Vol. 7 Nº 1 págs. 115-125. 2009
www.pasosonline.org
© PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural. ISSN 1695-7121
Opiniones y ensayos
O Saber Patrimonial e a Arqueologia de Michel Foucault:
princípios metodológicos de uma análise crítica e política dos conceitos
Alexandre Fernandes Corrêa1
alexcorrea@antropologia.com.br
Universidade Federal do Maranhão (Brasil)
Resumo: Este artigo analisa o saber patrimonial no domínio das ações preservacionistas, identificando
suas peculiaridades e perspectivas na atualidade. Reflete especialmente aspectos teóricos relacionados à
arqueologia de Michel Foucault, através das possibilidades de uma análise crítica e política dos
conceitos, na sociedade contemporânea.
Palavras-chave: Patrimônio biocultural; Memória social; Michel Foucault.
Abstract: This article analyzes patrimonial knowledge in the domain of the preservacionistas actions,
identifying to its peculiarities and perspectives in the present time. It especially reflects theoretical as-pects
related to the archaeology of Michel Foucault, through the possibilities of a critical analysis and
politics of the concepts, in the society contemporary.
Keywords: Biocultural heritage; Social memory; Michel Foucault.
116 O Saber Patrimonial e a Arqueologia de Michel Foucault: ...
PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 7(1). 2009 ISSN 1695-7121
Introdução
Este artigo faz parte de reflexões
metodológicas efetuadas para orientar os
trabalhos de pesquisa que tiveram como
resultado uma tese de doutorado defendida
em 2001 (Corrêa, 2003). Por conseguinte,
este texto destaca procedimentos de análise
realizados no decorrer dos trabalhos de
campo com bens e acervos culturais
etnográficos e bioculturais, que formam o
escopo da referida tese acadêmica. O
intuito desse artigo é explicitar numa
perspectiva crítica a importância do uso dos
princípios da arqueologia de Michel
Foucault no estudo dos processos de
patrimonialização que têm sido
desenvolvidos recentemente na sociedade
brasileira.
O argumento básico apresentado é de
que através das propostas metodológicas
defendidas no livro clássico Arqueologia do
Saber (1995)2, se pode atingir camadas
profundas, estruturas de sentidos, dos
enunciados elaborados sobre o saber
patrimonial. Ao perscrutar as formações
discursivas que informam a prática
preservacionista, tanto na área dos
patrimônios e das memórias da cultura,
como também da natureza, podemos
recolher ganhos críticos e políticos de
incomensurável valor heurístico3. Trata-se,
assim, de um breve artigo teórico e
metodológico, mais útil aos pesquisadores
iniciantes, pois talvez traga poucas
descobertas aos especialistas no
pensamento de Michel Foucault. O que traz
de novo, contribuindo com o debate acerca
do tema do patrimônio cultural e das
memórias sociais, são algumas incursões no
campo empírico, a título de ilustrar a
reflexão com análises da fenomenologia
social e cultural produzida na aventura
antropológica concreta.
O Saber Patrimonial: peculiaridades e
perspectivas
O saber patrimonial será considerado
aqui como todo discurso e toda prática
enunciados e executados em nome da
constituição de qualquer espécie de
patrimônio4, seja ele natural, cultural,
econômico, jurídico, etc. No entanto, por
motivos de economia de espaço, nosso
objeto de reflexão se limitará especialmente
às peculiaridades, perspectivas e
prospectivas referentes ao saber
patrimonial etnológico e as políticas de
preservação dos patrimônios bioculturais.
Uma pergunta logo se impõe quando
apresentamos a expressão “saber
patrimonial”: qual o sentido do uso da
palavra “saber”? Esse termo é usado aqui
sobre influência direta dos textos de Michel
Foucault, e se apóia como já foi adiantado,
preferencialmente, na obra Arqueologia do
Saber – na qual este autor revelou as
características de seu método de trabalho.
Nas análises do filósofo um saber é um
“conjunto de elementos, formados de
maneira regular por uma prática
discursiva”. Ora, como se sabe, este
conjunto é indispensável à constituição de
qualquer ciência, no entanto, não se destina
necessariamente a lhe dar lugar exclusivo.
Essa apresentação do problema se aplica ao
nosso estudo já que o ‘saber patrimonial’ – é
preciso não esquecer – se constituí não só
por diferentes disciplinas científicas, mas
também pelas artes, pela literatura,
filosofia, religião, isto é, por toda uma
miríade de conhecimentos, que abarcam
variados campos epistêmicos.
Para frisar de modo mais contundente a
definição do que seja um saber,
propriamente dito, Foucault destaca mais
diretamente:
Um saber é aquilo de que podemos falar
em uma prática discursiva que se encontra
assim especificada: o domínio constituído
pelos diferentes objetos que irão adquirir ou
não um status científico; um saber é,
também, o espaço em que o sujeito pode
tomar posição para falar dos objetos de que
se ocupa em seu discurso; um saber é
também o campo de coordenação e de
subordinação em que os conceitos
aparecem, se definem, se aplicam e se
transformam; finalmente, um saber se
define por possibilidades de utilização e de
apropriação oferecidas pelo discurso
(Foucault, 1995: 206-7).
