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Vol. 11 N.º 1 págs. 135-146. 2013 © PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural. ISSN 1695-7121 A noção de patrimônio no Brasil Império Hernan Venegas Marcelo* Universidade Federal do Rio Grande (FURG)/RS, Brasil Resumo: Este trabalho se insere no campo dos estudos históricos sobre o patrimônio no Brasil, cujas origens remontam antes do surgimento do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), em 1937. De acordo com tal pressuposto, historiou-se a noção de patrimônio durante o século XIX – com ênfase no contexto do Brasil Império – partindo da premissa de ser um conceito socialmente construído. Durante essa etapa não existiam políticas públicas de preservação do patrimônio, precisando antes ser representado enquanto suporte da nação brasileira. Nesse sentido, identificou-se uma reflexão em torno aos monumentos históricos presentes no resgate de memórias históricas da Igreja Católica, em artigos relacionados à arte colonial e em crônicas de cunho memorialístico sobrepondo os seus valores histórico-civilizatório e artístico. Por último, a contribuição teórica deste artigo aponta para uma proposta de estudo histórico do patrimônio em uma etapa prévia a sua institucionalização, cujas representações anteciparam o conceito do patrimônio vigente durante boa parte do século XX. Palavras-chave: história, patrimônio, monumentos históricos. Title: The concept of heritage in Brazil Empire Summary: This work falls within the field of historical studies on heritage in Brazil, whose origins date back before the foundation of ‘Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional’ (SPHAN) in 1937. According to this assumption, was historicized the notion of heritage during the nineteenth century - with emphasis on the context of Brazil Empire - on the premise of being a socially constructed concept. During this stage there were no policies for heritage preservation, before needing to be represented as support of the Brazilian nation. Accordingly, we identified a reflection on the historical monuments present in the rescue of historical memories of the Catholic Church in articles related to colonial art and chronics superimposing their historical-civilizational and artistics values. Finally, the theoretical contribution of this article points to a historical study of heritage at a stage prior to their institutionalization, whose representations anticipated the concept of heritage in force for much of the twentieth century. Keywords: history, heritage, historical monuments. * Historiador e turismólogo. Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense, RJ, 2011. Atualmente cursa estudos de Pós-Doutorado na Universidade Federal do Rio Grande/RS, Brasil com o projeto “Escritas de viagens, turismo e representações: o Rio Grande do Sul entre fins do XIX e metade do XX”. Licenciatura em História pela Universidade de Havana (1998), Mestre em Ciências Pedagógicas – Universidade Pedagógica de Las Villas, Cuba (2002), e Mestre em Gestão Turística de Destinos Locais – Universidade de Havana, Cuba/Universidade de Barcelona, Espanha (2005). E-mail: hvenegas75@yahoo.com Endereço para correspondência: Rua 24 de Maio. No. 49 C. Apto. 202. CEP 96200- 006, Rio Grande, RS, Brasil. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural PAS S www.pasosonline.org PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 11(1). 2013 ISSN 1695-7121 136 A noção de patrimônio no Brasil Império “Patrimônio s. m. [...] 1.herança familiar 2.conjunto dos bens familiares 3.fig. Grande abundância; riqueza; profusão (p. artístico) 4.bem ou conjunto de bens naturais ou culturais de importância reconhecida num determinado lugar, região, país, ou mesmo para a humanidade, que passa(m) por um processo de tombamento para que seja(m) protegido(s) e preservado(s) [...] 5. JUR. Conjunto dos bens, direitos e obrigações economicamente apreciáveis, pertencentes a uma pessoa ou a uma empresa [...]” Vários 2001 Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa, Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, p. 2151. 1. Vestígios históricos do passado As variações polissêmicas, acima expostas, do substantivo patrimônio reforçam seu cará-ter inseparável da práxis humana, tanto num sentido individual quanto coletivo. Foi, precisa-mente, essa práxis de natureza cultural, social, econômica e política, na coletividade, que impôs e legitimou o Brasil dos oitocentos que gradual-mente foi definindo a sua natureza. Desvendar esse mistério da conceitualização do patrimônio no Brasil é o objeto deste artigo o qual inspirou-se no estudo histórico sobre o patrimônio na França realizado por André Chastel e Jean- Pierre Babelon (Chastel-Babelon, 1980). Assim, a motivação aqui apresentada visa historiar os sedimentos históricos da noção de patrimônio ao dar ênfase no contexto do Brasil Império (1822- 1889). As referências a Portugal, na sua condição de metrópole do Brasil, não podem ficar ausentes do balanço histórico que se quer conformar o qual se justifica, historicamente, pela introdu-ção no direito lusitano da proteção ao acervo de arte antiga e aos monumentos de valor histórico. Nesse sentido, um relatório de 1721 apresentado ao Rei D. João V1 pelo Diretor da Academia Real da História Portuguesa, sublinhou a importân-cia histórica de vestígios pré-romanos, romanos, germânicos e árabes nos tempos em que esses exerceram seus domínios em terras portugue-sas2. Tomando ciência daquela situação, o Rei Dom João V decretou por alvará, de 28 de agosto de 1721, que: “daqui em diante nenhuma pessoa, de qual-quer estado, qualidade e condição que seja, desfaça ou destrua em todo, nem em parte, qualquer edifício que mostre ser daqueles tempos, ainda que em parte esteja arruinado e, da mesma sorte, as estátuas, mármores e cipós e que estiveram esculpidos algumas figuras, ou tiveram letreiros fenícios, gregos, romanos, góticos e arábicos, ou lâminas, ou chapas de qualquer metal que contiveram os ditos letreiros ou caracteres; como outros-sim medalhas ou moedas que mostrarem ser daqueles tempos até o Reinado do Senhor Dom Sebastião, nem encubram ou ocultem algumas das sobreditas cousas. Os infratores, sendo pessoas de qualidade, além de incor-rerem no meu desagrado, experimentarão também a demonstração que o caso pedir e merecer a sua desatenção, negligência ou malícia; e as pessoas inferiores de condição incorrerão nas penas impostas pela Ordena-ção do Livro 5, título 12, art. 5º....” (Fundação Pro-Memória, 1987: 66). No entender do historiador português Paulo Oliveira Ramos, o Alvará Régio de 20 de agosto de 1721 constitui uma contribuição lusa ao estudo histórico da salvaguarda do patrimônio na Europa. Conforme seus estudos, o referido alvará destaca-se pelo reconhecimento da impor-tância dos vestígios pré-romanos, romanos, germânicos e árabes em Portugal; pelo entendi-mento abrangente da noção de patrimônio; pelo período histórico ao qual pertencem os denomi-nados “monumentos antigos” – até o reinado de D. Sebastião (1557-1578) e pela atribuição de responsabilidades às câmaras municipais e vilas na salvaguarda do acervo cultural remanescente. Outros aspectos importantes do referido docu-mento são: a existência de uma consignação a ser utilizada pela Real Academia de História Portuguesa para ações de conservação, a aplica-ção de medidas legais frente a possíveis infrações ao acervo herdado e o fato de ter atribuído a dita Academia a coordenação dos assuntos relaciona-dos à salvaguarda dos vestígios históricos elen-cados no alvará (Ramos, 1994, 2003). Contudo, não são muitos os estudos históricos que fazem referência ao caso de Portugal numa história alargada da noção de patrimônio na Europa. Oitenta e três anos depois, o príncipe regente Dom João3 mandou novamente publicar o alvará, exatamente em 4 de agosto de 1802, reconhecendo assim, a importância dos vestígios histórico do passado. Pelo conteúdo do mesmo, os domínios ultramarinos, entre esses o Brasil, ficavam fora do alcance de sua aplicação. Por-tanto, tal precedente na legislação do Reino de Portugal e Algarves em nada alterou os meca-nismos administrativos que regulavam a vida do Brasil no século XVIII. Talvez, houvesse alguma repercussão no Brasil, mas não de forma direta. PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 11(1). 2013 ISSN 1695-7121 Hernan Venegas Marcelo 137 Isso não constitui uma reflexão desacertada, se for levada em consideração que as referências políticas, culturais e jurídicas provinham de Portugal na sua condição de metrópole e que o Brasil era entendido como uma “extensão” do território português que espelhava as institui-ções bragantinas. Ora, o certo é que, 21 anos depois da pro-mulgação do alvará de 1721, o Vice-Rei André de Melo e Castro, conde das Galveias, expediu uma carta endereçada a Luís Pereira Freire de Andrade, governador de Pernambuco. Nela, o Vice-Rei André de Melo e Castro pediu ao Gover-nador de Pernambuco para não ocupar o palácio das Duas Torres, que fora construído por Mau-rício de Nassau, príncipe holandês (MEC/Sphan/ Pró-Memória, 1987: 60). Emitindo cuidados com a preservação da memória, assim se expressou: “Pelo que respeita aos Quartéis que se pre-tendem mudar para o Palácio das duas Tor-res, obra do Conde Maurício de Nassau, em que os Governadores fazem a sua assistência, me lastimo muito que se haja de entregar ao uso violento e pouco cuidadoso dos solda-dos, quem em pouco tempo reduzirão aquela fábrica a uma total dissolução, mas ainda me lastima mais que, com ela, se arruinará tam-bém uma memória que mudamente estava recomendando à posteridade as ilustres e famosas ações que obraram os Portugue-ses na Restauração dessa Capitania” (MEC/ Sphan/Pró-Memória, 1987: 61). Segundo o historiador Haroldo Camargo, a carta em questão é importante pelo fato de constituir o primeiro documento do qual se tem notícia a respeito da preocupação com a preservação de uma edificação colonial e, tam-bém, pelas interpretações que dele se despren-dem. Evidenciam-se assim, algumas indagações: poder-se-ia estabelecer este documento como o referencial histórico de outros projetos públicos para a restauração e conservação do patrimônio cultural brasileiro? Os conteúdos deste docu-mento sugeririam uma linha evolutiva que nos conduziria até os projetos de preservação de monumentos das primeiras décadas do século XX? (Camargo, 2004: 2). Uma resposta atinada a tal questionamento foi dada pelo historiador supra mencionado. Ele argumenta que a exis-tência deste documento histórico remete à inde-pendência portuguesa da Coroa da Espanha com a ascensão dos Bragança ao trono de Portugal, ainda mais quando se considera que o Conde das Galveias - autor do documento em questão – antes dos cargos ocupados no Brasil, havia sido designado embaixador extraordinário em Roma, junto à Santa Sé, pelo monarca D. João V. A carta enviada ao Governador de Pernambuco não constitui um referencial histórico de outros projetos para a salvaguarda do patrimônio cul-tural brasileiro (Camargo, 2004: 2). Não seria pertinente falar para o século XVIII de patrimônio cultural brasileiro, e sim da proteção de uma edificação colonial. O reco-nhecimento do patrimônio é um fenômeno que se constata na produção escrita de importantes intelectuais dos oitocentos, podendo-se inferir, também, que essa forma de expressão é paralela ou decorrente à invenção do próprio conceito de Brasil.4 2. A noção de patrimônio e a invenção do Brasil Segundo o historiador Afonso Carlos Marques dos Santos, a História serve como elemento de coesão das tradições reinventadas e essas se mostram na base do discurso legitimador da nação que inseriu o patrimônio no projeto de construção da identidade nacional ao longo do século XIX e durante boa parte do século XX (Santos, 2007). Frente as contradições socioeco-nômicas desse Brasil dos oitocentos, inventou-se uma nação herdeira nas tradições luso-cristãs – elas seriam a base legítima sobre a qual deveria ocorrer a continuidade histórica para os projetos da monarquia bragantina empenhada em tor-nar civilizada a ex-colônia portuguesa. O Bra-sil que se “inventou” selecionou o passado que melhor se adaptou à sensação de movimento e mudança que imprimiu a presença dos Bragança no empenho em tornar civilizada uma ex-colônia com muitos contrastes sociais (Botelho, 2005: 321-341) perante os olhos das nações civilizadas européias. Na consecução desse objetivo e, do ponto de vista artístico, foi fundamental a chegada ao Brasil de um conjunto de artistas e artífices que é conhecida como a ‘Missão Francesa’. Dos motivos para os quais eles vieram, atendiam, segundo o próprio D. João VI, “ao bem comum, que provém aos meus fiéis vassalos, de se esta-belecer no Brasil uma Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, em que se promova e difunda a instrução e conhecimentos indispensáveis aos homens (...) fazendo-se, portanto, necessário aos habitantes o estudo das Belas-Artes” (Schwarcz, 2008: 208). Mesmo dando um impulso funda-mental às artes e aos ofícios durante anos e assumindo o estilo neoclássico como expressão oficial da arquitetura do Império, a produção PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 11(1). 