repasse de conhecimento sobre a
origem e o significado da manifestação cultural:
“Inventam de fazer uns trajes até como quem é
uma escola de samba lá do Rio, que não tem
nem um ensinamento, pra voltar a ser [...] como
foi criado [...] Tanto que o erro “tá” aí”. (Infor-mante
da população local)
Durante as conversas, foi comum que os resi-dentes
entrevistados comparassem característi-cas
atuais dos brincantes com tempos passados.
Com isso, têm-se opiniões que retratam como
certas mudanças são vistas negativamente:
“Agora não era essa bagunça de hoje em dia,
esse negócio que tem hoje em dia. Mais tarde é
tudo, tudo “bebo”, mas na época, na outra época,
era uma maravilha o Mané do Rosário. Quando
chegava dia de Mané do Rosário, pronto! Todo
mundo já “tava” preparado pra ver uma coisa
linda. Porque era lindo! (Informante da popula-ção
local)
Porque hoje não dançam da maneira que eu
conheci a dança, é aquela feita quase só por
homens, aqueles homens de posição [...]. E não
tinha tanta cachaça como tem hoje. Tá transfor-mado
em cachaça! Mais tarde, no fim da festa,
“tá” tudo bêbado, sem saber mais nem o que
“tão” fazendo. É com criança naquele meio, não
presta! O erro que eu acho que seja esse. (Infor-mante
da população local)”
A manifestação vem acontecendo de forma
independente, sem ligações diretas com a Igreja
ou qualquer outra instituição, porém, como já
mencionado, abraçada legalmente por políticas
estaduais de preservação do patrimônio cultural
intangível.
A participação de crianças durante das apre-sentações
do folguedo foi um dos fatos observa-dos.
Provavelmente acompanhando familiares,
os brincantes mirins demonstravam sintonia, ao
menos com a dança. Durante uma das apresen-tações,
no ano de 2009, a aproximação com uma
garota de 7 anos resultou no questionamento: o
que é o Mané do Rosário para você? A criança
respondeu: “É pra dançar.”
A presença de crianças de nada adianta se
estas, ao invés de compreenderem, simplesmente
tornam-se participantes alienados, restringindo
o folguedo a uma simples forma de diversão, dis-tante
de qualquer vínculo ou significado.
6. Considerações finais
É inegável que ao longo do tempo a mani-festação
cultural tenha sofrido modificações, a
cultura não é e não deve ser estática. Principal-mente
por não se tratar de patrimônio cultural
edificado, não se espera uma total preservação,
mas é preciso considerar que o folguedo vivencia
um momento em que sua interação com a comu-nidade
de Poxim é mínima.
Ao longo desses anos verificou-se que o grupo
de brincantes não muda. Superando condições
de precariedade como a necessidade de vesti-mentas
adequadas, o grupo se mantém graças
ao envolvimento dos antigos, marcando presença
na tradicional festa de São José. No período
de observação (2008 a 2012), notou-se que sua
visibilidade durante o evento vem se reduzindo,
novas formas de diversão e entretenimento
naturalmente surgiram, enquanto tradicionais
expressões e marcas do lugar parecem já não
fazer parte do mesmo.
É necessário compreender que a falta de
conhecimento, que inclusive é sentida entre os
próprios brincantes, é um fator relevante para
o distanciamento da população poxiense. E essa
falta de conhecimento sobre a origem e o his-tórico
do folguedo faz com que muitas pessoas
criem opiniões e expressões equivocadas e pre-conceituosas,
como o fato comum de se pensar
que o Mané do Rosário é um ritual vinculado a
religiões afrodescendentes.
Crianças e jovens da comunidade crescem
sem ensinamentos a respeito do folguedo e,
por conseguinte, desconhecem sua importância.
Mal compreendida, a manifestação cultural que
poderia ser um motivo de orgulho para a comu-nidade,
é vista pelos próprios moradores como
algo banal, coisa do passado, sem qualquer sig-nificado
presente. “As manifestações populares
religiosas são um dos eventos que estruturam e
resgatam o homem, descobrindo-o diante de sua
capacidade de deixar fluir suas infinitas poten-cialidades
de existência na sociedade” (Certeau,
2002, citado por Martins & Leite, 2003: 113).
Em Poxim, não diferente de muitos locais de
nossa região, é sentida a carência de ações que
visem o reconhecimento e a valorização da pró-pria
cultura local. O fato de se vivenciar uma
sociedade em que barreiras físicas e temporais
são facilmente eliminadas, muitas vezes, faz
com que se maximize a valorização de padrões
globais em detrimento da valorização do que é
local.