Para um entendimento preciso do que se
vislumbra como ‘saber patrimonial’, e
considerando-se os conteúdos da definição
de Foucault, exemplificamos sua aplicação
em nossa pesquisa sobre os patrimônios
Alexandre Fernandes Corrêa 117
PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 7(1). 2009 ISSN 1695-7121
etnológicos e bioculturais. Seguindo a
ordem dos termos sublinhados na citação
acima, tem-se:
1. O domínio dos objetos: são
especificados como os bens e valores
concretos que adquirem o status de
patrimônios (ou semióforos5);
2. O domínio do sujeito: deve ser
determinado no plural, já que nos
remetemos aos diferentes especialistas que
têm a legitimidade de apresentar pareceres
e encaminhar pedidos de tombamentos;
3. O domínio dos conceitos e das
categorias: estes aparecem associados ao
termo do patrimônio, como o histórico, o
artístico, e, especialmente, o etnográfico;
4. O domínio das possibilidades de usos:
em que se encenam as perspectivas e
prospectivas dos discursos patrimoniais,
isto é, as ações de preservação, conservação
e promoção dos bens culturais tombados, ou
que são objeto de alguma ação acautelar,
por parte do Poder Público.
É desta forma que se pretendeu
perceber os discursos e as práticas
efetuadas em nome do patrimônio
etnológico e biocultural na sociedade
brasileira, como constituintes de um saber
patrimonial. Pois, é preciso destacar, há
saberes que são independentes das ciências
e das técnicas, mas não há saber sem uma
prática discursiva definida. E como toda
prática discursiva define-se pelo saber que
ela forma, pretende-se, com base nestes
princípios, desenvolver os pontos da
investigação sobre os novos domínios do
conhecimento da natureza e da cultura.
Como exercício de análise mais
específico toma-se o conjunto histórico de
procedimentos e conceitos, enunciados em
torno da idéia de patrimônio etnológico e
biocultural. A idéia de preservação
atravessou décadas do século XX
cristalizando-se em dispositivos
institucionais, como departamentos, órgãos,
secretarias, conselhos, superintendências,
etc., onde atuam e agenciam-se pessoas e
coisas em nome do patrimônio e da
memória.
É desse modo que a pesquisa almejou
revelar as práticas discursivas em torno do
patrimônio cultural em sua complexidade e
em sua densidade. Neste particular cabem
umas palavras de M. Foucault sobre o que
são as práticas discursivas:
constituem o conjunto das condições
segundo as quais se exerce uma prática,
segundo as quais essa prática dá lugar a
enunciados parcial ou totalmente novos,
segundo as quais, enfim, ela pode ser
modificada (Foucault, 1995: 237).
São as práticas discursivas concebidas
como objetos privilegiados que estruturam
a análise arqueológica6. Enquanto um
conjunto preciso de procedimentos
metodológicos elas constituem o motor
básico de desenvolvimento do seu trabalho
histórico-crítico. É a partir da análise
arqueológica que se opera a abordagem das
performances verbais, especificando níveis
– o dos enunciados e dos arquivos –
determinando e definindo domínios: as
regularidades enunciativas e as
positividades.
Portanto, a Arqueologia é tomada como
uma análise das regras características das
diferentes práticas discursivas, sempre
lembrando que o discurso é por si só uma
prática complexa, pois “falar é fazer alguma
coisa”. Tudo isso faz parte do esforço
estratégico no sentido de nos aproximar do
que denominamos aqui de o ‘mundo do
patrimônio’, que será abordado pela análise
arqueológica, já que, como veremos a
seguir, a história das idéias e das ciências
dedica-se preferencialmente ao
conhecimento científico, e, por conseguinte,
as diferentes ordens disciplinares
correspondentes; e a arqueologia, nosso
método de trabalho, dedica-se ao conjunto
dos saberes, marca de sua heterodoxia.
Devemos então enfatizar e realçar as
distinções e as especificidades das duas
posições divergentes, ou bifurcantes. A
arqueologia percorre o seguinte eixo
‘prática discursiva-saber-ciência’,
encontrando seu ponto de equilíbrio na
análise do saber. Diferentemente da
história das idéias que, como disciplina, faz
a análise do elemento do conhecimento no
eixo ‘consciência-conhecimento-ciência’.
Deve-se enfatizar esse aspecto para se
diferenciar, desde logo, as duas posições
distintas. A arqueologia lida com o ‘saber’,
e, a história das idéias, com o
‘conhecimento’. Isto coloca em outra ordem
a questão do sujeito, pois, na história das
idéias estamos lidando com o ‘sujeito da
118 O Saber Patrimonial e a Arqueologia de Michel Foucault: ...
PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 7(1). 2009 ISSN 1695-7121
consciência’; com a arqueologia, o
continente do inconsciente e das estruturas
subjacentes, é fundamental. No ‘domínio do
saber’ o sujeito é necessariamente situado e
dependente, todavia sem que possa ser
considerado titular.
A partir daí distingui-se os “domínios
científicos” – que são próprios da história
das idéias – dos “territórios arqueológicos”
– que são referentes aos saberes, onde se
encontram como objetos de investigação,
textos ‘literários’ ou ‘filosóficos’, assim como
os textos ‘científicos’. Como síntese, temos:
O saber não está contido somente em
demonstrações; pode estar em ficções,
reflexões, narrativas, regulamentos
institucionais, decisões políticas (Foucault,
1995: 208).
Nesse sentido, compreende-se o saber
patrimonial como parte do “território
arqueológico” – nos quais aparecem os mais
diferentes documentos, discursos e práticas
das mais variadas áreas e disciplinas. Pois,
pensar o patrimônio nos remete não só ao
domínio da ciência, mas também ao
domínio dos afetos, das emoções e dos
sentimentos, assim como da percepção, da
imaginação, dos sentidos e etc.