2013 ISSN 1695-7121 138 A noção de patrimônio no Brasil Império desses artistas não foi suficiente para que suas obras fossem reconhecidas pelo patrimônio luso-brasileiro como um sinônimo da produção artís-tica da jovem civilização nos trópicos. Porém, a imagem oficial do Império também se consolidou com a visão civilizada do Brasil perante o mundo ocidental através da fotogra-fia e mediante a construção de uma memória que justificasse tal empreitada com o apoio fundamental do Instituto Histórico e Geográ-fico Brasileiro (IHGB). Através da fotografia consagrou-se a imagem de um Brasil civilizado e moderno, sobretudo da sua cidade imperial, o Rio de Janeiro, e da figura do Imperador Pedro II (Mauad, 1997: 191). Não havia espaço naque-les anos para registrar em imagens as antigas edificações do Brasil, ao contrário do que acon-tecia na Europa. Por exemplo, na França, nos anos 40 do século XIX Viollet-le-Duc encomen-dava daguerreótipos da igreja de Notre-Dame antes de iniciar a sua restauração (Lowenthal, 1998: 177). No Brasil, importava mais consolidar e representar o Império dos Bragança mundo afora. Já no âmbito interno e a partir da procla-mação da Independência, existiu uma tendência a construção de estátuas cujo fundamento era o culto à nação, “sustentado no ideário do patrio-tismo e afirmado em torno de práticas cívicas” (Knauss: 2009:18). Do ponto de vista legal, não existiram políticas públicas de preservação do patrimônio. Isto não significa a ausência de medidas legais para preservar sua integridade como se comprova com um decreto que D. Pedro I mandou executar referido ao Código Criminal do Brasil, em 1830. No seu capítulo IV “Destrui-ção ou danificação de construções, monumentos e bens públicos” artigo 178 previa-se multas em dinheiro e penas de prisão para quem destru-ísse “monumentos, edifícios, bens públicos ou quaisquer outros objetos destinados à utilidade, decoração ou recreio público” (Soeiro, 1972: 267). Contudo, foi apenas uma medida legal para impedir que o vandalismo atentasse con-tra as expressões visíveis do poder imperial dos Bragança no Brasil. Uma história da noção do patrimônio no Brasil durante o século XIX, além dos exemplos anteriores, identifica-se nas entrelinhas da pro-dução escrita que trouxe à luz memórias histó-ricas do Rio de Janeiro, os traços civilizatórios – visíveis e monumentais – da jovem nação bra-sileira que contribuíram para a definição de uma identidade do Império, associada quase sempre a sua capital. Verificou-se que essa precisava de símbolos, como: monumentos, igrejas, conven-tos, praças, personalidades, ruas, para se tornar visível, palpável e descoberta em sua grandeza. É claro, tal produção não ficou alheia ao pro-cesso de consolidação das instituições imperiais, o que foi ainda reforçado pelos moldes do IHGB cuja leitura da história foi marcada: “(...) por um duplo projeto: dar conta de uma gênese da Nação brasileira, inserindo-a, contudo numa tradição de civilização e progresso, idéias tão caras ao iluminismo. A Nação, cujo retrato o instituto se propõe traçar, deve, portanto, surgir como o desdo-bramento, nos trópicos, de uma civilização branca e européia. Tarefa sem dúvida a exigir esforços imensos, devido à realidade social brasileira, muito diversa daquela que se tem como modelo” (Guimarães, 1988: 8). Em relação com essas intenções, pode-se infe-rir que não seria o patrimônio o centro das pre-ocupações e, sim, os documentos históricos que apontaram para a unidade nacional pretendida pela jovem nação brasileira o que levou a serem coletados, classificados e publicados pelo Insti-tuto Histórico e Geográfico Brasileiro, seguindo o pressuposto de que “a nação brasileira data de 1822, pois a Portugal pertencem os seis anos do Brasil-Reino (1816-1822) e os 316 sob o domínio colonial (1500-1816)” (Revista IHGB, 1898: 9). O regime monárquico teria de enobrecer seu pas-sado em terras da América e limpar das suas origens todo vestígio de atraso e barbárie, afinal tinha um representante dos Bragança ocupando um trono de Ultramar, o que foi possível graças à atuação do IHGB. Neste lugar foi onde gra-vitou uma parte importante da vida intelectual brasileira dos oitocentos e, também, responsável por um projeto histórico que visava unificar a nação através das páginas do seu órgão oficial, a Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Ao se referir aos conteúdos dos primeiros exemplares dessa publicação, o primeiro-secre-tário do Instituto Histórico e Geográfico Brasi-leiro, Joaquim Manoel Macedo, argumentou que “a coleção de nossas revistas se têm tornado em um cofre precioso, onde se guardam em depósito tesouros importantíssimos; e a leitura delas será muitas vezes frutuosa para o ministro, e legisla-dor e o diplomata, e em uma palavra para todos aqueles que não olham com indiferença para as coisas da pátria” (Macedo, 1851: 3). Sem querer minimizar a importância que merecem os aspec-tos relacionados com a escrita da história e com o mito da nação (Certeau, 2000: 54-65), durante o século XIX, o que deseja-se aqui ressaltar é PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 11(1). 2013 ISSN 1695-7121 Hernan Venegas Marcelo 139 que houve preocupações mais imediatas direcio-nadas a tornar civilizado o Brasil do Segundo Reinado (1840-1889), deixando em segundo plano a institucionalização do seu patrimônio cultural. Antes ele precisava ser representado enquanto suporte da jovem nação brasileira, ora fazendo ênfase na dimensão histórico-civiliza-tória, ora ressaltando a dimensão artística dos seus monumentos. 3. A primazia civilizatória do patrimônio O Brasil imaginado precisava da coesão que no mundo das idéias trazia o discurso historio-gráfico do Instituto Histórico e Geográfico Bra-sileiro elaborado “de acordo com os postulados típicos de uma história comprometida com o desvendamento do processo de gênese da nação” (Guimarães, 1988: 8). Ainda que essa intenção fosse uma constante, na segunda metade do século XIX, houve espaço para os assuntos rela-tivos a herança civilizatória luso-cristã no Bra-sil mais visível: os monumentos históricos. No século XIX até o fim do Império, identificaram-se três formas de pensar o patrimônio e todas dentro dos moldes que assumiu a conformação da cidade das letras no Brasil Imperial. A primeira delas pertence ao período prévio à criação do IHGB e caracteriza-se pelo resgate de memórias históricas da Igreja Católica no Bra-sil da qual Monsenhor José de Souza Pizarro e Araújo (1753-1830) é seu representante. Uma segunda forma de pensar o patrimônio no século XIX, mais artística do que histórica, corresponde aos artigos de Manoel de Araújo Porto-Alegre (1806-1879). A ele se atribui as primeiras idéias teóricas sobre a arte no Brasil e a intenção de encontrar as raízes genuínas dela em tempos de domínio colonial lusitano. Há ainda uma terceira maneira na construção do conceito de patrimônio relacionada com o resgate memoria-lístico da cidade do Rio de Janeiro através de crônicas publicadas em jornais da época, escri-tas por Joaquim Manoel Macedo (1820-1882) e por Manuel Duarte Moreira de Azevedo (1832- 1903). Nelas, o Rio de Janeiro descobria-se his-tórica e monumental para os cariocas. Existe um ponto em comum entre essas formas identi-ficadas de pensar o patrimônio: os monumentos históricos. Segundo a perspectiva riegliana, tais monumentos – os históricos – são uma criação da sociedade moderna (Riegl, 1987 [1903]) e tes-temunhas de um passado revisitado pela Histó-ria (Magalhaes, 2004). Eles foram o centro das reflexões e, ao mesmo tempo, os traços visíveis da herança civilizatória luso-cristã em terras brasileiras. Pizarro de Araújo, Araújo Porto-Alegre, Macedo e Moreira de Azevedo foram represen-tantes da cidade das letras que fixou as institui-ções que mantinham a ordem estabelecida pelo poder imperial no Brasil. Na América Latina, “foi evidente que a cidade das letras arreme-dou a majestade do Poder, apesar de que este regeu as operações letradas, inspirando seus princípios de concentração, elitismo e hierarqui-zação” (Rama, 1985: 54). Para o caso do Brasil, diferente dos domínios coloniais hispânicos, tal tarefa foi reforçada com o traslado da Corte dos Bragança o que trouxe consigo a constituição de uma elite política que tinha o monopólio das letras e responsável pela missão civilizadora da construção do Império Brasileiro. Boa parte desses letrados foram membros ativos do IHGB e suas pesquisas foram publicadas pelo seu órgão oficial. Existe em suas obras, uma rela-ção entre a produção do conhecimento histórico desde os tempos joaninos até o fim do Império e o reclamo ou reconhecimento de elementos de identidade e civilizatórios na arquitetura legada pela presença lusitana no Brasil. Em 1820, “na Impressão Regia e com licença de Sua Magestade”, foram publicadas as “Memórias históricas do Rio de Janeiro e das províncias anexas a jurisdição do Vice-Rei do Estado do Brasil, dedicadas a El-Rei Nosso Senhor D. João VI, por José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo. Natural do Rio de Janeiro, Bacharel Formado em Canones, do Conselho de Sua Magestade, Monsenhor/Arcipreste da Capella Real, Procurador Geral das três Ordens Militares”. Seu autor pesquisou, coletou e clas-sificou documentos em numerosos arquivos eclesiásticos e civis não só circunscritos ao Rio de Janeiro, mas a outras cidades do Brasil e até Lisboa. Como um fiel cronista do período joanino, Pizarro e Araújo, em seu livro, teceu comentários historiográficos sobre a interioriza-ção imposta pela metrópole. Pode-se supor que não faltem nele referências às memórias históri-cas da Igreja Católica, já que essa era um pilar do poder real. Encontram-se, nas Memórias....relatos da ori-gem da fundação da Província do Rio de Janeiro, dados históricos dos prelados, dos governadores, das igrejas matrizes; assim como narrações detalhadas dos desmembramentos de paróquias e outro tipo de informações históricas (Peixoto, 2008: 114) com uma sistematização que o colo-cou como referência para outras pesquisas his-tóricas no decorrer do século. Também, indepen-dente da motivação de Pizarro e Araújo, suas PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 11(1). 