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Vol. 10 Nº 1 págs. 109-118. 2012 Espetáculos e performances culturais no turismo: refl exões sobre o bumba-meu-boi em São Luis, Maranhão (Brasil) Karoliny Diniz Carvalho i Wladimir da Silva Blós ii Universidade Estadual de Santa Cruz ( Ilhéus- BA, Brasil) i Mestre em Cultura e Turismo pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). Bacharel em Turismo pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Endereço eletrônico: karol27_turismo@yahoo.com.br. ii Doutor em Antropologia Social pela Universidade Estadual de São Paulo (2007) e Docente do Mestrado em Cultura e Turismo da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). Possui graduação em Comunicação Social pela Universidade Federal de Santa Maria (1989), mestrado em Extensão Rural pela Universidade Federal de Santa Maria (1999). Mais recentemente tem se dedicado à pesquisa em antropologia das formas expressivas, notadamente nos seguintes temas: experiência e expressão da experiência turística e antropologia da performance. Endereço eletrônico: wblos@bol.com.br Resumo: O presente artigo objetiva analisar os processos de revigoramento das culturas a partir do desenvolvimento do turismo cultural. Tendo como objeto de estudo o bumba-meu-boi na cidade de São Luís- Maranhão, discutem-se as principais modifi cações provocadas nesta brincadeira a partir de sua incorporação ao circuito de produção e consumo cultural. Tomando por base os estudos de performance e de restauração do comportamento, compreende-se que os espetáculos culturais, a exemplo do evento Vale Festejar, constituem-se remodelações das identidades diante de outros con-textos e espaços sociais, e que incorporam no presente novas signifi cações. Palavras-chave: Turismo Cultural; Identidade; Performance; Bumba-meu-boi; São Luís do Maran-hão. Title: Shows and cultural performances in tourism: refl ections on the bumba-meu-boi in São Luis, Maranhão (Brazil) Abstract: This article examines the process of revitalization of cultures from the development of cultural tourism. Where the object of study, the Bumba-meu-boi in São Luis, Maranhao, discusses the major changes brought about in this play from its incorporation into the circuit of cultural production and consumption. Based on studies of performance and restoration of behavior, it is understood that the cultural events, like the Valley Celebrate event, consist of renovations on the identities of other contexts and social spaces, and incorporating in this new meanings. Keywords: Cultural Tourism, Identity; Performance; Bumba-meu-boi; São Luís do Maranhão. © PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural. ISSN 1695-7121 www.pasosonline.org 110 PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 10(1). 2012 Espetáculos e performances culturais no turismo: ... ISSN 1695-7121 Introdução A importância e a amplitude assumidas pelas viagens e pelo lazer na contemporaneidade conferem à atividade turística um caráter nitidamente dual. Nela, além de es-tarem centrados os aspectos econômicos, predomina um aspecto sócio-cultural, tendo em vista que subjaz a esse processo um amálgama de interesses e necessidades va-riantes, conforme os diferentes contextos em que se en-quadram grupos sociais distintos. Assim, o turismo emerge ora como um fenômeno coop-tador de acréscimo fi nanceiro e de inserção social, ora como prática passível de ser empreendida em face do au-mento substancial do tempo livre. Porém, à medida que se consolida a partir do maior desenvolvimento científi co e tecnológico, o turismo também se vê compelido pela lógica de produção e distribuição dos bens materiais e imateriais engendrados pelo modo de produção capitalista. Ao mes-mo tempo, o seu fomento surge em virtude de um novo padrão de consumo presente nas sociedades contemporâ-neas. Considerando que as festas e celebrações populares referem-se a momentos diferenciadores da vida cotidia-na atraindo um público consumidor específi co – os turis-tas – torna-se necessário compreender as interações que se estabelecem quando os bens simbólicos inserem-se no mercado turístico global, dando origem a produções cul-turais híbridas, móveis e polissêmicas e, por isso, sendo constantemente reelaboradas pelos grupos sociais. A redefi nição das práticas culturais, acervos e coleções dos diferentes grupos sociais pela atividade turística suscita questões referentes à autenticidade dos eventos, festas e celebrações, a espetacularização das tradições e a ressemantização dos seus signifi cados sob a égide da fragmentação ou dissolução das identidades globais. Sur-gem ainda da necessidade de compreender as mudanças nas práticas culturais enquanto resultado das