Como exemplo ilustrativo da aplicação
desses princípios, temos as ações, as
práticas e os discursos produzidos por
Mário de Andrade7(1893-1945) e Aloísio
Magalhães8 (1927-1982) , no campo do
patrimônio. Foram ‘textos-falas-ações’
produzidos em diferentes registros, uns de
caráter mais científico e ou filosófico, outros
mais artísticos e literários – todos
produzidos em nome do patrimônio
histórico e artístico nacional. Mas, como
não é possível aqui, pó economia de espaço,
revelar os traços significativos destas
práticas nas figuras dos dois autores
citados – o que está feito em livro9 –
convém aprofundar mais a idéia de uma
atividade arqueológica.
Para Uma Análise Crítica e Política dos
Conceitos e dos Enunciados
Em breves linhas pretende-se
desenvolver mais especificamente a análise
arqueológica apresentada por Michel
Foucault, no livro clássico Arqueologia do
Saber (1995). Em poucas palavras,
pretende-se grosso modo aplicar a atividade
arqueológica a este corpo de enunciados,
práticas e discursos produzidos em nome de
um saber patrimonial. Almeja-se assim,
compreender a formação discursiva, a
constituição dos conceitos e objetos, etc.,
forjados em nome do patrimônio cultural, a
fim de apreender as relações de poder
subjacentes a estas práticas patrimoniais.
Neste intuito, nos aproximamos ainda
mais do texto foucaultiano. Nesta
aproximação percebe-se de imediato que a
Arqueologia não obedece a um método
geral, universal e “científico”. Contudo, não
pode ser considerada uma atividade
artística pura e simplesmente. Para Michel
Foucault a Arqueologia não é uma idéia
fundada no desejo de criar uma disciplina
mais ou menos científica, tampouco é algo
que esteja ligado à uma arte, mas,
certamente, a uma espécie de atividade,
isto é, uma atividade essencialmente
histórico-política. Como escreveu:
A tarefa (...) do arqueólogo é descobrir as
bases, as continuidades no comportamento,
no condicionamento, nas condições de
existência, nas relações de poder, etc. Essas
bases que se constituíram num dado
momento, que substituíram e que
permaneceram, estão atualmente
escondidas sob outras produções ou estão
escondidas simplesmente porque de tal
maneira fizeram parte de nosso corpo, de
nossa existência; assim, parece-me evidente
que tudo isso tenha uma gênese histórica
(Foucault, 1996: 155).
Portanto, a análise arqueológica tem
basicamente três procedimentos:
a) Primeiramente a função de descobrir
essas continuidades obscuras em nós
incorporadas - como as opiniões, os
sentimentos, os preconceitos, etc.10;
b) Partindo do estudo de sua formação,
poderá se constatar a utilidade que tiveram
e que têm ainda hoje: ou seja, como atuam
na economia atual de nossa existência -
neste ponto, o pesquisador deve se colocar
diretamente como um implicado na
pesquisa;
c) A análise arqueológica permite ainda
determinar a quais sistemas de poder estão
ligadas estas bases, estas continuidades e,
por conseguinte, como fazer para abordá-las.
No domínio específico do patrimônio, foi
interessante balizar a pesquisa a partir das
Alexandre Fernandes Corrêa 119
PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 7(1). 2009 ISSN 1695-7121
linhas de força que instauraram o saber
patrimonial e a instituição do patrimônio
desde a década de trinta11. Observando
como tudo isso foi elaborado no interior de
uma série de relações econômicas e
políticas; lutando contra as instâncias de
normalização implementadas
historicamente – como ainda ocorre, hoje,
mais do que antes, nos Conselhos de
Cultura dos estados e dos municípios.
Como exemplo, da propriedade do uso do
procedimento arqueológico, pode-se ilustrar
com o seguinte acontecimento. Essa
reflexão ocorreu a partir da interrogação de
uma estudante universitária participante
do 47° Congresso da SBPC, realizado em
São Luís no ano de 199512. Diante dos
trabalhos recentes de restauração do
Centro Histórico da capital maranhense,
designado Projeto Reviver, a estudante
colocou para todos os presentes, e
especialmente para os participantes da
mesa-redonda que debatia o tema do
Patrimônio Cultural, as seguintes questões:
Por que preservar prédios e modos de
existência da antiga classe dominante
aristocrática e escravocrata do Maranhão?
Por que preservar modos de vida e bens
materiais de grupos dominantes que
exploraram a maioria da população
maranhense?
Tomando como base os três
procedimentos arqueológicos apresentados
anteriormente, convém colocar as questões
da estudante em três patamares: primeiro,
deve-se partir dos sentimentos, opiniões e
preconceitos expressos – o que vai resultar
na releitura de um projeto de preservação e
conservação do passado colonial regional,
realizado pelo estado. Analisar com
propriedade de que modo está sendo feito o
gerenciamento político do teatro das
memórias sociais locais. Segundo, colocar
em foco os novos possíveis usos destes
acervos do passado e analisar os interesses
de quem formula estas novas propostas de
uso. Terceiro, analisar o sistema de poder
que está na base destas novas propostas,
investigando possíveis continuidades de
dominação, exploração e neo-colonialismo,
isto a fim de ‘abortá-las’, propondo um uso
emancipador e não alienado dos bens e
acervos preservados.