2013 ISSN 1695-7121 140 A noção de patrimônio no Brasil Império “Memórias...” tornaram-se um inventário deta-lhado e descritivo dos monumentos de tipo reli-giosos na diocese do Rio de Janeiro: evidência da presença civilizatória luso-cristã (Peixoto, 2008: 114)5. Entretanto, não se acham em seu livro apuradas descrições das construções religiosas, pois lhe importavam mais a sistematização e o registro de memórias do que descrições estéti-cas das edificações religiosas. Já as primeiras reflexões teóricas sobre a arte, em específico, a religiosa, seriam motivos de outros artigos duas décadas depois da aparição das Memórias... de Monsenhor Pizarro e Araújo e foram da autoria de Manoel de Araújo Porto-Alegre (1806-1879), um dos mais importantes letrados oitocentistas. Esse homem de vasta experiência e erudição se destacou no mundo das artes, no seu sen-tido mais amplo, e sua percepção delas merece especial atenção uma vez que em seus escritos existe uma clara intenção em pensar teorica-mente diversas questões artísticas no Brasil. As reflexões de Porto-Alegre desenvolvidas no artigo “Fragmentos de notas de viagem de um artista brasileiro” expressam essa última preocupação. Neste artigo, ele fez uma refe-rência indireta à arte brasileira quando afirma que “toda arquitetura que for despejada de seus ornatos e reduzida à sua mais simples expressão, e que nesta conserva hum caráter peculiar, essa é uma nova arquitetura” (Porto- Alegre, 1843: 72). Ou seja, há um reclamo, por trás dessas reflexões, a autenticidade da arte brasileira ao ele reconhecer que o apogeu da arte brasileira só seria possível quando o Bra-sil fosse tão consciente da história da sua arte como a Europa. Segundo Porto-Alegre, uma vez que o Brasil atingisse aquela consciência, a arte se ergueria e vingaria com a autoctonia seme-lhante à alcançada por Fonseca e Silva, José Maurício e Caldas6 no espírito de “uma moci-dade inteligente e corajosa” (Peixoto, 2008: 111). No referido trabalho de Porto-Alegre apare-cem importantes reflexões teóricas sobre a arte, sem se desgrudar da vontade civilizatória para a qual o Brasil se empenhava. Também se eviden-cia o reclamo por uma arte autóctone que reto-masse o espírito dos mestres da colônia e, por último, fica demonstrada sua preferência pelos monumentos religiosos como um sinal visível de traços civilizatórios. Ao elevar os artífices do século XVIII à condição de artistas e colocá-los no mesmo patamar dos artistas europeus a figu-ras como o Mestre Valentim, José de Oliveira e José Maurício (Porto-Alegre, 1845: 245), Porto- Alegre advertia que a presença de um passado artístico glorioso poderia ser o começo de uma arte tipicamente brasileira antes da chegada da Missão Francesa no início dos oitocentos. Outros artigos de Porto-Alegre, publicados na revista Minerva Brasiliense, trataram da arquitetura religiosa no Rio de Janeiro, especifi-camente, das igrejas de Nossa Senhora da Can-delária, a de Santa Cruz e a de Santa Luzia. Além de ele ter reconhecido traços civilizatórios no estilo da construção dessas igrejas, existem outras reflexões. Segundo Porto-Alegre, essas construções eram “grandes documentos porque eles são o livro que narra um suplemento a história” (Porto-Alegre, 1843: 73), ou seja, uma interessante concepção de uma leitura histó-rica na qual o simbólico monumental tinha um papel importante. Outro dos textos importantes da sua autoria foi o intitulado “Memória sobre a Antiga Escola Fluminense de Pintura”, publi-cado na Revista do Instituto Histórico e Geográ-fico Brasileiro (Porto-Alegre, 1841: 547-557). Não poucos estudos sobre o patrimônio no Brasil têm catalogado esse trabalho como a primeira vez que um intelectual brasileiro reconhecia a qualidade da arte produzida no Brasil antes da chegada da Corte Portuguesa e da Missão Francesa. Porém, Rodrigo de Melo Franco e Andrade, figura indissociável da histó-ria do patrimônio no século XX, considera que o texto mais antigo sobre a história das artes plásticas no Brasil é: “um fragmento da memória sobre os fatos notáveis da Capitania de Minas Gerais, composto em 1790 por Joaquim José da Silva, Vereador da 2ª. Câmara de Mariana, contendo uma resenha histórica e crítica da evolução das formas da arquitetura e escul-tura ocorridas naquela região, com referên-cias numerosas à autoria das obras de arte que menciona. Utilizada e transcrita, par-cialmente, na biografia de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, publicada em 1858 por José Ferreira Bretas, a memória alu-dida incluía por certo resenha equivalente a respeito da evolução da pintura mineira, bem como talvez ainda outros informes de inestimável valor, mas o respectivo original perdeu-se. (...) O cronista teria deixado infor-mes insupríveis acerca dos pintores do século XVIII em Minas Gerais, sua formação e suas obras. (...) Embora, porém, reduzida a um fragmento de pouco mais de 800 palavras, a memória escrita pelo vereador Joaquim José da Silveira é não só a pedra angular de tudo que se apurou e escreveu a respeito do Aleija-dinho, mas também das obras arquitetônicas e escultóricas mineiras e os respectivos auto- PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 11(1). 2013 ISSN 1695-7121 Hernan Venegas Marcelo 141 res. Menos importante e luminosa que a do cronista das artes plásticas de Minas Gerais no período colonial, a Memória sobre a antiga escola fluminense de pintura, publicada em 1841 por Manuel de Araújo Porto-Alegre, tem, entretanto, merecimento excepcional, gerando maior número de escritos sobre a matéria que o trabalho deixado pelo vere-ador setecentista (...) ele foi, de fato, o pio-neiro dos estudos sobre a história da arte no Brasil, pois a memória de 1790 de Joaquim José da Silva só veio a ser publicada, como se adiantou, longos anos depois de impressa a sua acerca da antiga escola fluminense de pintura”. (Andrade, 1952: 130-132). Fora essas precisões historiográficas, reto-mando a análise dos textos de Pizarro e Araújo e de Porto-Alegre, pode-se dizer que com eles se encerram as duas primeiras propostas de cons-trução teórica do patrimônio – chamo a atenção de que essa palavra não se explicita nos docu-mentos estudados – e sim a de monumentos e arte, no sentido geral, vistos como sinônimos de civilização. A terceira análise da produção escrita, no século XIX, ao pensar o patrimônio teve uma ampliação no número e tipologia das edifica-ções. Não apenas as religiosas, mas de tipo civis e militares que personificavam o Brasil Impe-rial e que, também, constituíam amostras de civilização visíveis na cidade do Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo, tal produção escrita se empe-nhou em reconhecê-los – e para isso abriu mão das tradicionais fontes documentais – em seu conjunto como o todo integrante de uma iden-tidade, a da capital e vitrine do Império: o Rio de Janeiro. Os principais representantes dessa forma de pensar o patrimônio foram Joaquim Manoel de Macedo (1820-1882) e Manoel Duarte Moreira de Azevedo (1832-1903), também mem-bros do IHGB. Os edifícios do Rio de Janeiro seriam pre-texto em Joaquim Manoel Macedo para andar a cidade e convidar os leitores do jornal “O Commércio” a descobri-la através de crônicas. Elas foram recopiladas e publicadas em formato de livro sob o título Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro, entre 1862 e 1863. Mais ameno em sua leitura, se comparado com os livros e artigos anteriormente analisados, inclusive com o de seu contemporâneo Moreira de Azevedo, o interesse do autor fica logo esclarecido nas pági-nas primeiras do livro ao afirmar que: “(...) não era das províncias centrais e lon-gínquas que pretendo falar. Dessas temos notícia de que fosforizam as suas eleições periodicamente, e é o que basta. Quanto ao mais, representam um mundo que ainda está à espera do seu Colombo; e não admira que assim exista ignorado, quanto é certo que nem conhecemos bem a cidade de S. Sebas-tião do Rio de Janeiro. Note-se que esta incú-ria seria escusável ao montanhês de Minas, ao guasca do Sul, ao caipira do Paraná; o que, porém, muito mais surpreende é que os próprios cariocas não estejam ao fato da his-tória e das crônicas da capital, de que tanto se ufanam” (Macedo, 1862: 20). Para Joaquim Manoel Macedo existia uma cidade cuja história e identidade se expõe de forma invisível em seus monumentos históricos e que foi a verdadeira interlocutora dos passeios realizados com os leitores da época (Figura 1). Esses monumentos históricos precisavam ser interpretados, decodificados em sua significân-cia histórica e identitária, para o qual o autor fazia deter seus leitores nos lugares depositá-rios de lendas e tradições e da história do Rio de Janeiro, por exemplo, quando situa o leitor frente ao Palácio Imperial e pede que “paremos agora um pouco e conversemos por dez minutos. É justo que estudemos com interesse a história do Palácio Imperial” (Macedo, 1862: 21). Com um tom “brincalhão e às vezes epigramático” (Pedruzzi, 2007) que amenizava o relato histó-rico dos monumentos cariocas, assim Joaquim Manoel Macedo passeia pela cidade, visitando o Palácio Imperial, o Passeio Público, o Convento de Santa Teresa, o Convento de Santo Antônio, Figura 1. Largo do Paço Imperial e Rua da Direita. Fotografia Marc Ferrez, 1894. Acervo Digital da Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, Brasil. PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 11(1). 2013 ISSN 1695-7121 142 A noção de patrimônio no Brasil Império a Igreja de São Pedro, o Colégio de Pedro II, a Capela Imperial e a Santa Sé do Rio de Janeiro. Ao todo, nesse livro de Joaquim Manoel Macedo há cinco edifícios de tipos religioso e três de tipos civil, todos guardiães da história carioca. Essas edificações foram testemunha de um passado de três séculos e meio onde se misturaram a tradição católica e a presença dos Bragança, por sinal, um passado pouco conhe-cido, na época, devido à preferência de alguns cariocas em conhecer mais as montanhas da Suíça e os jardins e palácios de Paris e Londres do que a cidade do Rio de Janeiro (Macedo, 1862: 20). Nas edificações visitadas, o predomínio de valores históricos por sobre os artísticos caracte-riza a reflexão desse autor, inclusive ao tratar do estado de conservação delas. De fato, são breves descrições artísticas se comparadas com as nar-rações históricas, dados de personagens históri-cos, lendas e imaginário carioca em que se apoia para construir a narração que caracteriza Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro. Para Joaquim Manoel Macedo importava mais o resgate da história da cidade do Rio de Janeiro – reiteradamente chamada de Sebastianópolis em clara alusão à tradição que se esconde nas histórias de seus monumentos históricos. E, para isso, para incentivar o amor dos cariocas pela cidade o autor recorre a elementos narrativos inovadores, não importava “que o sobrenatural se misturasse nesta tradição com os fatos regis-trados na História” (Macedo, 1862: 131). Esse estilo narrativo, sui generis, de Macedo leva seus leitores da época, e ainda os atuais, a acompa-nhá- lo em suas andanças pela cidade. Também histórica e monumental se desco-bre a cidade do Rio de Janeiro nas reflexões de Manuel Duarte Moreira de Azevedo (1832-1903) através de suas construções religiosas, civis e militares, porém, num estilo narrativo diferente se comparado com o de seu contemporâneo Joaquim Manoel Macedo. Entre umas e outras matérias Moreira de Azevedo inseriu esboços biográficos de homens notáveis, repetindo dessa forma um padrão da época ao escrever a histó-ria. Grosso modo, é essa a proposta de Moreira de Azevedo no livro O Rio de Janeiro: sua histó‑ria, monumentos, homens notáveis, usos e curio‑sidades (Azevedo, 1877). Esta edição de 1877 foi condensada em dois volumes com 32 matérias dedicadas às edificações do Rio de Janeiro.7 Nas reflexões de Moreira de Azevedo sobre as construções civis são importantes as valorações de tipo estético, por sinal, bastantes críticas. Ele trouxe um debate interessante e rico no sentido de despertar, nos cidadãos cariocas, o gosto pelas artes, o que se comprova, por exemplo, ao fazer um chamado aos artistas brasileiros para cons-truírem um digno palácio do Imperador e tam-bém do próprio país (MOREIRA DE AZEVEDO, 1877: 14). Depois de tratar de várias constru-ções presentes no Rio de Janeiro..., Moreira de Azevedo situa o leitor frente o Palácio de Belas Artes, uma construção na qual combinam-se a arquitetura e o gosto artístico segundo os juízos do autor. É precisamente na matéria que ele dedica à Academia de Belas Artes onde apro-veita para fazer uma valoração do progresso das artes no Império afirmando que: “As artes entre