diferentes formas de manifestação dos aspectos simbólicos experien-ciados pelos grupos sociais na sua vivência cotidiana e festiva. O presente artigo objetiva discutir o processo de res-tauração cultural do bumba-meu-boi, na cidade de São Luís, Maranhão, Brasil, por meio da análise de apresen-tações performáticas de grupos culturais durante o even-to Vale Festejar. Apresentam-se e discutem-se alguns elementos de redefi nição dos aspectos tradicionais desse culto popular e da ressignifi cação da identidade local para o atendimento das expectativas dos visitantes, sob a pers-pectiva da teoria da performance (Turner:1964) e da res-tauração dos comportamentos (Schechner: 2003). Dessa forma, procurou-se compreender os processos de trocas interculturais e as possíveis alterações que ocorrem nessa manifestação a partir de seu relacionamento com a atividade turística. Partiu-se do pressuposto de que as experiências sagrada e profana no bumba-meu-boi são re-dimensionadas ou recriadas em performances turísticas que intersectam momentos cotidianos e extra-cotidianos, ordinários e extraordinários, produzindo e reproduzindo novas identifi cações numa releitura das identidades. Performance cultural e turismo: o caso do Bumba-meu- boi em São Luís - Maranhão As festas, enquanto momentos de comemoração e con-graçamento popular possuem o seu enraizamento e orga-nização no interior de uma determinada comunidade, sen-do importantes no processo de coesão social e de reforço da memória e dos valores identitários de um lugar. As manifestações tradicionais tornam-se ainda polissêmicas, posto que a elas se associam de forma dinâmica, o trabal-ho e o lazer, a diversão e a devoção, o sagrado e o profano, além de convergirem importantes mecanismos de sociabi-lidade e reciprocidade cultural que intensifi cam o sentido de pertença à uma determinada cultura. Brandão (1974: 28) considera que as festas são. “Acontecimentos sociais de envolvimento parcialmen-te coletivo que geralmente observam uma ruptura com a rotina seqüente na vida social, que cria comporta-mentos sobretudo, rituais, logo expressivos e relações interativas de fora e efeitos de períodos longos da ro-tina”. Insere-se nesse cenário o bumba-meu-boi, manifes-tação cultural presente em São Luís, capital do Estado do Maranhão, e que vem se constituindo num importante elemento da oferta turística dessa localidade. Esta se ca-racteriza pela capacidade de mobilização e participação comunitária, na qual se sobressaem formas distintas de expressão da identidade local, reveladas na diversidade de sotaques (tipos ou estilos em que são classifi cados os grupos de bumba-meu-boi), musicalidade, ritmos, toadas e personagens que se apresentam nos terreiros e nos es-paços públicos da cidade durante os festejos juninos. Apresentado em diversos espaços sociais, o bumba-meu- boi é reverenciado como exercício de sociabilidade, no qual se evidenciam a pessoalidade e a coletividade das re-lações, além da reafi rmação da fé dos devotos em relação aos santos celebrados. Engendra amizades, encontros, comunicação, trânsito, diálogo e, ao mesmo tempo, riva-lidades e disputas entre os grupos. A devoção no bumba-meu- boi constitui-se um traço marcante que demonstra a relação existente entre os grupos e os santos do período junino, notadamente São João. Além dos santos católicos, observa-se a devoção em forma de pagamento de promes-sa ou obrigação para entidades espirituais cultuadas em terreiros de Tambor de Mina, Umbanda, Pajelança, den-tre outros. A religiosidade para os brincantes do boi atinge seu ápice no batismo. Esse confere ao grupo uma afi rmação de identidade, confi gurando-se parte de um ciclo, que se inicia com os ensaios – momentos em que o boi está no circuito doméstico e na intimidade das relações entre os componentes de cada grupo e se prepara para dançar para além da comunidade – e posteriormente com o batismo, momento em que o boi recebe a bênção e a proteção do santo, passando então para a fase das apresentações pú-blicas. PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 10(1). 