Desse modo, a partir de
questionamentos aparentemente ingênuos
e radicais – pois a estudante tinha em
mente a destruição dos acervos e bens
culturais que compõem o cenário do
patrimônio histórico local que, para ela,
significam a ‘opressão do passado’,
verdadeiros ‘fantasmas’ de uma época em
que a história era um ‘pesadelo
escravocrata’ – podemos, após essa análise
arqueológica, atingir conteúdos subjacentes
as ‘estruturas dos sentimentos’13 expressas
pela estudante naquele momento
dramático. A estudante que participava de
um congresso científico numa capital
nordestina, aproveitou a ocasião para
expressar sua discordância em relação a
um investimento orçado em mais de
duzentos milhões de dólares; investimento
que resultou no título de Patrimônio
Cultural da Humanidade, oferecido pela
UNESCO, em 1997. Para a estudante
iconoclasta, esse acervo tinha um outro
significado cultural: era símbolo da
opressão, dos traumas do colonialismo e da
exploração escravocrata em terras
americanas. Por conseguinte, observa-se
nesse exemplo, que não existem objetos
privilegiados para a análise arqueológica –
tudo que está na cena histórico-política
patrimonial, pode sofrer o golpe de análise
da “máquina arqueológica” foucaultiana.
A análise da cena, ocorrida no evento
referido, nos leva a atingir estratos mais
profundos que explicam a enunciação das
questões elaboradas pela estudante. A
análise arqueológica invoca o uso de
práticas e procedimentos
transdisciplinares. É nesse trajeto
antropológico que se justifica a
aproximação com outras práticas
discursivas, como a psicanálise, por
exemplo. O trato da memória e das
estruturas dos sentimentos invoca essa
migração e mestiçagem da análise. É
fundamental um tratamento crítico
minucioso que enquadre e descortine a
enunciação em camadas de sentido. É o que
acontece quando enfocamos o termo
reviver, utilizado para o título do Projeto de
Revitalização do Centro Antigo da cidade
de São Luís14. Essa abordagem
arqueológica15 faz-se especialmente
necessária aqui, pois como pontua o
sociólogo francês Henri Pierre Jeudy:
120 O Saber Patrimonial e a Arqueologia de Michel Foucault: ...
PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 7(1). 2009 ISSN 1695-7121
‘Dar novamente vida’ é uma espécie de
miragem que faz pensar num retorno da
sociabilidade e da capacidade de engendrar
a troca simbólica. A desconfiança face a
essa forma de restituição é muito mais forte
pelo fato de que ela faz ressurgir
sofrimentos, particularmente num meio
operário que vê consagrarem culturalmente
seus “instrumentos de tortura”. A memória
não é assim tão rósea como pensam os
encarregados de gestões culturais, e a
restituição de uma simbólica perdida
reativa necessariamente a lembrança das
violências, aflições e explorações (Jeudy,
1990: 31).
Em suma, podemos ser categóricos
agora, a Arqueologia é uma tentativa
histórico-política que não se baseia em
relações de semelhança entre o passado e o
presente, mas sim em relações de
continuidade e na possibilidade de definir
atualmente objetivos táticos de estratégia
de luta. Portanto, a “abordagem
arqueológica” não é uma arte, não é uma
teoria, não é um poema – é uma prática,
uma atividade! De outra maneira, pode-se
dizer que é uma espécie de ‘máquina
crítica’, uma máquina que recoloca em
questão certas relações de poder.
A Arqueologia não procura obedecer às
mesmas leis de verificação que regem à
história propriamente dita, uma vez que a
história tem como fim único dizer a
verdade16, dizer o que se passou, no nível do
elemento, do processo e da estrutura das
transformações17.
A Arqueologia enquanto ‘máquina’
consegue oferecer um modelo tal que
permite que nos libertemos do que se
passou isso principalmente no que se refere
aos dispositivos disciplinares e normativos.
Esse ponto é particularmente importante,
pois é convergente com a teoria da memória
social de Henri-Pierre Jeudy (1990), que faz
uma aproximação interessante com os
procedimentos psicanalíticos quando
descreve o processo terapêutico que
‘permite que nos libertemos do que se
passou’, isto é, a ‘outra memória’.
Atingimos aqui uma dialogia fecunda entre
a etnologia, a psicanálise e a arqueologia
foucaultiana18.
Destarte, não basta apontar para estes
entrelaçamentos criativos dos saberes. É
preciso considerar, além do mais, que
apesar de não se constituir enquanto arte, a
arqueologia tem uma vocação poética – isso,
se passamos a atribuir à poesia uma função
libertadora.
A Arqueologia é (...) esta espécie de
atividade histórico-política, (...) uma
atividade ao mesmo tempo prática e teórica
que deve ser realizada através de livros, de
discursos e de discussões, através de ações
políticas, da pintura, da música...(Foucault,
1996: 158)19.
Assim, empreendemos na pesquisa sobre
o saber patrimonial na sociedade brasileira
uma perspectiva arqueológica orientada
pelos pontos básicos da teoria da “formação
discursiva” esboçados pelo filósofo francês.
Quando delineia os limites da arqueologia
Michel Foucault afirma que sua tarefa é
constituir a teoria da “instância
discursiva”, na medida em que tal instância
é estruturada por relações encarnadas em
instituições e regulamentações
historicamente determinadas.
É assim que Edgar Assis Carvalho, em
breves palavras, sintetiza o método e o
empreendimento foucaultiano:
Foi Michel Foucault quem possibilitou o
entendimento do caráter descontínuo de
todos os processos humanos, ao englobá-los
numa ‘história das problematizações’ sem
teleologias doutrinárias ou sistemáticas,
mas, ao contrário, como um movimento
repleto de reviravoltas inesperadas e
inéditas. Arquegenealogia foi o nome dessa
prática metodológica que prescrevia que o
deciframento de qualquer realidade
continha necessariamente dois
movimentos, um de caráter arquivístico,
que considerava o que estávamos deixando
de ser, e outro, mais atual, que visualizava
o que viríamos a ser, uma forma devir não
programado, dissolvido numa
multiplicidade de histórias heterogêneas
(Carvalho, 1994: 1-2).