nós ainda não caminham em estrada aberta; não há gosto artístico, influência da multidão, animação do povo, estudo dos princípios artísticos que devem ser considerados como um elemento essencial para a educação dos homens (...) Ignora-se sua influência na indústria e em todos os elementos materiais da civilização (...) Ainda não se inoculou no país o gosto artístico (...) enquanto não haver proteção, amor pelos artistas, educação artística, enquanto não se difundir pelo povo o gosto, o ensino das artes liberais, enquanto não se nacionalizar a arte, imprimir-lhe um caráter pátrio, nacional (...) não teremos artistas nem o povo que se possa chamar de industrioso e civilizado [sic]” (Azevedo, 1877: 198-199). Civilização, educação, artes liberais, senti-mento nacional fazem parte dos reclamos de Moreira de Azevedo: uma crítica aguda que encontraria, segundo seu entender, a solução dentro da sociedade brasileira da época. Moreira de Azevedo – juntamente com Manoel de Araújo Porto-Alegre e Joaquim Manoel Macedo – fez parte daquela cidade das letras que se bem no começo do século fixou com rigidez a ordem nova da Corte, já para os anos setenta teste-munhou uma ampliação do seu circuito letrado mais rico em opções e questionamentos, ainda legitimando a ordem monárquica. Sua reflexão sobre os monumentos históricos transgride o monumental das construções. No seu pensa-mento, haveria civilização nas construções não apenas pelas dimensões e história, mas pela união dessas com um apurado e vernáculo gosto estético (Azevedo, 1877: 87). Contudo, importa mais para o autor o registro de memórias histó-ricas de edifícios, de irmandades, de personali-dades notáveis que marcaram a história do Rio de Janeiro antes do que se deter em descrições estéticas dos monumentos de tipo religioso e civil. PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 11(1). 2013 ISSN 1695-7121 Hernan Venegas Marcelo 143 Existem outros dois aspectos de interesse no livro de Moreira de Azevedo. O primeiro deles diz respeito às estátuas construídas durante o Império, dedicadas aos beneméritos da história da nação. Segundo ele tais obras – por exemplo, a estátua eqüestre de D. Pedro I8 – se incluíam como uma testemunha latente da história do Brasil e fixavam a memória da nação em tem-pos do Império (Azevedo, 1877: 297). O segundo aspecto relaciona-se ao uso das fontes, especi-ficamente, a tradição oral, o que se evidencia ao reconhecer a importância dos “depoimentos de muitos indivíduos de avançada idade, teste-munhas dos fatos que nos referirão ou conhe-cedores deles pelas tradições conservadas em família” (Azevedo, 1877: 271). Neste aspecto, o do uso das fontes, seu estilo o aproxima ao do seu contemporâneo Joaquim Manoel Macedo. Por último, a reflexão sobre o patrimônio que nele encontramos emerge, igual a de Macedo, desse resgate do passado visível nos monumen-tos históricos cariocas. 4. Considerações gerais Neste trabalho colocou-se em perspectiva histórica a noção do patrimônio no Brasil dando ênfase a etapa correspondente ao Brasil Impé-rio. Mais do que procurar continuidades no que se refere à institucionalização de um órgão que cuidasse da proteção dos monumentos, e esse não existiu durante a etapa em estudo, pensou-se na ideia de patrimônio como uma construção social para melhor compreender a perspectiva histórica da sua trajetória. O seu reconhecimento constatou-se na pro-dução escrita de importantes intelectuais como: Monsenhor Pizarro de Araújo, Manoel de Araújo Porto-Alegre, Joaquim Manoel Macedo e Manoel Duarte Moreira de Azevedo. Por sua vez, essa forma de expressão se relaciona à invenção do próprio conceito do Brasil. A testemunha física dos traços de civilidade da jovem nação brasi-leira foram os monumentos históricos e de cujas representações cuidaram os letrados aqui estu-dados reforçando o caráter histórico e civilizató-rio. No entanto, eles também procuraram esta-belecer a origem histórica de uma arte genuína em tempos do Brasil Colonial. Outras representações sobre o patrimônio, mais artísticas do que histórico-civilizatórias também fizeram parte do seu itinerário histó-rico entre o fim do Império e a criação do Ser-viço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacio-nal, em 1937. Bibliografia Alencastro, Luiz Felipe de; Novais, Fernando 1997 História da Vida Privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, vol. 2. Andrade, Rodrigo Melo Franco de 1952 “Bibliografia geral, publicações oficiais e privadas referentes ao patrimônio histórico e artístico do Brasil na fase anterior à desco-berta do país e durante os períodos colonial e moderno”, En Brasil. 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Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 11(1). 2013 ISSN 1695-7121 144 A noção de patrimônio no Brasil Império Gonçalves, Denise 2010 “Uma história da historiografia de arquite-tura — texto e imagem na definição de uma disciplina”. Revista ArtCultura, Uberlândia, 12(20): 95-115, jan.-jun. Guimarães, Manoel Salgado 1988 “Nação e civilização nos trópicos: o Ins-tituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto da escrita de uma história nacional”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, (1): 5-27. Knauss, Paulo 1999 Cidade Vaidosa: imagens urbanas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Ed. Sette Letras. 2000 “O descobrimento do Brasil em escultura: imagens do civismo”, Projeto História – Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP. São Paulo, (20): 175-192. abril. 2009 “Tempo e Argumento”. Revista do Pro‑grama de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Santa Catarina, UDESC, Florianópolis, 1(1): 17-29. jan. / jun. 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Pedruzzi, Tiago 2007 “O Rio de Janeiro sob a pena de Joaquim Manoel Macedo”, Nau Literária, Revista eletrônica de crítica e teoria de literaturas. Dossiê: a cidade na crônica. Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre. 3(1): 1-5. Rama, Ángel 1985 A cidade das letras. São Paulo: Ed. Bra-siliense. Ramos, Paulo Oliveira 1993 Re-viver o passado: em torno da educação patrimonial e do ensino a distância. Lisboa: Universidade Aberta de Portugal. Dissertação de Mestrado. 2003 A Princesinha Branca e Esbelta e o Dra‑gão Negro e Rotundo. Um Estudo de História do Patrimônio de Lisboa (1888-1950). Lisboa: Universidade Aberta. Tese de Doutorado. Riegl, Aloïs 1987 [1903]. El culto moderno a los monumen‑tos: caracteres y origen. Madrid: Ed. Visor. Peixoto, Gustavo Rocha 2008 Prototombos: o conceito de patrimônio cul‑tural no século XIX e início do XX. En Rodri-gues de Carvalho, Claudia S., et.al. (org.) 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João V de Bragança (1689-1730) foi Rei de Portugal e Algarves desde 1707 até sua morte. 2 “Noticias da Conferencia, que a Academia Real da Historia Portugueza fez em 31 de Julho de 1721”, In: Colleçam dos Documentos, Estatutos e Memorias da Academia Real da Historia Portugueza, Que neste anno de 1721 se compuserão, e se imprimirão por ordem dos seus Censores dedicada a El Rey Nosso Senhor, seu Augustissimo protector e ordenada pelo Conde de Villa Mayor, Secretario da mesma Academia. Lisboa Occidental, Na Officina de Pascoal da Sylva, MDCCXXI. Ramos, Paulo Oliveira. Re-viver o passado: em torno da educação patrimonial e do ensino a distância. Lisboa: [s.n.], 1993. - 218 f :il. Dissertação de Mestrado. Outra referência importante para o estudo histórico da noção de patrimônio em Portugal pertence ao mesmo autor: “A Princesinha Branca e Esbelta e o Dragão Negro e Rotundo. Um Estudo de História do Patrimônio de Lisboa, 1888-1950”, Tese de Doutorado. Lisboa, Universidade Aberta, 2003. 3 D. João VI de Bragança (1767-1826) foi nomeado Príncipe Regente em 1799 e, em 1818, tornou-se Rei de Portugal, Brasil e Algarves. 4 Nos últimos quinze anos têm sido publi-cados importantes trabalhos que tratam da perspectiva histórica do patrimônio e aprofundam em sua reflexão desde diversos olhares disciplinares; dentre os mais impor-tantes podem-se enumerar: “As fachadas da história: os antecedentes, a criação e os trabalhos do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 1937-1968”, de Silvana Rubino (1992); “O tecido do tempo: a idéia de patrimônio cultural no Brasil: 1920-1970”, de Mariza Santos Veloso (1992); “A retórica da perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil”, de José Reginaldo Santos Gonçalves (1996); “O patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil”, de Maria Cecília Londres Fonseca (1997); “Memória, história e patrimônio cultural: notas para um debate”, de Afonso Carlos Marques dos Santos (2007); “Os arquitetos da memória: a construção do Patrimônio His-tórico e Artístico Nacional no Brasil - anos 30 e 40”, de Márcia Chuva (1998); “Imaginária urbana e poder simbólico: escultura pública no Rio de Janeiro e Niterói” (1998) e “Cidade Vaidosa” (1999), de Paulo Knauss de Men-donça; “Da cidade monumento à cidade docu-mento. A trajetória da norma de preservação de áreas urbanas no Brasil: 1937-1990”, de Márcia Sant´Anna (2000); “Memória e patri-mônio: ensaios contemporâneos”, organizado por Mário Chagas e Regina Abreu (2003); “Construir o passado e projetar o futuro: a arquitetura eclética e o projeto civilizatório brasileiro. Rio de Janeiro (1903-1922)”, de Cláudia Thurler Ricci (2004); “Colecionando relíquias... Um estudo sobre a Inspetoria de Monumentos Nacionais (1934-1937)”, de Aline Montenegro Magalhães (2004); “A cidade-atração: a norma de preservação de centros urbanos no Brasil dos anos 90”, de Márcia Sant´Anna (2005); “Cultura é patri-mônio”, de Lúcia Lippi de Oliveira (2009); “O tombamento: de instrumento a processo na construção de narrativas da nação” (2009), da Julia Wagner Pereira e “Prototombos: o conceito de patrimônio cultural no século XX, da autoria de Gustavo Rocha-Peixoto (2009). 5 Um esforço pioneiro para sistematizar os estudos sobre o patrimônio cultural no Brasil antes de sua institucionalização, no século XX, corresponde ao interessante trabalho do professor e arquiteto Gustavo Rocha-Peixoto. Peixoto, 2008. “Prototombos: o conceito de patrimônio cultural no século XIX e início do XX”, In: Carvalho, Claudia S. Guedes de, et.al. (org.) Um olhar contemporâneo sobre a preservação do patrimônio cultural material. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional: 109-118. 6 Valentim da Fonseca e Silva - Mestre Valen-tim - (1745-1813) foi um dos principais artis-tas plástico e arquiteto no Brasil na segunda metade do século XVIII. José Maurício Nunes Garcia (1767-1830) foi um compositor brasi-leiro de música sacra na transição do Brasil Colônia ao Brasil Império e Domingos Cal-das Barbosa (1738 - 1800), sacerdote, poeta e músico brasileiro do século XVIII. PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 11(1). 2013 ISSN 1695-7121 146 A noção de patrimônio no Brasil Império 7 Em 1877 Baptiste Louis Garnier, livreiro-editor do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e figura importante para o desen-volvimento das letras brasileiras do século XIX, referindo-se a primeira edição da obra de Moreira de Azevedo situa como antece-dente um trabalho deste autor, publicado em 1861, e intitulado Pequeno panorama ou des‑cripção dos principais edifícios da cidade do Rio de Janeiro. 8 Dom Pedro I (12 de outubro de 1798 – 24 de setembro de 1834) filho de Dom João VI e de Dona Carlota Joaquina de Bourbon. Proclamou a Independência do Brasil, em 7 de setembro de 1822, separando-se assim de Portugal e tornou-se o primeiro monarca (1822-1831) e fundador do Império do Brasil. Recibido: 01/03/2012 Reenviado: 19/09/2012 Aceptado: 04/10/2012 Sometido a evaluación por pares anónimos
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Título y subtítulo | A noção de patrimônio no Brasil Império |
Autor principal | Venegas Marcelo, Hernan |
Publicación fuente | Pasos. Revista de turismo y patrimonio cultural |
Numeración | Volumen 11. Número 1 |
Sección | Artículos |
Tipo de documento | Artículo |