2012 Karoliny Diniz Carvalho y Wladimir da Silva Blós ISSN 1695-7121 111 Após o batismo, os batalhões de bumba-meu-boi (nome com que são denominados os grupos) adentram nos te-rreiros, nos arraiais da cidade, onde podem ser vistos por diferentes espectadores, até que o processo ritualístico se cumpra com a morte do boi. Este momento demarca o término de um ciclo, na confi rmação de que o boi nova-mente ressuscitará no ano seguinte, reiniciando o ciclo. Essas fases ou etapas da brincadeira apresentam um rico simbolismo, expressando as diferentes visões de mundo e a forma com que os grupos de bumba-meu-boi gestam, compartilham e interiorizam as relações e confl itos ex-perienciados na sua vida cotidiana. Enquadram-se, as-sim, na categoria de drama social de que nos fala Turner (2008), momentos desarmônicos ou descontínuos da vida social que abalam as estruturas hierárquicas e cujo desfe-cho pode resultar numa desestabilização ou superação da estrutura vigente, ou na sua reafi rmação ou revitalização. O caráter de devoção, de religiosidade, de ritual, expõe na manifestação do bumba-meu-boi a própria organização social do grupo, dando forma simbólica às interações oca-sionadas em sua estrutura. E considerando o bumba-meu-boi refl exo das experiências cotidianas, este se torna lugar memória, desvelando por meio do auto, as aspirações de uma classe social específi ca, suas lutas cotidianas, as rei-vindicações para uma elevação da qualidade de vida, as críticas ao modelo social instituído. Durante as etapas de preparação, ensaios, nos mo-mentos que antecedem as apresentações, e ao fi nal delas instala-se entre os membros de cada grupo de bumba-meu- boi o que Turner (2008) denomina de communitas, isto é, um sistema de relações sociais ou uma modalidade de interação social que se opõe à estrutura, mediante o estabelecimento de outras normas, posições e regras que propicia um distanciamento dos sujeitos e uma refl exão crítica sobre a realidade social em que estão inseridos, a inversão de hierarquias e criação de laços de solidarieda-de entre eles. Restrito aos segmentos populares desassitidos até meados do século XX, sofrendo constantes sanções por parte das elites que inviabilizavam a livre manifestação da brincadeira, em meados da década de 1970 o bumba-meu- boi notabiliza-se entre as camadas sociais abastadas, popularizando-se a partir de sua intensa divulgação nos aparelhos midiáticos. Enquanto símbolo da identidade local torna-se alvo também de políticas culturais e de pro-moção turística, uma vez que se identifi ca o seu potencial na geração de negócios e na melhoria da qualidade de vida local. No processo de implantação ou desenvolvimento do turismo cultural, assiste-se a uma crescente articulação entre os poderes públicos e o empresariado, no sentido de aumentar o nível de competitividade do destino turístico no mercado. Nesses casos, os elementos da cultura ima-terial, tais como os festejos populares sagrados e profa-nos, os rituais e as danças tradicionais afi guram-se como atrações turísticas com elevado potencial de captação de visitantes, diversifi cando a oferta de atrativos e minimi-zando a sazonalidade do destino em períodos de baixa es-tação: “[...] as oportunidades que presentan los festiva-les, como nueva oferta turístico-cultural especia-lizada, son importantes pues se trata de acon-tecimientos periódicos de alto nivel cultural y artístico, muchas veces en entornos patrimoniales de interés turístico, con una diversidad tal que les convierte en un producto de gran interés para un público muy diferente” (Sanchéz; García,2003:101) Assim, de prática coletiva, o bumba-meu-boi redefi ne-se na lógica de produção e consumo cultural, destacando-se como elemento de atratividade turística para a cidade de São Luís, por intermédio da sua vinculação em campan-has de marketing direcionadas aos turistas potenciais, e do estímulo para a adequação do bumba-meu-boi enquan-to produto turístico. A partir da aproximação com o mer-cado de consumo cultural, novas experiências inserem-se no universo ritualístico tradicional do bumba-meu-boi, tais como o surgimento de manifestações parafolclóricas, e a crescente profi ssionalização dos grupos mantenedores dessa tradição. Nos processos de interações turísticas, o bumba-meu-boi adquire novos signifi cados ao associar-se às apresen-tações ofi ciais da cultura local para grupos de visitantes. A comemoração popular transforma-se em espetáculo, com a redefi nição de seus elementos, mediante o estabe-lecimento de relações comerciais e a necessidade de ade-quação mercadológica visando sua inserção no turismo cultural. Assim, incorpora-se a essa festividade popular o conceito de performance cultural. Nela imbricam-se cinco dimensões chaves: “First, cultural performances are temporally and spa-tially framed. Second, they are programmed, following a more or less structured order of activities. Third, cultural performances are communal insofar as they provide an occasion for coming together. Fourth, cul-tural performances are heightened occasions invol-ving display. Fifth, cultural performances tend to be prepared for and often publicized in advance” (Fuoss e Hill, 2000:111). No âmbito das manifestações de trabalho e lazer, festa e devoção, ritual e espetáculo, sobressaem-se diferentes performances, perfomers e espectadores, os quais confe-rem sentidos e