Desse horizonte, almejamos enfocar as
práticas discursivas efetuadas a partir da
constituição de um saber patrimonial no
Brasil – e é através de sua história que
vemos se descortinar as etapas e os
patamares de sua evolução. Assim é que
nas primeiras décadas deste século
amadureceu a idéia de se criar um órgão
federal de proteção e registro, e por forte
influência dos países europeus,
principalmente dos modelos francês e
Alexandre Fernandes Corrêa 121
PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 7(1). 2009 ISSN 1695-7121
português, observamos aos poucos
constituir-se discursos e enunciados sobre o
que seria patrimonializavel ou não na
sociedade brasileira.
Cabe lembrar ainda que existiram
órgãos públicos incipientes na Bahia,
Pernambuco e Minas Gerais, nessa mesma
época. O que vem testemunhar, portanto,
que a institucionalização de um órgão
ministerial (SPHAN/1937), foi a
cristalização do amadurecimento de um
compromisso ideológico-político assumido
por um grupo de intelectuais, ligados ao
Ministério de Educação e Saúde20. Havia na
ocasião dois grupos concorrentes, de um
lado os “modernistas” e de outro os
“tradicionalistas”, e é neste conflito que se
observam constituir práticas políticas
formando um saber patrimonial, a partir de
formações discursivas e disciplinares
conflitivas.
A Insurreição dos ‘Saberes Sujeitados’
Atingimos agora o ponto central desse
texto. Ao nos reportarmos e nos determos
nas contribuições e análises críticas
oferecidas por Michel Foucault, buscamos
subsídios para enfrentarmos o seguinte
desafio teórico: como compreender os
excessos e atavios do patrimonialismo na
sociedade contemporânea? Por que um
incremento poderoso de investimentos no
‘passado’ e nos ‘patrimônios’, numa época
de aceleradas transformações sócio-econômicas,
designadas de globalização, ou
mundialização?
Nossa pesquisa tem constatado que esse
processo de fixação na ‘cena patrimonial’ é
excessivo e sintomático. Na verdade,
resulta de um trabalho deliberado de
controle das ‘memórias locais’ e dos ‘saberes
sujeitados’. A ‘patrimonialização’ despótica
e tirana que assistimos se desenvolver nos
Centros Antigos de diversas cidades
ocidentais, manifesta um complexo cultural
curioso: trata-se, ao que parece de uma
dificuldade latente de efetuar um trabalho
de luto. Como Henri-Pierry Jeudy tem
enfatizado, esses excessos de
‘patrimonialização’ e ‘fossilização’ cultural
são o sintoma tardio de um mal realizado
trabalho terapêutico (Jeudy, 2005). As
coletividades e comunidades submetidas a
esse processo forçado de enquadramento
patrimonial de suas memórias e saberes
locais e pessoais, se vêm agora, mais do que
nunca, submetidas a um processo
avassalador de mercantilização do ‘passado’
e dos ‘patrimônios’ ditos ‘culturais’.
De nossa parte compreendemos que uma
forma de superar esses obstáculos ao
processo de emancipação e insurreição dos
‘saberes sujeitados’ e das ‘memórias locais’,
é aplicar a estes domínios do ‘saber
patrimonial’ a ‘máquina’ crítica proposta
por Michel Foucault. Pois, encontramos
com muita propriedade a eficácia de suas
análises no trabalho que se revela
fundamental na atualidade. Novos
enfrentamentos, nos domínios da cultura,
observam-se descortinar; agora que
vivemos com toda a força a ‘virada cultural’
do capitalismo, é preciso instrumentos
eficazes de sustentação crítica, na defesa
política da sociedade.
Mas, afinal, o que são os ‘saberes
sujeitados’? O que Michel Foucault
pretendeu apontar com esse termo?
(...) por ‘saber sujeitado’, entendo duas
coisas. De uma parte, quero designar,
conteúdos históricos que foram sepultados,
mascarados em coerências funcionais ou em
sistematizações formais. (...) Portanto, os
‘saberes sujeitados’ são blocos de saberes
históricos que estavam presentes e
disfarçados no interior dos conjuntos
funcionais e sistemáticos, e que a crítica
pôde fazer reaparecer pelos meios, é claro,
da erudição. Em segundo lugar, por
‘saberes sujeitados’, acho que se deve
entender outra coisa e, em certo sentido,
uma coisa totalmente diferente. Por
‘saberes sujeitados’, eu entendo igualmente
toda uma série de saberes que estavam
desqualificados como saberes não
conceituais, como saberes
insuficientemente elaborados: saberes
ingênuos, saberes hierarquicamente
inferiores, saberes abaixo do nível do
conhecimento ou da cientificidade
requeridos (2002: 11-12).
Esse é o ponto fundamental de nossa
aproximação com a arqueologia de
Foucault. Nosso trabalho de ‘escavação’
arqueológica encontrou-se com esse esforço
de reabilitação das ‘memórias locais’ e os
‘saberes das pessoas’, preconizado pelo
122 O Saber Patrimonial e a Arqueologia de Michel Foucault: ...
PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 7(1). 2009 ISSN 1695-7121
autor. Consideramos, então, de suma
importância a perspectiva sugerida aqui.