Lugar de publicación | El Sauzal, Tenerife |
Editorial | Universidad de La Laguna |
Fecha | 2013-01 |
Páginas | pp. 135-146 |
Materias | Turismo ; Patrimonio cultural ; Publicaciones periódicas |
Enlaces relacionados | Página web: http://todopatrimonio.com/revistas/101-pasos-revista-de-turismo-y-patrimonio-cultural |
Copyright | http://biblioteca.ulpgc.es/avisomdc |
Formato digital | |
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Texto | Vol. 11 N.º 1 págs. 135-146. 2013 © PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural. ISSN 1695-7121 A noção de patrimônio no Brasil Império Hernan Venegas Marcelo* Universidade Federal do Rio Grande (FURG)/RS, Brasil Resumo: Este trabalho se insere no campo dos estudos históricos sobre o patrimônio no Brasil, cujas origens remontam antes do surgimento do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), em 1937. De acordo com tal pressuposto, historiou-se a noção de patrimônio durante o século XIX – com ênfase no contexto do Brasil Império – partindo da premissa de ser um conceito socialmente construído. Durante essa etapa não existiam políticas públicas de preservação do patrimônio, precisando antes ser representado enquanto suporte da nação brasileira. Nesse sentido, identificou-se uma reflexão em torno aos monumentos históricos presentes no resgate de memórias históricas da Igreja Católica, em artigos relacionados à arte colonial e em crônicas de cunho memorialístico sobrepondo os seus valores histórico-civilizatório e artístico. Por último, a contribuição teórica deste artigo aponta para uma proposta de estudo histórico do patrimônio em uma etapa prévia a sua institucionalização, cujas representações anteciparam o conceito do patrimônio vigente durante boa parte do século XX. Palavras-chave: história, patrimônio, monumentos históricos. Title: The concept of heritage in Brazil Empire Summary: This work falls within the field of historical studies on heritage in Brazil, whose origins date back before the foundation of ‘Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional’ (SPHAN) in 1937. According to this assumption, was historicized the notion of heritage during the nineteenth century - with emphasis on the context of Brazil Empire - on the premise of being a socially constructed concept. During this stage there were no policies for heritage preservation, before needing to be represented as support of the Brazilian nation. Accordingly, we identified a reflection on the historical monuments present in the rescue of historical memories of the Catholic Church in articles related to colonial art and chronics superimposing their historical-civilizational and artistics values. Finally, the theoretical contribution of this article points to a historical study of heritage at a stage prior to their institutionalization, whose representations anticipated the concept of heritage in force for much of the twentieth century. Keywords: history, heritage, historical monuments. * Historiador e turismólogo. Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense, RJ, 2011. Atualmente cursa estudos de Pós-Doutorado na Universidade Federal do Rio Grande/RS, Brasil com o projeto “Escritas de viagens, turismo e representações: o Rio Grande do Sul entre fins do XIX e metade do XX”. Licenciatura em História pela Universidade de Havana (1998), Mestre em Ciências Pedagógicas – Universidade Pedagógica de Las Villas, Cuba (2002), e Mestre em Gestão Turística de Destinos Locais – Universidade de Havana, Cuba/Universidade de Barcelona, Espanha (2005). E-mail: hvenegas75@yahoo.com Endereço para correspondência: Rua 24 de Maio. No. 49 C. Apto. 202. CEP 96200- 006, Rio Grande, RS, Brasil. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural PAS S www.pasosonline.org PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 11(1). 2013 ISSN 1695-7121 136 A noção de patrimônio no Brasil Império “Patrimônio s. m. [...] 1.herança familiar 2.conjunto dos bens familiares 3.fig. Grande abundância; riqueza; profusão (p. artístico) 4.bem ou conjunto de bens naturais ou culturais de importância reconhecida num determinado lugar, região, país, ou mesmo para a humanidade, que passa(m) por um processo de tombamento para que seja(m) protegido(s) e preservado(s) [...] 5. JUR. Conjunto dos bens, direitos e obrigações economicamente apreciáveis, pertencentes a uma pessoa ou a uma empresa [...]” Vários 2001 Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa, Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, p. 2151. 1. Vestígios históricos do passado As variações polissêmicas, acima expostas, do substantivo patrimônio reforçam seu cará-ter inseparável da práxis humana, tanto num sentido individual quanto coletivo. Foi, precisa-mente, essa práxis de natureza cultural, social, econômica e política, na coletividade, que impôs e legitimou o Brasil dos oitocentos que gradual-mente foi definindo a sua natureza. Desvendar esse mistério da conceitualização do patrimônio no Brasil é o objeto deste artigo o qual inspirou-se no estudo histórico sobre o patrimônio na França realizado por André Chastel e Jean- Pierre Babelon (Chastel-Babelon, 1980). Assim, a motivação aqui apresentada visa historiar os sedimentos históricos da noção de patrimônio ao dar ênfase no contexto do Brasil Império (1822- 1889). As referências a Portugal, na sua condição de metrópole do Brasil, não podem ficar ausentes do balanço histórico que se quer conformar o qual se justifica, historicamente, pela introdu-ção no direito lusitano da proteção ao acervo de arte antiga e aos monumentos de valor histórico. Nesse sentido, um relatório de 1721 apresentado ao Rei D. João V1 pelo Diretor da Academia Real da História Portuguesa, sublinhou a importân-cia histórica de vestígios pré-romanos, romanos, germânicos e árabes nos tempos em que esses exerceram seus domínios em terras portugue-sas2. Tomando ciência daquela situação, o Rei Dom João V decretou por alvará, de 28 de agosto de 1721, que: “daqui em diante nenhuma pessoa, de qual-quer estado, qualidade e condição que seja, desfaça ou destrua em todo, nem em parte, qualquer edifício que mostre ser daqueles tempos, ainda que em parte esteja arruinado e, da mesma sorte, as estátuas, mármores e cipós e que estiveram esculpidos algumas figuras, ou tiveram letreiros fenícios, gregos, romanos, góticos e arábicos, ou lâminas, ou chapas de qualquer metal que contiveram os ditos letreiros ou caracteres; como outros-sim medalhas ou moedas que mostrarem ser daqueles tempos até o Reinado do Senhor Dom Sebastião, nem encubram ou ocultem algumas das sobreditas cousas. Os infratores, sendo pessoas de qualidade, além de incor-rerem no meu desagrado, experimentarão também a demonstração que o caso pedir e merecer a sua desatenção, negligência ou malícia; e as pessoas inferiores de condição incorrerão nas penas impostas pela Ordena-ção do Livro 5, título 12, art. 5º....” (Fundação Pro-Memória, 1987: 66). No entender do historiador português Paulo Oliveira Ramos, o Alvará Régio de 20 de agosto de 1721 constitui uma contribuição lusa ao estudo histórico da salvaguarda do patrimônio na Europa. Conforme seus estudos, o referido alvará destaca-se pelo reconhecimento da impor-tância dos vestígios pré-romanos, romanos, germânicos e árabes em Portugal; pelo entendi-mento abrangente da noção de patrimônio; pelo período histórico ao qual pertencem os denomi-nados “monumentos antigos” – até o reinado de D. Sebastião (1557-1578) e pela atribuição de responsabilidades às câmaras municipais e vilas na salvaguarda do acervo cultural remanescente. Outros aspectos importantes do referido docu-mento são: a existência de uma consignação a ser utilizada pela Real Academia de História Portuguesa para ações de conservação, a aplica-ção de medidas legais frente a possíveis infrações ao acervo herdado e o fato de ter atribuído a dita Academia a coordenação dos assuntos relaciona-dos à salvaguarda dos vestígios históricos elen-cados no alvará (Ramos, 1994, 2003). Contudo, não são muitos os estudos históricos que fazem referência ao caso de Portugal numa história alargada da noção de patrimônio na Europa. Oitenta e três anos depois, o príncipe regente Dom João3 mandou novamente publicar o alvará, exatamente em 4 de agosto de 1802, reconhecendo assim, a importância dos vestígios histórico do passado. Pelo conteúdo do mesmo, os domínios ultramarinos, entre esses o Brasil, ficavam fora do alcance de sua aplicação. Por-tanto, tal precedente na legislação do Reino de Portugal e Algarves em nada alterou os meca-nismos administrativos que regulavam a vida do Brasil no século XVIII. Talvez, houvesse alguma repercussão no Brasil, mas não de forma direta. PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 11(1). 2013 ISSN 1695-7121 Hernan Venegas Marcelo 137 Isso não constitui uma reflexão desacertada, se for levada em consideração que as referências políticas, culturais e jurídicas provinham de Portugal na sua condição de metrópole e que o Brasil era entendido como uma “extensão” do território português que espelhava as institui-ções bragantinas. Ora, o certo é que, 21 anos depois da pro-mulgação do alvará de 1721, o Vice-Rei André de Melo e Castro, conde das Galveias, expediu uma carta endereçada a Luís Pereira Freire de Andrade, governador de Pernambuco. Nela, o Vice-Rei André de Melo e Castro pediu ao Gover-nador de Pernambuco para não ocupar o palácio das Duas Torres, que fora construído por Mau-rício de Nassau, príncipe holandês (MEC/Sphan/ Pró-Memória, 1987: 60). Emitindo cuidados com a preservação da memória, assim se expressou: “Pelo que respeita aos Quartéis que se pre-tendem mudar para o Palácio das duas Tor-res, obra do Conde Maurício de Nassau, em que os Governadores fazem a sua assistência, me lastimo muito que se haja de entregar ao uso violento e pouco cuidadoso dos solda-dos, quem em pouco tempo reduzirão aquela fábrica a uma total dissolução, mas ainda me lastima mais que, com ela, se arruinará tam-bém uma memória que mudamente estava recomendando à posteridade as ilustres e famosas ações que obraram os Portugue-ses na Restauração dessa Capitania” (MEC/ Sphan/Pró-Memória, 1987: 61). Segundo o historiador Haroldo Camargo, a carta em questão é importante pelo fato de constituir o primeiro documento do qual se tem notícia a respeito da preocupação com a preservação de uma edificação colonial e, tam-bém, pelas interpretações que dele se despren-dem. Evidenciam-se assim, algumas indagações: poder-se-ia estabelecer este documento como o referencial histórico de outros projetos públicos para a restauração e conservação do patrimônio cultural brasileiro? Os conteúdos deste docu-mento sugeririam uma linha evolutiva que nos conduziria até os projetos de preservação de monumentos das primeiras décadas do século XX? (Camargo, 2004: 2). Uma resposta atinada a tal questionamento foi dada pelo historiador supra mencionado. Ele argumenta que a exis-tência deste documento histórico remete à inde-pendência portuguesa da Coroa da Espanha com a ascensão dos Bragança ao trono de Portugal, ainda mais quando se considera que o Conde das Galveias - autor do documento em questão – antes dos cargos ocupados no Brasil, havia sido designado embaixador extraordinário em Roma, junto à Santa Sé, pelo monarca D. João V. A carta enviada ao Governador de Pernambuco não constitui um referencial histórico de outros projetos para a salvaguarda do patrimônio cul-tural brasileiro (Camargo, 2004: 2). Não seria pertinente falar para o século XVIII de patrimônio cultural brasileiro, e sim da proteção de uma edificação colonial. O reco-nhecimento do patrimônio é um fenômeno que se constata na produção escrita de importantes intelectuais dos oitocentos, podendo-se inferir, também, que essa forma de expressão é paralela ou decorrente à invenção do próprio conceito de Brasil.4 2. A noção de patrimônio e a invenção do Brasil Segundo o historiador Afonso Carlos Marques dos Santos, a História serve como elemento de coesão das tradições reinventadas e essas se mostram na base do discurso legitimador da nação que inseriu o patrimônio no projeto de construção da identidade nacional ao longo do século XIX e durante boa parte do século XX (Santos, 2007). Frente as contradições socioeco-nômicas desse Brasil dos oitocentos, inventou-se uma nação herdeira nas tradições luso-cristãs – elas seriam a base legítima sobre a qual deveria ocorrer a continuidade histórica para os projetos da monarquia bragantina empenhada em tor-nar civilizada a ex-colônia portuguesa. O Bra-sil que se “inventou” selecionou o passado que melhor se adaptou à sensação de movimento e mudança que imprimiu a presença dos Bragança no empenho em tornar civilizada uma ex-colônia com muitos contrastes sociais (Botelho, 2005: 321-341) perante os olhos das nações civilizadas européias. Na consecução desse objetivo e, do ponto de vista artístico, foi fundamental a chegada ao Brasil de um conjunto de artistas e artífices que é conhecida como a ‘Missão Francesa’. Dos motivos para os quais eles vieram, atendiam, segundo o próprio D. João VI, “ao bem comum, que provém aos meus fiéis vassalos, de se esta-belecer no Brasil uma Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, em que se promova e difunda a instrução e conhecimentos indispensáveis aos homens (...) fazendo-se, portanto, necessário aos habitantes o estudo das Belas-Artes” (Schwarcz, 2008: 208). Mesmo dando um impulso funda-mental às artes e aos ofícios durante anos e assumindo o estilo neoclássico como expressão oficial da arquitetura do Império, a produção PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 11(1). 