signifi cados à representação de acordo com variados interesses e expectativas. Na visão de Ligiéro (2003: 90) “[...] performance empresta insghts valiosos para a formação e identidade permitindo um espaço para entendimento intercultural e através da performance os signifi cados centrais, valores e objetivos da cultura são vistos em ação.” De acordo com Schechner (2003) as performances coti-dianas, rituais ou artísticas, misturam-se, sofrendo acrés-cimos a partir de elementos de sofi sticação, visuais ou co-reográfi cos, que enriquecem o jogo cênico e elevam o nível de desempenho dos atores sociais, garantindo assim, a efi cácia da representação teatral. Na interação proporcio- 112 PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 10(1). 2012 Espetáculos e performances culturais no turismo: ... ISSN 1695-7121 nada pela brincadeira popular como bem de consumo, os brincantes assumem novas posições identitárias, a partir de um texto – o conjunto de conhecimentos tradicionais, saberes e fazeres que referenciam as tradições afro ma-ranhenses – num espaço e contexto turístico previamente determinados, “a performance constrói a sua arte a partir da imagem emocional e estruturas arquetípicas básicas e situações que pertencem ao ‘inconsciente coletivo’ da co-munidade” (Coehn, 1989:159). A perspectiva comercial do bumba-meu-boi adéqua-se aos limites do cenário turístico, com delimitação de ho-rários, repertórios, fi gurinos, e duração da performance. Nela, as trocas simbólicas operam numa esfera global, híbrida e envolvem os órgãos de cultura, promotores de eventos, patrocinadores e o empresariado que atua no turismo, “international tourism is an exchange system of vast proportions, one characterized by a transfer of images,signs, symbols, power, money, goods, people, and services” (Bruner,1996:157). Nesse ínterim, a adoção de novos elementos altera-ram signifi cativamente as formas de representação desse auto popular, com ênfase nos aspectos estéticos, na adap-tação das indumentárias, fi gurino e coreografi a, além de modifi cações nos instrumentos e na redução do tempo de apresentação, no sentido de atender às expectativas dos visitantes. Conforme constata Lima (2002:15): “Aos grupos folclóricos moderninhos que insistem em se autodenominar bumba-meu-boi, apropriaram-se na brincadeira junina tradicional e transformaram-na em um show de tv, espetáculo colorido e esfuziante, agra-vável aos olhos, senão imitação pelo menos inspirados nos grupos de ‘tchan’ ou nas escolas de samba [...] O antigo rebanho agora se chama quadra de ensaio. Os cordões são alas. A dança primitiva e espontânea obe-dece a uma coreografi a ensaiada por experts de ba-llets. O amo passou a mestre-sala. Os adereços têm grifes de renomados artistas plásticos. Enfi m, o boi sofi sticou-se”. [...] “Aliás, realçado pelas reduzidas in-dumentárias das brincantes que põem em destaque as formas esculturais de verdadeiras modelos. Mas, por que chamá-lo bumba-meu-boi? Por que não classifi cá-los, com toda a propriedade e justiça como grupo da dança folclórica, teatro de rua ou coisa equivalente?”. Os brincantes extraem da sua realidade cotidiana os elementos que produzem a encenação ritual e artística, ou tomam de empréstimo de outros sistemas culturais infor-mações, instrumentos de percussão e elementos cênicos, transformando a manifestação numa estrutura dinâmica e complexa, extensão de sua vivência individual ou sub-jetiva. Tal mecanismo repercute entre os legitimadores des-sa expressão tradicional, os quais intensifi cam suas ar-ticulações com diferentes agentes: promotores culturais, gestores públicos, empresariado local. Inseridos na lógica capitalista de consumo cultural global, solicitados a apre-sentar- se em shows e a ministrar ofi cinas, os mestres e brincantes do bumba-meu-boi participam ativamente das trocas culturais com outros setores da sociedade. Nas perfomances turísticas institucionais tende a oco-rrer uma reordenação da realidade material e simbólica dos brincantes, dos valores sagrados e profanos inerentes à brincadeira popular, ao mesmo tempo em que a recriam, articulando diferentes experiências: sagrada/profana, in-dividual/ grupal, cotidiana/profi ssional. A experiência do Bumba-meu-boi no vale festejar Como parte integrante dessa estratégia de valorização para o turismo, destaca-se a realização do evento “Vale Festejar”, patrocinado pelo Governo do Estado em parce-ria com a iniciativa privada. Trata-se da promoção de es-petáculos de bumba-meu-boi no mês de julho e, portanto, não correspondente ao ciclo ritualístico do bumba-meu-boi e ao período tradicional de apresentações. A estruturação desse espaço vincula-se à necessidade de captação de fl uxos de visitantes, estendendo