Parece que é um modo fecundo de enfrentar
os desafios que nossa época nos impõe.
Pois, como enfatiza Foucault:
(...) foi pelo reaparecimento desses
saberes de baixo, desses saberes não
qualificados, desses saberes desqualificados
mesmo, foi pelo reaparecimento desses
saberes, (....), esse saber que denominarei,
se quiserem, o ‘saber das pessoas’ (e que
não é de modo algum um saber comum, um
bom senso, mas, ao contrário, um saber
particular, um saber local, regional, um
saber diferencial, incapaz de unanimidade
e que deve sua força apenas à contundência
que opõe a todos aqueles que o rodeiam) –,
foi pelo reaparecimento desses saberes
locais das pessoas, desses saberes
desqualificados, que foi feita a crítica (2002:
12)21.
Em nosso trabalho de pesquisa, no qual
realizamos análises arqueológicas sobre os
processos de patrimonialização efetuados
em Centros Históricos brasileiros,
percebemos o quanto é necessário avançar
nesse esforço crítico preconizado aqui. A
pertinência desses procedimentos analíticos
é evidente. Através desses recursos
heurísticos atingimos novos patamares
epistemológicos e seguimos cada vez mais
na tarefa de perscrutar os complexos
culturais que estão subjacentes a lógica
cultural dominante.
O trabalho arqueológico proposto abriu
novos continentes e novas veredas para a
pesquisa da memória social e individual. O
trabalho de recuperação dos ‘saberes das
pessoas’ e das ‘memórias locais’ tem
revelado novas fronteiras para a análise
crítica dos processos de patrimonialização
em voga. Através desses fundamentos
metodológicos um novo imaginário sobre as
práticas sociais da memória e do
patrimônio surgiu.
Essa é uma trilha que não se esgota em
breves incursões empíricas, pois revela a
potência do imaginário criativo e vivo das
comunidades e coletividades, que a seu
modo resistem contra a ‘fossilização’ e
‘petrificação’ excessiva, de um
‘monumentalismo’ que quer perpetuar-se a
todo custo.
Considerações Finais: pesquisa em processo
O objetivo desse artigo foi, a partir da
obra de Michel Foucault, operar esta
espécie de máquina de análise arqueológica
na investigação dos processos histórico-políticos,
constituintes do saber patrimonial
na sociedade brasileira. Enfocando
especialmente a formação dos enunciados
sobre os patrimônios etnológicos e
bioculturais nacionais, buscamos percorrer
as linhas de força de uma abordagem
libertadora.
A linha de força principal que move este
trabalho crítico dirige-se contra a
‘tecnocracia’ dos ‘especialistas do
patrimônio’, que agora tentam dominar a
cena das políticas culturais, investindo-se
do fetiche de que detêm o saber ‘técnico’
adequado à ‘preservação’ das heranças
culturais em perigo de desaparecimento,
sob as forças atuais de globalização
econômica ou de mundialização cultural.
Esses novos tecnocratas da cena cultural
impõem tiranicamente uma paisagem
sufocante, criando a qualquer custo
‘parques históricos’ de simulação do
‘passado’; onde fazem circular, produzir e
distribuir as novas mercadorias ‘culturais’
para o ávido turismo mundial.
Uma nova engenharia da cultura se
insinua nos domínios tanto da cultura como
da natureza. Portanto, novas ‘máquinas’
críticas devem surgir para dar conta destes
novos investimentos sociais e econômicos.
Percebe-se também insinuar-se a exigência
de uma unificação do campo epistêmico, em
busca da superação da fragmentação e
compartimentação excessiva dos estudos
sobre estas áreas do conhecimento.
Dessa maneira, ultimamente tem-nos
interessado sobremaneira os bens de
natureza e de cultura selecionados e
inscritos pela UNESCO na lista do
Patrimônio Mundial da humanidade22.
Acreditamos que a análise arqueológica
proposta por Foucault oferece elementos
fecundos e criativos para se empreender
uma pesquisa fundamental sobre a
atualidade dos estudos do patrimônio e da
memória social. Vimos, em poucas linhas e
exemplos, como se opera um trabalho
crítico pertinente, sem que se caia na
Alexandre Fernandes Corrêa 123
PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 7(1). 2009 ISSN 1695-7121
‘metodocracia’ burocratizante dos
academismos, ainda dominantes.
A atividade arqueológica mantém-se a
léguas de distância desses processos
esterilizantes do imaginário teórico e
crítico. Eis uma arma poderosa contra os
que fazem da ciência um exercício de
domesticação e adestramento do espírito
crítico.
Referências
Carvalho, Edgar Assis.
S/D. Patrimônio Cultural e Ética da
Resistência. Departamento de
Antropologia. PUC/São Paulo.
1994. Desordens e Reorganizações do
Processo Civilizatório. Departamento de
Antropologia. PUC/São Paulo.
2005. Virado do Avesso. São Paulo: Selecta
Editoria,
Cavalcanti, Lauro (Org.)
1993. Modernistas na Repartição. Rio de
Janeiro: Editora UFRJ/Tempo
Brasileiro.
Corrêa, Alexandre Fernandes.
2001. Vilas, Parques, Bairros e Terreiros:
Novos Patrimônios na Cena das
Políticas Culturais de São Paulo E São
Luís. Tese de Doutorado.
PPGCS/PUC/SP. – São Paulo,
2003. Vilas, Parques, Bairros e Terreiros
(Patrimônios Bioculturais). São Luís:
EDUFMA.