2013 ISSN 1695-7121 138 A noção de patrimônio no Brasil Império desses artistas não foi suficiente para que suas obras fossem reconhecidas pelo patrimônio luso-brasileiro como um sinônimo da produção artís-tica da jovem civilização nos trópicos. Porém, a imagem oficial do Império também se consolidou com a visão civilizada do Brasil perante o mundo ocidental através da fotogra-fia e mediante a construção de uma memória que justificasse tal empreitada com o apoio fundamental do Instituto Histórico e Geográ-fico Brasileiro (IHGB). Através da fotografia consagrou-se a imagem de um Brasil civilizado e moderno, sobretudo da sua cidade imperial, o Rio de Janeiro, e da figura do Imperador Pedro II (Mauad, 1997: 191). Não havia espaço naque-les anos para registrar em imagens as antigas edificações do Brasil, ao contrário do que acon-tecia na Europa. Por exemplo, na França, nos anos 40 do século XIX Viollet-le-Duc encomen-dava daguerreótipos da igreja de Notre-Dame antes de iniciar a sua restauração (Lowenthal, 1998: 177). No Brasil, importava mais consolidar e representar o Império dos Bragança mundo afora. Já no âmbito interno e a partir da procla-mação da Independência, existiu uma tendência a construção de estátuas cujo fundamento era o culto à nação, “sustentado no ideário do patrio-tismo e afirmado em torno de práticas cívicas” (Knauss: 2009:18). Do ponto de vista legal, não existiram políticas públicas de preservação do patrimônio. Isto não significa a ausência de medidas legais para preservar sua integridade como se comprova com um decreto que D. Pedro I mandou executar referido ao Código Criminal do Brasil, em 1830. No seu capítulo IV “Destrui-ção ou danificação de construções, monumentos e bens públicos” artigo 178 previa-se multas em dinheiro e penas de prisão para quem destru-ísse “monumentos, edifícios, bens públicos ou quaisquer outros objetos destinados à utilidade, decoração ou recreio público” (Soeiro, 1972: 267). Contudo, foi apenas uma medida legal para impedir que o vandalismo atentasse con-tra as expressões visíveis do poder imperial dos Bragança no Brasil. Uma história da noção do patrimônio no Brasil durante o século XIX, além dos exemplos anteriores, identifica-se nas entrelinhas da pro-dução escrita que trouxe à luz memórias histó-ricas do Rio de Janeiro, os traços civilizatórios – visíveis e monumentais – da jovem nação bra-sileira que contribuíram para a definição de uma identidade do Império, associada quase sempre a sua capital. Verificou-se que essa precisava de símbolos, como: monumentos, igrejas, conven-tos, praças, personalidades, ruas, para se tornar visível, palpável e descoberta em sua grandeza. É claro, tal produção não ficou alheia ao pro-cesso de consolidação das instituições imperiais, o que foi ainda reforçado pelos moldes do IHGB cuja leitura da história foi marcada: “(...) por um duplo projeto: dar conta de uma gênese da Nação brasileira, inserindo-a, contudo numa tradição de civilização e progresso, idéias tão caras ao iluminismo. A Nação, cujo retrato o instituto se propõe traçar, deve, portanto, surgir como o desdo-bramento, nos trópicos, de uma civilização branca e européia. Tarefa sem dúvida a exigir esforços imensos, devido à realidade social brasileira, muito diversa daquela que se tem como modelo” (Guimarães, 1988: 8). Em relação com essas intenções, pode-se infe-rir que não seria o patrimônio o centro das pre-ocupações e, sim, os documentos históricos que apontaram para a unidade nacional pretendida pela jovem nação brasileira o que levou a serem coletados, classificados e publicados pelo Insti-tuto Histórico e Geográfico Brasileiro, seguindo o pressuposto de que “a nação brasileira data de 1822, pois a Portugal pertencem os seis anos do Brasil-Reino (1816-1822) e os 316 sob o domínio colonial (1500-1816)” (Revista IHGB, 1898: 9). O regime monárquico teria de enobrecer seu pas-sado em terras da América e limpar das suas origens todo vestígio de atraso e barbárie, afinal tinha um representante dos Bragança ocupando um trono de Ultramar, o que foi possível graças à atuação do IHGB. Neste lugar foi onde gra-vitou uma parte importante da vida intelectual brasileira dos oitocentos e, também, responsável por um projeto histórico que visava unificar a nação através das páginas do seu órgão oficial, a Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Ao se referir aos conteúdos dos primeiros exemplares dessa publicação, o primeiro-secre-tário do Instituto Histórico e Geográfico Brasi-leiro, Joaquim Manoel Macedo, argumentou que “a coleção de nossas revistas se têm tornado em um cofre precioso, onde se guardam em depósito tesouros importantíssimos; e a leitura delas será muitas vezes frutuosa para o ministro, e legisla-dor e o diplomata, e em uma palavra para todos aqueles que não olham com indiferença para as coisas da pátria” (Macedo, 1851: 3). Sem querer minimizar a importância que merecem os aspec-tos relacionados com a escrita da história e com o mito da nação (Certeau, 2000: 54-65), durante o século XIX, o que deseja-se aqui ressaltar é PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 11(1). 2013 ISSN 1695-7121 Hernan Venegas Marcelo 139 que houve preocupações mais imediatas direcio-nadas a tornar civilizado o Brasil do Segundo Reinado (1840-1889), deixando em segundo plano a institucionalização do seu patrimônio cultural. Antes ele precisava ser representado enquanto suporte da jovem nação brasileira, ora fazendo ênfase na dimensão histórico-civiliza-tória, ora ressaltando a dimensão artística dos seus monumentos. 3. A primazia civilizatória do patrimônio O Brasil imaginado precisava da coesão que no mundo das idéias trazia o discurso historio-gráfico do Instituto Histórico e Geográfico Bra-sileiro elaborado “de acordo com os postulados típicos de uma história comprometida com o desvendamento do processo de gênese da nação” (Guimarães, 1988: 8). Ainda que essa intenção fosse uma constante, na segunda metade do século XIX, houve espaço para os assuntos rela-tivos a herança civilizatória luso-cristã no Bra-sil mais visível: os monumentos históricos. No século XIX até o fim do Império, identificaram-se três formas de pensar o patrimônio e todas dentro dos moldes que assumiu a conformação da cidade das letras no Brasil Imperial. A primeira delas pertence ao período prévio à criação do IHGB e caracteriza-se pelo resgate de memórias históricas da Igreja Católica no Bra-sil da qual Monsenhor José de Souza Pizarro e Araújo (1753-1830) é seu representante. Uma segunda forma de pensar o patrimônio no século XIX, mais artística do que histórica, corresponde aos artigos de Manoel de Araújo Porto-Alegre (1806-1879). A ele se atribui as primeiras idéias teóricas sobre a arte no Brasil e a intenção de encontrar as raízes genuínas dela em tempos de domínio colonial lusitano. Há ainda uma terceira maneira na construção do conceito de patrimônio relacionada com o resgate memoria-lístico da cidade do Rio de Janeiro através de crônicas publicadas em jornais da época, escri-tas por Joaquim Manoel Macedo (1820-1882) e por Manuel Duarte Moreira de Azevedo (1832- 1903). Nelas, o Rio de Janeiro descobria-se his-tórica e monumental para os cariocas. Existe um ponto em comum entre essas formas identi-ficadas de pensar o patrimônio: os monumentos históricos. Segundo a perspectiva riegliana, tais monumentos – os históricos – são uma criação da sociedade moderna (Riegl, 1987 [1903]) e tes-temunhas de um passado revisitado pela Histó-ria (Magalhaes, 2004). Eles foram o centro das reflexões e, ao mesmo tempo, os traços visíveis da herança civilizatória luso-cristã em terras brasileiras. Pizarro de Araújo, Araújo Porto-Alegre, Macedo e Moreira de Azevedo foram represen-tantes da cidade das letras que fixou as institui-ções que mantinham a ordem estabelecida pelo poder imperial no Brasil. Na América Latina, “foi evidente que a cidade das letras arreme-dou a majestade do Poder, apesar de que este regeu as operações letradas, inspirando seus princípios de concentração, elitismo e hierarqui-zação” (Rama, 1985: 54). Para o caso do Brasil, diferente dos domínios coloniais hispânicos, tal tarefa foi reforçada com o traslado da Corte dos Bragança o que trouxe consigo a constituição de uma elite política que tinha o monopólio das letras e responsável pela missão civilizadora da construção do Império Brasileiro. Boa parte desses letrados foram membros ativos do IHGB e suas pesquisas foram publicadas pelo seu órgão oficial. Existe em suas obras, uma rela-ção entre a produção do conhecimento histórico desde os tempos joaninos até o fim do Império e o reclamo ou reconhecimento de elementos de identidade e civilizatórios na arquitetura legada pela presença lusitana no Brasil. Em 1820, “na Impressão Regia e com licença de Sua Magestade”, foram publicadas as “Memórias históricas do Rio de Janeiro e das províncias anexas a jurisdição do Vice-Rei do Estado do Brasil, dedicadas a El-Rei Nosso Senhor D. João VI, por José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo. Natural do Rio de Janeiro, Bacharel Formado em Canones, do Conselho de Sua Magestade, Monsenhor/Arcipreste da Capella Real, Procurador Geral das três Ordens Militares”. Seu autor pesquisou, coletou e clas-sificou documentos em numerosos arquivos eclesiásticos e civis não só circunscritos ao Rio de Janeiro, mas a outras cidades do Brasil e até Lisboa. Como um fiel cronista do período joanino, Pizarro e Araújo, em seu livro, teceu comentários historiográficos sobre a interioriza-ção imposta pela metrópole. Pode-se supor que não faltem nele referências às memórias históri-cas da Igreja Católica, já que essa era um pilar do poder real. Encontram-se, nas Memórias....relatos da ori-gem da fundação da Província do Rio de Janeiro, dados históricos dos prelados, dos governadores, das igrejas matrizes; assim como narrações detalhadas dos desmembramentos de paróquias e outro tipo de informações históricas (Peixoto, 2008: 114) com uma sistematização que o colo-cou como referência para outras pesquisas his-tóricas no decorrer do século. Também, indepen-dente da motivação de Pizarro e Araújo, suas PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 11(1). 