o período de alta estação da cidade, e permitindo aos turistas o aces-so aos elementos da cultura local, ao mesmo tempo em que se propunha a benefi ciar social e economicamente a comunidade, enquanto agente partícipe da manifestação. Durante a realização do evento, observa-se um cres-cente processo de estetização da brincadeira, com o dis-tanciamento dos brincantes em relação aos espectadores, o apelo visual e performático dos grupos folclóricos, e a criação de um cenário normatizado, onde se sobressaem a passividade do público e o seu olhar direcionado aos ele-mentos diferenciadores do espetáculo foco de apreciação: “Nas festas, as lentes dos turistas [...] são atraídas, também, por personagens, alegorias, fantasias, excen-tricidades, ou seja, elementos visuais, característicos da sociedade moderna, [...] tornando-se um atrativo para as pessoas de fora, sendo a imagem um dos ele-mentos fundamentais impulsionadores da cultura de consumo” (Rosa, 2002:35). Ressalta-se a valorização estética e a preocupação com o entretenimento e a ludicidade, se comparada aos ele-mentos devocionais e espirituais que também caracteri-zam a manifestação. Durante a performance cultural no Vale Festejar, o auto do bumba-meu-boi não é realizado integralmente em virtude do tempo reduzido. Muitos dos elementos sagrados são abreviados, como por exemplo, as toadas ou cânticos de louvações e reverências aos santos que ocorrem normalmente no início das apresentações. As toadas tradicionais são substituídas pelas denominadas toadas de cordão, as quais possuem maior receptividade junto ao público espectador. Em alguns grupos ou sotaques, como os bumba-meu-boi de orquestra, ocorre a incorporação de novos instru-mentos, dando origem a sonoridades e ritmos emergentes. Nesse caso, a preocupação incide-se menos nas signifi - cações religiosas do que na efi cácia da performance cultu-ral. Mesmo em grupos considerados tradicionais em que PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 10(1). 2012 Karoliny Diniz Carvalho y Wladimir da Silva Blós ISSN 1695-7121 113 constata que estes tendem à ser sintetizados e estetiza-dos, adornados para o consumo. Durante o processo, atribui-se aos brincantes a carac-terística de liminaridade (Turner, 1964). O estágio limi-nar invoca a transposição de status, ou seja, de passagem da condição de agente local para brincante, revestida por novas formas de representação identitária. Os diferentes matizes presentes na ação performada dos brincantes diante de públicos específi cos sugerem certa mobilidade ou trânsito - como revelam as expressões corporais no centro da roda, os sons dos tambores, ou as toadas evoca-das pelos mestres – os quais reterritorializam o lugar do bumba-meu-boi na cultura local. Assim, revigoram-se os laços de pertencimento dos brincantes em relação ao seu patrimônio, ao mesmo tem-po em que promovem articulações com o global, não num movimento de ruptura ou imposição, mas de circularida-de, intercâmbio ou troca. As novas representações vincu-ladas ao bumba-meu boi relacionam-se aos processos de hibridação das produções culturais na contemporaneida-de sem, contudo, invalidar o substrato que lhe é subja-cente. Nesse patamar, ocorrem constantes mecanismos de articulação, seleção e apropriação de elementos cultu-rais decorrentes do maior contato entre os diferentes gru-pos sociais. Ou seja, reposição e intensifi cação identitária imbrincam-se no jogo das identidades. Ocorrem mecanismos de identifi cação e apropriação de elementos, técnicas, materiais e formas culturais emergentes, caracterizando uma tradução e atualização do bumba-meu-boi ou um processo de enraizamento e re-enraizamento. Vistas sob o prisma da teoria da perfor-mance, as apresentações que obedecem ao tempo social do brincantes e aquelas atreladas ao calendário turístico podem ser compreendidas como interpretações possíveis da relação entre texto e contexto, numa releitura contem-porânea dessa brincadeira popular. A aceleração do intercâmbio cultural, atrelada às modernas tecnologias da informação e da comunicação, ocasiona o surgimento de produtos culturais híbridos, que transitam em diferentes sistemas culturais e não possuem fronteiras defi nidas, desconstruindo, assim, a concepção tradicional de cultura. Na visão de Dias (2003:113): “Essa mudança funcional coloca-se perfeitamente no processo dinâmico em que se insere o fato folclórico. Perante novos atores – os turistas -, estes provocam mudanças geradas pelas interações recíprocas, que podem provocar modifi cações no fato folclórico, o qual, quando bem conduzido, será a continuidade, em outro tempo, do fato original determinado historicamente, porém transformado e com novas funções”. Constata-se