2005. Museu Mefistofélico: O Significado
Cultura Da Coleção Museu De Magia
Negra Do Rio De Janeiro, Primeiro
Patrimônio Etnográfico Do Brasil .
Ensaio Final de Pós-Doutorado
UFRJ/Cnpq. Rio De Janeiro.
2006. Teatro Das Memórias E Do
Patrimônio Cultural: A Educação
Patrimonial Em Perspectiva. In, Lima
Filho, Manuel & Bezerra, Márcia. Os
Caminhos do Patrimônio no Brasil.
Goiânia: Ed. Alternativa, Ps. 69-88.
Dreyfus, Hubert L.
1995. Michel Foucault: Uma Trajetória
Filosófica. Rio De Janeiro: Forense
Universitária.
Foucault, Michel.
1979. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro:
Graal.
1980. “Truth And Power”, In Pow-er/
Knowledge: Selected Interviews And
Other Writings, 1972-1977, Nova York,
Pantheon.
1995. Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro:
Forense Universitária.
1996. A Verdade e as Formas Jurídicas. Rio
de Janeiro: Puc.
2002. Em defesa da Sociedade. São Paulo:
Martins Fontes.
Hoy, David Couzens (Comp.).
S/D. Foucault. Buenos Aires: Ediciones
Nueva Visión.
Jeudy, Henri-Pierre.
1990a. Memórias do Social. Rio de Janeiro:
Forense.
1990b. Patrimoines en Folie. Paris: Maison
des Sciences de L'homme.
1995. A Sociedade Transbordante. Lisboa:
XXI.
2005. Espelho das cidades. Rio de Janeiro:
Casa da Palavra.
Laplanche, Jean.
1992. Vocabulário da Psicanálise. São
Paulo: Martins Fontes.
May, Todd.
S/D. Between Genealogy And Epistemolo-gy:
Psychology, Politics, And Knowledge
In The Thought Of Michel Foucault.
Pennsylvania: The Pennsylvania State
University Press, University Park.
Porge, Erik.
1998. Os Nomes do Pai Em Jacques Lacan.
Rio de Janeiro: Companhia de Freud.
Santos, Mariza Veloso Motta.
1992. O Tecido Do Tempo: A Idéia de
Patrimônio Cultural no Brasil (1920-70).
Tese de Doutorado. PPPAS/DA/ICH/
UNB. Brasília.
Taussig, Michael.
1993. Xamanismo, Colonialismo e o Homem
Selvagem. São Paulo: Paz E Terra.
Wallerstein, Immanuel.
2002. O Fim do Mundo como o concebemos:
Ciência Social Para o Século XXI. Rio de
Janeiro: Revan.
Williams, Raymond.
1979. Marxismo e Literatura. Rio de
Janeiro: Ed. Jorge Zahar.
Wolf, Eric.
1968. "The Virgin of Guadalupe: Mexican
National Symbol". Readings In Anthro-pology.
New York: Creewll. 700-7.
124 O Saber Patrimonial e a Arqueologia de Michel Foucault: ...
PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 7(1). 2009 ISSN 1695-7121
NOTA
1 Docente Adjunto em Antropologia do
Departamento de Sociologia e Antropologia da
UFMA (PPGCS). Doutorado em Ciências Sociais:
Antropologia PUC/São Paulo (2001). Pós-
Doutorado em Antropologia – UFRJ/CNPq (2005).
E.mail: alexcorrea@antropologia.com.br.
2 Como escreveu Immanuel Wallerstein: “(…) é
possível dizer que Michel Foucault tentou analisar,
em The Archeology of Knowledge, como são
definidas, criadas e redefinidas as disciplinas
acadêmicas (...)” (Wallerstein, 2002: 261).
3 Como escreveu Todd May: “In this life, Foucault
chose three avenues, which correspond roughly to
the three periods into which his work is generally
divided: archaeology, genealogy and ethics. Al-though
all are addressed to the present and our
attempt to understand it, these avenues have mor in
common than that very general orientation” (May,
s/d: 02).
4 Sabe-se que a etimologia da palavra latina patrimônio
é “em nome do pai”, isto é, “herança paterna”. Nesse
sentido utilizamos o conceito de patrimônio, não como
um termo restrito a jurídica e a economia. Como é um
conceito que etimologicamente refere-se ao ‘nome do
pai’, a herança da tradição, da língua, etc., é um termo
que remete a fundação de uma ordem simbólica, e,
como lembra J. Lacan (Porge, 1998), remete a Lei do
Pai. Desse modo, cabe frisar que o sentido do conceito
vem do próprio idioma cultural (Wolf, 1968), no qual a
palavra adquiriu significado enquanto instituição
familiar, econômica, política, moral, etc.
5 Patrimônio é tudo aquilo que resulta da transformação
de certas coisas, objetos, comportamentos etc., em
semióforos, isto é, em uma nova categoria agora
significante de uma identidade cultural. “A escolha dos
objetos que entram no patrimônio cultural depende de
sua capacidade de receber significados ligados
principalmente a sua história anterior, a sua raridade,
a sua aparência externa” (Pomian, 1990: 180).
6 Segundo Arnold I. Davidson, no texto Arqueolo-gia,
Genealogia, Etica: Prácticas discursivas –
prácticas para la producción de enunciados – (...)
“caracterizadas por la delimitación de um campo de
objetos, la definición de unna legítima perspectiva
para el agente del conocimiento, y la fijación de
normas para la elaboración de conceptos y teorias.