No meio cultural a ideia de padronização
acarreta em perda de valores. Uma comunidade
que não reconhece suas próprias singularidades,
PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 11(2). 2013 ISSN 1695-7121
350 Orgulho ou vergonha? …
simplesmente não detém as ferramentas bási-cas
e necessárias para fazer com que o outro as
reconheça e as valorize a partir de suas formas
autênticas.
De acordo com o que se observou em campo,
havia um significativo envolvimento da popula-ção
de Poxim com o folguedo, o que já não ocorre.
Fato que se atribui à ausência da implantação
de políticas públicas de incentivo e valorização
culturais, assim como organização e zelo por
parte da sociedade civil organizada.
A falta de compreensão sobre o folguedo faz
com que os moradores e até os próprios brincan-tes
o reduzam a uma simples dança, desvincu-lada
de qualquer outro significado. A proposta
deste artigo é instigar reflexões sobre o Mané
do Rosário e sua relação com a comunidade de
Poxim, como uma forma de resguardar seu valor
cultural para as atuais e futuras gerações.
A publicação de históricos, expressões e opi-niões
pode despertar o reconhecimento e conse-quente
valorização, deste traço cultural popular
tão singular, marcado pela simplicidade de um
povo que através de suas formas de celebrar,
espontaneamente originaram um folguedo que
de tão autêntico, torna-se para tantos, incom-preensível.
Bibliografia
Coruripe-AL. Câmara Municipal de Vereadores
1990 “Lei Orgânica.” Poder legislativo munici-pal.
Coruripe, Alagoas, Brasil.
IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional
2012 “Patrimônio Imaterial”. Disponível em:
http://portal.iphan.gov.br/portal/montarPagi-naSecao.
do?id=10852&retorno=paginaIphan.
Acesso em: 19 de abril de 2012.
Lemos, João Ribeiro de
1999a “Poxim.” En Coruripe: sua historia, sua
gente, suas instituições. (p. 173-183) Recife-
PE: GCL gráfica e editora.
Lemos, João Ribeiro de
1999b “O Poxim.” En Coruripe: sua historia para
a juventude. (p. 77-80) Maceió: Recife-PE:
GCL gráfica e editora.
Lemos, João Ribeiro de
2001 Poxim, terra de história e de mitos: Vila
Real de São José do Poxim do Sul. Recife-PE:
GCL gráfica e editora.
Macena, Lourdes
2003 “Festas, danças e folguedos: elementos
de identidade local, patrimônio imaterial
do nosso povo”, En Martins, Clerton. (Org.),
Turismo, cultura e identidade. (p. 63-76) São
Paulo: Roca.
Martins, Clerton; Leite, Liliana
2003 “Cultura, religiosidade popular e romarias:
expressões do patrimônio imaterial”, En Mar-tins,
Clerton (org.), Patrimônio Cultural: da
memória ao sentido do lugar. (p. 105-120).
São Paulo: Roca.
Oliven, Ruben George
2003 “Patrimônio intangível: considerações ini-ciais”,
En Abreu, Regina; Chagas, Mário.
(Orgs.), Memória e patrimônio: ensaios con-temporâneos.
(p. 77-80). Rio de Janeiro:
DP&A editora.
Ribeiro, Marcelo
2010 “Análise das políticas de preservação em
quatro municípios do nordeste brasileiro”,
En Ribeiro, Marcelo. (Org.), Olhares sobre o
patrimônio cultural: reflexões e realidades.
(p. 9-28) Porto Alegre, RS: Asterisco.
Sant’Anna, Márcia
2003 “A face imaterial do patrimônio cultural”,
En Abreu, Regina; Chagas, Mário. (Orgs.),
Memória e patrimônio: ensaios contemporâ-neos.
(p. 46-55) Rio de Janeiro: DP&A editora.
SECULT/AL – Secretaria de Estado da Cultura
de Alagoas
2012 “Lei do Registro do Patrimônio Vivo”,
Disponível em: http://www.cultura.al.gov.
b r / l e g i s l a c a o - 1 / l e i s - e - d e c r e t o s / L e i % 2 0
no%206.513%2C%20de%2022.09.04%20-%
20Lei%20do%20Registro%20do%20Patrimo-nio%
20Vivo-RPV.pdf/view. Acesso em: 19 de
abril de 2012.
Notas
¹ O projeto de pesquisa intitulado “Levantamento do
patrimônio cultural intangível em Penedo e Coruripe,
Alagoas,” foi coordenado pelo professor Dr. Marcelo
Ribeiro e executado pela autora deste artigo enquanto
aluna bolsista da Universidade Federal de Alagoas
(UFAL).
Recibido: 04/09/2012
Reenviado: 03/03/2013
Aceptado: 17/03/2013
Sometido a evaluación por pares anónimos