que a apresentação de grupos de bumba-meu- boi para o turismo insere-se na busca pelo consumo de experiências consideradas autênticas pelos visitantes. Bruner (2004) em sua análise sobre a performance da vida e cultura de jovens guerreiros da tribo Massai no Rancho Mayer, propriedade privada de remanescentes de a participação da fi gura feminina e de brincantes jovens era reduzida, a presença desses brincantes tona-se cen-tral nas apresentações destinadas aos turistas, com ên-fase nos gestos corporais, adornos e indumentárias que elevam o seu potencial de atratividade. A performance durante o evento pode ser entendida como uma co-produção entre os brincantes, comunidade local e turistas, numa dialética que não está isenta de confl itos ou dissensões entre esses diferentes agentes. Ao tempo em que a matriz tradicional da brincadeira popu-lar é recriada, permitindo a combinação de elementos e variações de acordo com a subjetividade e a criatividade de cada grupo e do nível de treinamento dos brincantes, a performance turística torna-se fonte de recursos para a continuidade e sustentabilidade dos grupos e para a rea-fi rmação dos laços de pertencimento ao universo simbólico do bumba-meu-boi. Constitui-se também ícone da cultura popular apropriado pelos órgãos estatais enquanto instru-mento de promoção turística. As observações em campo e a s informações obtidas junto aos brincantes nos levaram a inferir que ocorre um processo de retradicionalização da brincadeira. As modi-fi cações estimuladas pela crescente vinculação do bumba-meu- boi no mercado turístico e nos eventos e espetáculos culturais são internalizadas e ressignifi cadas pelos seus participantes, incorporando-as à sua experiência cotidia-na. Foram entendidas, assim, como necessárias para a continuidade dessa manifestação. Assim, a tradição cultural incorpora-se ao consumo tu-rístico, provocando mudanças na forma de apresentação do bumba-meu-boi, num espaço constante de negociação dos seus elementos originários para atender aos anseios dos visitantes. Ao longo do Vale Festejar, re atualiza-se a devoção, na medida em que são agregados novos estilos na forma de apresentação dos grupos folclóricos, ressal-tando- se os aspectos de padronização dos instrumentos e das coreografi as, redução de personagens, conferindo uma apresentação sistemática e nitidamente comercial. Reacende-se, pois, a discussão em torno da autentici-dade das festas, eventos e celebrações, quando encenadas para grupos de visitantes. Considera-se que o mercado turístico estimula a formatação de produtos e atrações ar-tifi ciais, com a conseqüente invenção de tradições “[...] a fi n de obtener um producto presentable como auténtico, fuera de tiempo, que debe infundir la idea de experiencia inolvidable y única para su consumidor y, la vez, ser re-petible y estandarizada para el conjunto” (Markwell apud Talavera 2003: 44). É nesse sentido que Talavera (2003) assinala que os novos conteúdos e formas culturais conduzem à materia-lização de “autenticidades emergentes”, percebidos e in-terpretados como autênticos, tanto por parte dos turistas, como pela comunidade local, levando à afi rmação de que a autenticidade torna-se subjetiva e resultante dos sen-tidos e signifi cados que os diferentes consumidores atri-buem às atrações e produtos culturais que experienciam. E, embora ressalvando a importância dos produtos cul-turais serem vinculados aos signifi cados locais, o autor 114 PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 10(1). 2012 Espetáculos e performances culturais no turismo: ... ISSN 1695-7121 uma família britânica localizada no leste da África, assi-nala que há um processo de construção idealizada de um drama colonial num espaço e tempo pré-determinados. Segundo o autor, a recriação do universo simbólico presente na vila Massai confi gura um espaço turístico de fronteira, liminar e, portanto, um teatro de experiência. Nele, as tradições dos Massai são revisitadas e em alguns casos, adaptadas, inserindo-se num jogo de interesses em que se sobressai a manutenção da tribo frente às novas demandas políticas, sociais e culturais, das quais a ativi-dade turística constitui-se parte integrante. Mediante a pesquisa etnográfi ca, as danças, cantos e rituais que envolvem a transposição de status dos jovens guerreiros Massai produzem um efeito realista nos visi-tantes que se completa com a tradição do chá inglês no jar-dim do Rancho Mayer, reforçando, assim, a oposição en-tre a resistência tribal e o colonialismo. As apresentações realizadas atrelam-se ainda à necessidade de confi rmar as expectativas de retorno nostálgico à vida selvagem e exótica da África colonial presente no imaginário dos vi-sitantes. Paralelamente, tona-se