Así, cada práctica discursiva implica um juego de
prescripciones que designa sus exclusiones y op-ciones”
(Hoy, s/d: 244).
7 Escritor e musicólogo paulista, intelectual
modernista, escreveu o obras como Amar, Verbo
Intransitivo (1927) e Macunaíma (1928).
8 Presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (IPHAN) de 1979 a 1982.
9 Esse trabalho de análise encontra-se no livro
Patrimônios Bioculturais: novos patrimônios na
cena das políticas culturais. Nova edição, no prelo,
da tese defendida pelo autor (Corrêa, 2003).
10 A exemplo do trabalho de Edgard de Assis
Carvalho, Virado do Avesso (2005).
11 Tese de doutorado Vilas, Parques, Bairros e
Terreiros: novos patrimônios na cena das políticas
culturais de São Paulo e São Luís. Doutorado em
Ciências Sociais: Antropologia, PUC/SP. (Corrêa,
2001).
12 Conferência do antropólogo Gilberto Velho
Patrimônio Histórico e Cultural, SBPC/1995.
13 Texto fundamental sobre o uso da expressão
“estruturas de sentimento”, consultar Raymond
Williams Marxismo e Literatura (1979),
especialmente o capítulo II Teoria Cultural, seção
8. Estruturas de Sentimento (ou sentido). ps. 130-
137.
14 Processo que se inicia na década de oitenta e se
consagra com a inscrição do sítio histórico na lista
do Patrimônio Cultural da Humanidade, da
UNESCO, em 1997.
15 “A arqueologia do saber é simplesmente um
modo de abordagem” (Foucault, 1979: 156).
16 Para Foucault, o que interessa a arqueologia, ao
contrário da história, é a articulação: “in different
regions of our present, ‘how the human subject
entered into games of truth’ (May, s/d: 02).
17 Como se sabe para o cientista social o que
interessa é “o ser social da verdade”. Nesse sentido
Michael Taussig, escreveu: “Daí a necessidade que
temos de lutar contra aquela solidão, temor e
silêncio, de examinar as condições de realizar a
verdade e de realizar a cultura, de seguir Michel
Foucault quando ele coloca que se deve ‘ver
historicamente como os efeitos da verdade são
produzidos no interior de discursos que, em si
mesmos, não são nem verdadeiros, nem falsos”
(Taussig, 1993: 30). Texto referido: Michel Fou-cault,
“Truth and Power”, in Power/Knowledge:
selected interviews and other writings, 1972-1977,
Nova York, Pantheon, 1980, p. 118.
18 Na psicanálise esse processo é designado com o
termo aprés-coup. No verbete A Posteriori
(Laplanche, 1992), o termo é utilizado no mesmo
sentido que a expressão técnica après-coup – mais
usado em língua francesa. Estas duas palavras vêm
do alemão Nachträglichkeit (Subst.), Nachträglich
(adj. e adv.), e eram freqüentemente usados por
Freud com relação a temporalidade e a causalidade
psíquicas. Existem experiências, impressões, traços
mnésicos que são ulteriormente remodelados em
função de experiências novas, no acesso a outro
grau de desenvolvimento. Pode então ser-lhes
conferida, além de um novo sentido, uma eficácia
psíquica. Nosso objetivo, ao tratar rapidamente
destas conceituações psicanalíticas, é indicar com
alguma propriedade o uso destes termos, no que
chamo de prospectiva patrimonial. Para
entendermos o que Henri-Pierre Jeudy (1990)
chamou de outra memória é imprescindível uma
incursão básica dos conceitos de après-coup e a
posteriori, são eles que nos dão o significado
fundamental da idéia aqui aplicada de uma
“terapêutica” no trato da memória e do patrimônio.
Se temos alguma pretensão aqui é a de estreitar as
relações teóricas e práticas entre a etnologia e a
psicanálise, no trato das questões aqui
desenvolvidas, que são pertinentes as duas áreas do
conhecimento. Afinal, as relações entre estes
Alexandre Fernandes Corrêa 125
PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 7(1). 2009 ISSN 1695-7121
saberes não se restringem aos pontos aqui traçados
indo muito mais além e tendo uma longa data de
inspirações recíprocas. Em outro texto esse ponto é
elaborado com mais minúcias (Corrêa, 2006).
19 “Pode-se responder (...) à pergunta (...): a
arqueologia sé se ocupa das ciências e nunca passa
de uma análise dos discursos científicos? (...)
responder duas vezes não. O que a arqueologia
tenta descrever não é a ciência em sua estrutura
específica, mas o domínio, bem diferente, do
saber” (Foucault, 1995: 221).
20 No capítulo sobre os aspectos históricos têm-se
mais detalhes deste processo. Mas indica-se o livro
que Lauro Cavalcanti organizou Os modernistas na
repartição (1993) e mais a tese de Mariza Veloso
Motta Santos O tecido do tempo (1992).
21 È preciso lembrar que esses trechos destacados
foram registrados em aulas de Michel Foucault,
proferidas em 1976, o que explica a forma como se
apresenta as frases e as idéias.
22 Nesse trajeto incluem-se processo de preservação
dos teatros da memória social e natural, como vilas,
parques, bairro e terreiros, com vocação
museológica intrínseca. São verdadeiros eco-museus
bioculturais da sociedade brasileira que
atualmente estão em perigo.
Recibido: 6 de septiembre de 2007
Reenviado: 5 de febrero de 2008
Aceptado: 21 de junio de 2008
Sometido a evaluación por pares anónimos