2013 ISSN 1695-7121 140 A noção de patrimônio no Brasil Império “Memórias...” tornaram-se um inventário deta-lhado e descritivo dos monumentos de tipo reli-giosos na diocese do Rio de Janeiro: evidência da presença civilizatória luso-cristã (Peixoto, 2008: 114)5. Entretanto, não se acham em seu livro apuradas descrições das construções religiosas, pois lhe importavam mais a sistematização e o registro de memórias do que descrições estéti-cas das edificações religiosas. Já as primeiras reflexões teóricas sobre a arte, em específico, a religiosa, seriam motivos de outros artigos duas décadas depois da aparição das Memórias... de Monsenhor Pizarro e Araújo e foram da autoria de Manoel de Araújo Porto-Alegre (1806-1879), um dos mais importantes letrados oitocentistas. Esse homem de vasta experiência e erudição se destacou no mundo das artes, no seu sen-tido mais amplo, e sua percepção delas merece especial atenção uma vez que em seus escritos existe uma clara intenção em pensar teorica-mente diversas questões artísticas no Brasil. As reflexões de Porto-Alegre desenvolvidas no artigo “Fragmentos de notas de viagem de um artista brasileiro” expressam essa última preocupação. Neste artigo, ele fez uma refe-rência indireta à arte brasileira quando afirma que “toda arquitetura que for despejada de seus ornatos e reduzida à sua mais simples expressão, e que nesta conserva hum caráter peculiar, essa é uma nova arquitetura” (Porto- Alegre, 1843: 72). Ou seja, há um reclamo, por trás dessas reflexões, a autenticidade da arte brasileira ao ele reconhecer que o apogeu da arte brasileira só seria possível quando o Bra-sil fosse tão consciente da história da sua arte como a Europa. Segundo Porto-Alegre, uma vez que o Brasil atingisse aquela consciência, a arte se ergueria e vingaria com a autoctonia seme-lhante à alcançada por Fonseca e Silva, José Maurício e Caldas6 no espírito de “uma moci-dade inteligente e corajosa” (Peixoto, 2008: 111). No referido trabalho de Porto-Alegre apare-cem importantes reflexões teóricas sobre a arte, sem se desgrudar da vontade civilizatória para a qual o Brasil se empenhava. Também se eviden-cia o reclamo por uma arte autóctone que reto-masse o espírito dos mestres da colônia e, por último, fica demonstrada sua preferência pelos monumentos religiosos como um sinal visível de traços civilizatórios. Ao elevar os artífices do século XVIII à condição de artistas e colocá-los no mesmo patamar dos artistas europeus a figu-ras como o Mestre Valentim, José de Oliveira e José Maurício (Porto-Alegre, 1845: 245), Porto- Alegre advertia que a presença de um passado artístico glorioso poderia ser o começo de uma arte tipicamente brasileira antes da chegada da Missão Francesa no início dos oitocentos. Outros artigos de Porto-Alegre, publicados na revista Minerva Brasiliense, trataram da arquitetura religiosa no Rio de Janeiro, especifi-camente, das igrejas de Nossa Senhora da Can-delária, a de Santa Cruz e a de Santa Luzia. Além de ele ter reconhecido traços civilizatórios no estilo da construção dessas igrejas, existem outras reflexões. Segundo Porto-Alegre, essas construções eram “grandes documentos porque eles são o livro que narra um suplemento a história” (Porto-Alegre, 1843: 73), ou seja, uma interessante concepção de uma leitura histó-rica na qual o simbólico monumental tinha um papel importante. Outro dos textos importantes da sua autoria foi o intitulado “Memória sobre a Antiga Escola Fluminense de Pintura”, publi-cado na Revista do Instituto Histórico e Geográ-fico Brasileiro (Porto-Alegre, 1841: 547-557). Não poucos estudos sobre o patrimônio no Brasil têm catalogado esse trabalho como a primeira vez que um intelectual brasileiro reconhecia a qualidade da arte produzida no Brasil antes da chegada da Corte Portuguesa e da Missão Francesa. Porém, Rodrigo de Melo Franco e Andrade, figura indissociável da histó-ria do patrimônio no século XX, considera que o texto mais antigo sobre a história das artes plásticas no Brasil é: “um fragmento da memória sobre os fatos notáveis da Capitania de Minas Gerais, composto em 1790 por Joaquim José da Silva, Vereador da 2ª. Câmara de Mariana, contendo uma resenha histórica e crítica da evolução das formas da arquitetura e escul-tura ocorridas naquela região, com referên-cias numerosas à autoria das obras de arte que menciona. Utilizada e transcrita, par-cialmente, na biografia de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, publicada em 1858 por José Ferreira Bretas, a memória alu-dida incluía por certo resenha equivalente a respeito da evolução da pintura mineira, bem como talvez ainda outros informes de inestimável valor, mas o respectivo original perdeu-se. (...) O cronista teria deixado infor-mes insupríveis acerca dos pintores do século XVIII em Minas Gerais, sua formação e suas obras. (...) Embora, porém, reduzida a um fragmento de pouco mais de 800 palavras, a memória escrita pelo vereador Joaquim José da Silveira é não só a pedra angular de tudo que se apurou e escreveu a respeito do Aleija-dinho, mas também das obras arquitetônicas e escultóricas mineiras e os respectivos auto- PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 11(1). 2013 ISSN 1695-7121 Hernan Venegas Marcelo 141 res. Menos importante e luminosa que a do cronista das artes plásticas de Minas Gerais no período colonial, a Memória sobre a antiga escola fluminense de pintura, publicada em 1841 por Manuel de Araújo Porto-Alegre, tem, entretanto, merecimento excepcional, gerando maior número de escritos sobre a matéria que o trabalho deixado pelo vere-ador setecentista (...) ele foi, de fato, o pio-neiro dos estudos sobre a história da arte no Brasil, pois a memória de 1790 de Joaquim José da Silva só veio a ser publicada, como se adiantou, longos anos depois de impressa a sua acerca da antiga escola fluminense de pintura”. (Andrade, 1952: 130-132). Fora essas precisões historiográficas, reto-mando a análise dos textos de Pizarro e Araújo e de Porto-Alegre, pode-se dizer que com eles se encerram as duas primeiras propostas de cons-trução teórica do patrimônio – chamo a atenção de que essa palavra não se explicita nos docu-mentos estudados – e sim a de monumentos e arte, no sentido geral, vistos como sinônimos de civilização. A terceira análise da produção escrita, no século XIX, ao pensar o patrimônio teve uma ampliação no número e tipologia das edifica-ções. Não apenas as religiosas, mas de tipo civis e militares que personificavam o Brasil Impe-rial e que, também, constituíam amostras de civilização visíveis na cidade do Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo, tal produção escrita se empe-nhou em reconhecê-los – e para isso abriu mão das tradicionais fontes documentais – em seu conjunto como o todo integrante de uma iden-tidade, a da capital e vitrine do Império: o Rio de Janeiro. Os principais representantes dessa forma de pensar o patrimônio foram Joaquim Manoel de Macedo (1820-1882) e Manoel Duarte Moreira de Azevedo (1832-1903), também mem-bros do IHGB. Os edifícios do Rio de Janeiro seriam pre-texto em Joaquim Manoel Macedo para andar a cidade e convidar os leitores do jornal “O Commércio” a descobri-la através de crônicas. Elas foram recopiladas e publicadas em formato de livro sob o título Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro, entre 1862 e 1863. Mais ameno em sua leitura, se comparado com os livros e artigos anteriormente analisados, inclusive com o de seu contemporâneo Moreira de Azevedo, o interesse do autor fica logo esclarecido nas pági-nas primeiras do livro ao afirmar que: “(...) não era das províncias centrais e lon-gínquas que pretendo falar. Dessas temos notícia de que fosforizam as suas eleições periodicamente, e é o que basta. Quanto ao mais, representam um mundo que ainda está à espera do seu Colombo; e não admira que assim exista ignorado, quanto é certo que nem conhecemos bem a cidade de S. Sebas-tião do Rio de Janeiro. Note-se que esta incú-ria seria escusável ao montanhês de Minas, ao guasca do Sul, ao caipira do Paraná; o que, porém, muito mais surpreende é que os próprios cariocas não estejam ao fato da his-tória e das crônicas da capital, de que tanto se ufanam” (Macedo, 1862: 20). Para Joaquim Manoel Macedo existia uma cidade cuja história e identidade se expõe de forma invisível em seus monumentos históricos e que foi a verdadeira interlocutora dos passeios realizados com os leitores da época (Figura 1). Esses monumentos históricos precisavam ser interpretados, decodificados em sua significân-cia histórica e identitária, para o qual o autor fazia deter seus leitores nos lugares depositá-rios de lendas e tradições e da história do Rio de Janeiro, por exemplo, quando situa o leitor frente ao Palácio Imperial e pede que “paremos agora um pouco e conversemos por dez minutos. É justo que estudemos com interesse a história do Palácio Imperial” (Macedo, 1862: 21). Com um tom “brincalhão e às vezes epigramático” (Pedruzzi, 2007) que amenizava o relato histó-rico dos monumentos cariocas, assim Joaquim Manoel Macedo passeia pela cidade, visitando o Palácio Imperial, o Passeio Público, o Convento de Santa Teresa, o Convento de Santo Antônio, Figura 1. Largo do Paço Imperial e Rua da Direita. Fotografia Marc Ferrez, 1894. Acervo Digital da Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, Brasil. PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 11(1). 2013 ISSN 1695-7121 142 A noção de patrimônio no Brasil Império a Igreja de São Pedro, o Colégio de Pedro II, a Capela Imperial e a Santa Sé do Rio de Janeiro. Ao todo, nesse livro de Joaquim Manoel Macedo há cinco edifícios de tipos religioso e três de tipos civil, todos guardiães da história carioca. Essas edificações foram testemunha de um passado de três séculos e meio onde se misturaram a tradição católica e a presença dos Bragança, por sinal, um passado pouco conhe-cido, na época, devido à preferência de alguns cariocas em conhecer mais as montanhas da Suíça e os jardins e palácios de Paris e Londres do que a cidade do Rio de Janeiro (Macedo, 1862: 20). Nas edificações visitadas, o predomínio de valores históricos por sobre os artísticos caracte-riza a reflexão desse autor, inclusive ao tratar do estado de conservação delas. De fato, são breves descrições artísticas se comparadas com as nar-rações históricas, dados de personagens históri-cos, lendas e imaginário carioca em que se apoia para construir a narração que caracteriza Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro. Para Joaquim Manoel Macedo importava mais o resgate da história da cidade do Rio de Janeiro – reiteradamente chamada de Sebastianópolis em clara alusão à tradição que se esconde nas histórias de seus monumentos históricos. E, para isso, para incentivar o amor dos cariocas pela cidade o autor recorre a elementos narrativos inovadores, não importava “que o sobrenatural se misturasse nesta tradição com os fatos regis-trados na História” (Macedo, 1862: 131). Esse estilo narrativo, sui generis, de Macedo leva seus leitores da época, e ainda os atuais, a acompa-nhá- lo em suas andanças pela cidade. Também histórica e monumental se desco-bre a cidade do Rio de Janeiro nas reflexões de Manuel Duarte Moreira de Azevedo (1832-1903) através de suas construções religiosas, civis e militares, porém, num estilo narrativo diferente se comparado com o de seu contemporâneo Joaquim Manoel Macedo. Entre umas e outras matérias Moreira de Azevedo inseriu esboços biográficos de homens notáveis, repetindo dessa forma um padrão da época ao escrever a histó-ria. Grosso modo, é essa a proposta de Moreira de Azevedo no livro O Rio de Janeiro: sua histó‑ria, monumentos, homens notáveis, usos e curio‑sidades (Azevedo, 1877). Esta edição de 1877 foi condensada em dois volumes com 32 matérias dedicadas às edificações do Rio de Janeiro.7 Nas reflexões de Moreira de Azevedo sobre as construções civis são importantes as valorações de tipo estético, por sinal, bastantes críticas. Ele trouxe um debate interessante e rico no sentido de despertar, nos cidadãos cariocas, o gosto pelas artes, o que se comprova, por exemplo, ao fazer um chamado aos artistas brasileiros para cons-truírem um digno palácio do Imperador e tam-bém do próprio país (MOREIRA DE AZEVEDO, 1877: 14). Depois de