um palco revelador das negociações, diferenças, confl itos e paradoxos existentes entre a realidade social e cultural dos Massai e a repre-sentação de sua narrativa identitária que é encenada en-quanto performance turística. As refl exões encetadas por Bruner (2004) têm contri-buído para reorientar as análises acerca dos eventos e das produções de caráter turístico para além dos processos de aculturação, evidenciando os mecanismos de refl exivida-de e tradução cultural. Nesse patamar, a performance tu-rística dos grupos de bumba-meu-boi insurge como uma instância de redefi nição dos símbolos que codifi cam as re-lações sociais entre os mestres, performers e espectadores em condições cotidianas e extra-cotidianas. Essas duas dimensões não se tornam mutuamente ex-cludentes; estabelecendo trocas entre si, enriquecem o jogo das identidades locais, sendo os meios de comunicação, as novas tecnologias e o turismo, vetores do hibridismo cul-tural. As performances turísticas revelam articulações de agentes internos e externos, os quais evidenciam as re-lações entre centralidade e marginalidade, inclusão e ex-clusão, ou seja, movimentos “de passagem e signifi cados que são posicionais e relacionais, sempre em deslize ao longo de um espectro sem começo nem fi m (Hall, 2003:33). Diante do caráter místico do bumba-meu-boi, da fé que direciona as ações dos grupos, o espetáculo acontece den-tro de uma esfera que abrange os mesmos ritos que tam-bém fazem parte desse universo simbólico. O mesmo gru-po de bumba-meu-boi que vai à igreja receber as bênçãos dos santos, que batiza, cumpre sua promessa, é o boi que sobe ao palco do Vale Festejar, que se faz presente nos veículos de promoção e divulgação da identidade cultural local, que se apresenta nos espaços turísticos ofi ciais para apreciação dos visitantes, que recebe o pagamento pelas performances culturais. A forma com que os grupos reconhecem a dinâmica intercultural e desenvolvem estratégias de visibilidade correspondem aos diferentes modos de expressividade popular, de reconstrução da memória social e, consequen-temente, de reposição ou de revigoramento das identida-des. Dotada de valores simbólicos, a autenticidade é nego-ciável devendo ser gerida preferencialmente pelos setores populares, os quais devem estabelecer limites à mudança cultural, quando descontextualizadas da realidade local: “Para a teoria da performance, a idéia de autenticida-de está fi ncada no aqui e agora de cada performance realizada, em condições sociais, econômicas e histó-ricas concretas, conforme a intencionalidade de cada realização. Nesse sentido, pode-se afi rmar que o au-têntico, desse ponto de vista, é aquilo que é real e que se concretiza e materializa num dado momento” (Vian-na e Teixeira, 2008:125). A autenticidade é entendida como um constructo so-cial, uma releitura ou reinterpretação das culturas e das identidades que ocorrem nas diversas esferas da experiên-cia cotidiana, “[...] é precisamente quando a mudanças se voltam para as formas tradicionais, realmente tornando-se essas formas, que uma restauração do comportamento ocorre” (Schechner 1985: 210). Com base nos estudos realizados por Schechner, as re-generações dos fatos culturais também se enquadram no movimento de restauração dos comportamentos próprios da dinâmica social. As práticas culturais são revisitadas, reforçadas e condicionadas a partir de códigos e símbo-los anteriormente construídos e retransmitidos entre ge-rações sucessivas. A partir do momento em que a mani-festação é formatada para uma apresentação de caráter turístico, as fronteiras entre o ritual e o jogo cênico da performance turística diluem-se. O comportamento res-taura- se através da repetição, na passagem do movimento do ritual para a brincadeira, do religioso para o profano, tornando-se recorrentes a preocupação dos brincantes e organizadores com o desempenho das apresentações e com a satisfação das expectativas do público. As apresentações performáticas dos grupos folclóricos e parafolclóricos constituem-se, portanto, remodelações da identidade, diante de outros contextos e espaços sociais, as quais incorporam no presente novas signifi cações: “O comportamento restaurado é simbólico e refl exivo: não comportamento vazio, mais pleno que irradia plu-ralidade de signifi cados [...] O comportamento simbóli-co ou refl exivo signifi ca fi xar, transformando em teatro o processo social, religioso, estético, médico e educa-cional. A representação signifi ca: nunca pela primeira vez. Isso signifi ca: da segunda até n vezes. A represen-tação é o comportamento repetido” (Schechner 1985: 206). Tal fato torna-se perceptível quando do repasse do saber- fazer do bumba-meu-boi pelos mestres aos demais membros das comunidades. A confecção dos instrumentos, indumentárias e adereços, a fabricação do couro do boi, as toadas, ensaios, gestos, rituais, expressões corporais, PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 10(1). 