tratar de várias constru-ções presentes no Rio de Janeiro..., Moreira de Azevedo situa o leitor frente o Palácio de Belas Artes, uma construção na qual combinam-se a arquitetura e o gosto artístico segundo os juízos do autor. É precisamente na matéria que ele dedica à Academia de Belas Artes onde apro-veita para fazer uma valoração do progresso das artes no Império afirmando que: “As artes entre nós ainda não caminham em estrada aberta; não há gosto artístico, influência da multidão, animação do povo, estudo dos princípios artísticos que devem ser considerados como um elemento essencial para a educação dos homens (...) Ignora-se sua influência na indústria e em todos os elementos materiais da civilização (...) Ainda não se inoculou no país o gosto artístico (...) enquanto não haver proteção, amor pelos artistas, educação artística, enquanto não se difundir pelo povo o gosto, o ensino das artes liberais, enquanto não se nacionalizar a arte, imprimir-lhe um caráter pátrio, nacional (...) não teremos artistas nem o povo que se possa chamar de industrioso e civilizado [sic]” (Azevedo, 1877: 198-199). Civilização, educação, artes liberais, senti-mento nacional fazem parte dos reclamos de Moreira de Azevedo: uma crítica aguda que encontraria, segundo seu entender, a solução dentro da sociedade brasileira da época. Moreira de Azevedo – juntamente com Manoel de Araújo Porto-Alegre e Joaquim Manoel Macedo – fez parte daquela cidade das letras que se bem no começo do século fixou com rigidez a ordem nova da Corte, já para os anos setenta teste-munhou uma ampliação do seu circuito letrado mais rico em opções e questionamentos, ainda legitimando a ordem monárquica. Sua reflexão sobre os monumentos históricos transgride o monumental das construções. No seu pensa-mento, haveria civilização nas construções não apenas pelas dimensões e história, mas pela união dessas com um apurado e vernáculo gosto estético (Azevedo, 1877: 87). Contudo, importa mais para o autor o registro de memórias histó-ricas de edifícios, de irmandades, de personali-dades notáveis que marcaram a história do Rio de Janeiro antes do que se deter em descrições estéticas dos monumentos de tipo religioso e civil. PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 11(1). 2013 ISSN 1695-7121 Hernan Venegas Marcelo 143 Existem outros dois aspectos de interesse no livro de Moreira de Azevedo. O primeiro deles diz respeito às estátuas construídas durante o Império, dedicadas aos beneméritos da história da nação. Segundo ele tais obras – por exemplo, a estátua eqüestre de D. Pedro I8 – se incluíam como uma testemunha latente da história do Brasil e fixavam a memória da nação em tem-pos do Império (Azevedo, 1877: 297). O segundo aspecto relaciona-se ao uso das fontes, especi-ficamente, a tradição oral, o que se evidencia ao reconhecer a importância dos “depoimentos de muitos indivíduos de avançada idade, teste-munhas dos fatos que nos referirão ou conhe-cedores deles pelas tradições conservadas em família” (Azevedo, 1877: 271). Neste aspecto, o do uso das fontes, seu estilo o aproxima ao do seu contemporâneo Joaquim Manoel Macedo. Por último, a reflexão sobre o patrimônio que nele encontramos emerge, igual a de Macedo, desse resgate do passado visível nos monumen-tos históricos cariocas. 4. Considerações gerais Neste trabalho colocou-se em perspectiva histórica a noção do patrimônio no Brasil dando ênfase a etapa correspondente ao Brasil Impé-rio. Mais do que procurar continuidades no que se refere à institucionalização de um órgão que cuidasse da proteção dos monumentos, e esse não existiu durante a etapa em estudo, pensou-se na ideia de patrimônio como uma construção social para melhor compreender a perspectiva histórica da sua trajetória. O seu reconhecimento constatou-se na pro-dução escrita de importantes intelectuais como: Monsenhor Pizarro de Araújo, Manoel de Araújo Porto-Alegre, Joaquim Manoel Macedo e Manoel Duarte Moreira de Azevedo. Por sua vez, essa forma de expressão se relaciona à invenção do próprio conceito do Brasil. A testemunha física dos traços de civilidade da jovem nação brasi-leira foram os monumentos históricos e de cujas representações cuidaram os letrados aqui estu-dados reforçando o caráter histórico e civilizató-rio. No entanto, eles também procuraram esta-belecer a origem histórica de uma arte genuína em tempos do Brasil Colonial. Outras representações sobre o patrimônio, mais artísticas do que histórico-civilizatórias também fizeram parte do seu itinerário histó-rico entre o fim do Império e a criação do Ser-viço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacio-nal, em 1937. Bibliografia Alencastro, Luiz Felipe de; Novais, Fernando 1997 História da Vida Privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, vol. 2. Andrade, Rodrigo Melo Franco de 1952 “Bibliografia geral, publicações oficiais e privadas referentes ao patrimônio histórico e artístico do Brasil na fase anterior à desco-berta do país e durante os períodos colonial e moderno”, En Brasil. 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Disponível em www.histo-riaehistoria. com.br [Artigo publicado em CD e apresentado originalmente no VII Encontro de História de Mato Grosso do Sul: Patrimô-nio Histórico e Cultural: Identidade e Poder, Campo Grande, MS, 19-22 outubro de 2004.] Certeau, Michel de 2000 “A história como mito”. En A escrita da história. (p. 54-65). Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária. Choay, Françoise 2006 A alegoria do patrimônio. São Paulo: Ed. EDUSP. Fundação Pro-Memória 1987 Rodrigo e o SPHAN. Coletânea de textos sobre patrimônio cultural. Rio de Janeiro: Ministério da Cultura/Fundação Pró-Memória. Garnier, Baptiste Louis 1877 “Nota à segunda edição”, In O Rio de Janeiro: sua historia, monumentos, homens notáveis, usos e curiosidades. Rio de Janeiro: B.L. Garnier/Livreiro-editor do Instituto His-tórico Brazileiro. 2 Vol. PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 11(1). 2013 ISSN 1695-7121 144 A noção de patrimônio no Brasil Império Gonçalves, Denise 2010 “Uma história da historiografia de arquite-tura — texto e imagem na definição de uma disciplina”. Revista ArtCultura, Uberlândia, 12(20): 95-115, jan.-jun. Guimarães, Manoel Salgado 1988 “Nação e civilização nos trópicos: o Ins-tituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto da escrita de uma história nacional”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, (1): 5-27. Knauss, Paulo 1999 Cidade Vaidosa: imagens urbanas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Ed. Sette Letras. 2000 “O descobrimento do Brasil em escultura: imagens do civismo”, Projeto História – Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP. São Paulo, (20): 175-192. abril. 2009 “Tempo e Argumento”. Revista do Pro‑grama de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Santa Catarina, UDESC, Florianópolis, 1(1): 17-29. jan. / jun. 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João V de Bragança (1689-1730) foi Rei de Portugal e Algarves desde 1707 até sua morte. 2 “Noticias da Conferencia, que a Academia Real da Historia Portugueza fez em 31 de Julho de 1721”, In: Colleçam dos Documentos, Estatutos e Memorias da Academia Real da Historia Portugueza, Que neste anno de 1721 se compuserão, e se imprimirão por ordem dos seus Censores dedicada a El Rey Nosso Senhor, seu Augustissimo protector e ordenada pelo Conde de Villa Mayor, Secretario da mesma Academia. Lisboa Occidental, Na Officina de Pascoal da Sylva, MDCCXXI. Ramos, Paulo Oliveira. Re-viver o passado: em torno da educação patrimonial e do ensino a distância. Lisboa: [s.n.], 1993. - 218 f :il. Dissertação de Mestrado. Outra referência importante para o estudo histórico da noção de patrimônio em Portugal pertence ao mesmo autor: “A Princesinha Branca e Esbelta e o Dragão Negro e Rotundo. Um Estudo de História do Patrimônio de Lisboa, 1888-1950”, Tese de Doutorado. Lisboa, Universidade Aberta, 2003. 3 D. João VI de Bragança (1767-1826) foi nomeado Príncipe Regente em 1799 e, em 1818, tornou-se Rei de Portugal, Brasil e Algarves. 4 Nos últimos quinze anos têm sido publi-cados importantes trabalhos que tratam da perspectiva histórica do patrimônio e aprofundam em sua reflexão desde diversos olhares disciplinares; dentre os mais impor-tantes podem-se enumerar: “As fachadas da história: os antecedentes, a criação e os trabalhos do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 1937-1968”, de Silvana Rubino (1992); “O tecido do tempo: a idéia de patrimônio cultural no Brasil: 1920-1970”, de Mariza Santos Veloso (1992); “A retórica da perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil”, de José Reginaldo Santos Gonçalves (1996); “O patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil”, de Maria Cecília Londres Fonseca (1997); “Memória, história e patrimônio cultural: notas para um debate”, de Afonso Carlos Marques dos Santos (2007); “Os arquitetos da memória: a construção do Patrimônio His-tórico e Artístico Nacional no Brasil - anos 30 e 40”, de Márcia Chuva (1998); “Imaginária urbana e poder simbólico: escultura pública no Rio de Janeiro e Niterói” (1998) e “Cidade Vaidosa” (1999), de Paulo Knauss de Men-donça; “Da cidade monumento à cidade docu-mento. A trajetória da norma de preservação de áreas urbanas no Brasil: 1937-1990”, de Márcia Sant´Anna (2000); “Memória e patri-mônio: ensaios contemporâneos”, organizado por Mário Chagas e Regina Abreu (2003); “Construir o passado e projetar o futuro: a arquitetura eclética e o projeto civilizatório brasileiro. Rio de Janeiro (1903-1922)”, de Cláudia Thurler Ricci (2004); “Colecionando relíquias... Um estudo sobre a Inspetoria de Monumentos Nacionais (1934-1937)”, de Aline Montenegro Magalhães (2004); “A cidade-atração: a norma de preservação de centros urbanos no Brasil dos anos 90”, de Márcia Sant´Anna (2005); “Cultura é patri-mônio”, de Lúcia Lippi de Oliveira (2009); “O tombamento: de instrumento a processo na construção de narrativas da nação” (2009), da Julia Wagner Pereira e “Prototombos: o conceito de patrimônio cultural no século XX, da autoria de Gustavo Rocha-Peixoto (2009). 5 Um esforço pioneiro para sistematizar os estudos sobre o patrimônio cultural no Brasil antes de sua institucionalização, no século XX, corresponde ao interessante trabalho do professor e arquiteto Gustavo Rocha-Peixoto. Peixoto, 2008. “Prototombos: o conceito de patrimônio cultural no século XIX e início do XX”, In: Carvalho, Claudia S. Guedes de, et.al. (org.) Um olhar contemporâneo sobre a preservação do patrimônio cultural material. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional: 109-118. 6 Valentim da Fonseca e Silva - Mestre Valen-tim - (1745-1813) foi um dos principais artis-tas plástico e arquiteto no Brasil na segunda metade do século XVIII. José Maurício Nunes Garcia (1767-1830) foi um compositor brasi-leiro de música sacra na transição do Brasil Colônia ao Brasil Império e Domingos Cal-das Barbosa (1738 - 1800), sacerdote, poeta e músico brasileiro do século XVIII. PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 11(1). 2013 ISSN 1695-7121 146 A noção de patrimônio no Brasil Império 7 Em 1877 Baptiste Louis Garnier, livreiro-editor do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e figura importante para o desen-volvimento das letras brasileiras do século XIX, referindo-se a primeira edição da obra de Moreira de Azevedo situa como antece-dente um trabalho deste autor, publicado em 1861, e intitulado Pequeno panorama ou des‑cripção dos principais edifícios da cidade do Rio de Janeiro. 8 Dom Pedro I (12 de outubro de 1798 – 24 de setembro de 1834) filho de Dom João VI e de Dona Carlota Joaquina de Bourbon. Proclamou a Independência do Brasil, em 7 de setembro de 1822, separando-se assim de Portugal e tornou-se o primeiro monarca (1822-1831) e fundador do Império do Brasil. Recibido: 01/03/2012 Reenviado: 19/09/2012 Aceptado: 04/10/2012 Sometido a evaluación por pares anónimos |
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