2012 Karoliny Diniz Carvalho y Wladimir da Silva Blós ISSN 1695-7121 115 e demais formas de relacionamento com o transcendente apresentam-se como um conjunto de códigos legados por uma herança secular e que legitima o bumba-meu-boi como experiência sagrada e profana. O processo de preparação dos grupos, os ensaios do boi, assim como os adereços e indumentárias utilizados apresentam-se carregados de simbologias, e constituem um conjunto de códigos culturais que legitima o bumba-meu- boi como experiência referencial da cultura local. A forma de dançar é transmitida de modo intergeracional e ocorrem por meio da observação e da realização de ofi - cinas nas sedes dos grupos – denominados barracões – o que permite a intensifi cação dos laços comunitários e fa-miliares. Tais elementos contribuem também para o reforço, repetição, ou fi xação de comportamentos, atitudes e pos-turas dos brincantes perante o espectador e, por exten-são, na sua vivência cotidiana. “As culturas supostamente em desaparecimento, estão presentes, ativas, vibrantes, inventivas em todas as direções, reinventando o seu pas-sado” (Sahlins, 1997:52). O movimento de intensifi cação identitária – reposição e fi xação de comportamentos inerentes aos processos de transmissão dos elementos ri-tuais, dramáticos e cênicos dos grupos de bumba-meu-boi – orienta a postura e a conduta dos brincantes em relação aos locais onde ocorre uma encenação teatral ou represen-tação específi ca. Visando a apresentação de uma determinada perfor-mance, a exemplo dos acontecimentos que antecedem os espetáculos culturais ou durante o evento Vale Festejar, ocorre uma imersão histórica ou fi ccional dos indivíduos no âmbito da matriz cultural que deu origem à esta ma-nifestação. A partir dela textos são produzidos, ensaios são realizados e os conteúdos da encenação interiorizados pelos atores-brincantes, perfazendo um vasto espectro de possibilidades de reatualização das memórias e das tra-dições a diferentes platéias ou audiências: “[...] Performances afi rmam identidades, curvam o tempo, remodelam e adornam corpos, contam his-tórias. Performances artísticas, rituais ou cotidinas – são todas feitas de comportamentos duplamente exercidos, comportamentos restaurados, ações perfor-madas que as pessoas treinam para desempenhar . [...] A vida cotidiana também envolve anos de treinamen-to e aprendizado de parcelas específi cas de comporta-mento, e requer a descoberta de como ajustar e exercer as ações de uma vida em relação as circunstâncias pes-soais e comunitárias” (Schechner, 2003:27). Dada a capacidade criativa e a inventividade dos gru-pos de bumba-meu-boi, ou em virtude da mediação pelo turismo, a busca por elementos e motivos identitários re-lacionados à tradição, inter relaciona-se com a arregimen-tação de aspectos modernos, sendo capazes de ampliar o sentimento de pertença dos brincantes à cultura local. En-quanto encenação para os turistas permite o acesso destes ao domínio simbólico e ritualístico da brincadeira, a qual não apresenta excessivo descentramento identitário, fato que poderia tornar a apresentação inautêntica perante o público consumidor. Nesse movimento de retorno ou de restauração cul-tural acionado, “a modernidade fundamenta e legitima a sua dinâmica na tradição [...] que volta sempre que é solicitada pela contemporaneidade para compor novos re-fl exos e efeitos de sentido” (Marques: 2000), ensejando o bumba-meu-boi como espaço simbólico de restauração de comportamentos e das identidades. No âmbito do Vale Festejar, a dessacralização do bum-ba- meu-boi pelos brincantes torna-se possível em virtude do retorno fi nanceiro proporcionável pelas apresentações sem, no entanto, ferir os princípios e valores da tradição. Sahlins, (1997), ao analisar a reorganização das culturas em meio ao mercado global de circulação de produtos e processos, enfatiza o movimento de articulação dos gru-pos sociais e de resistência em relação aos supostos efei-tos homogeneizadores da globalização. Assiste-se a uma intensifi cação ou fl orescimento cultural, com a seleção de determinados elementos que podem ser utilizados como fatores de auto afi rmação das culturas, enquanto resposta à sua inserção no mercado capitalista ocidentalizante. Dessa forma, aos visitantes é reservada a represen-tação e o espetáculo, uma vez que “os pós-turistas não têm tempo para a autenticidade e deliciam-se com a natureza simulacional e construída do turismo contemporâneo, que sabem ser apenas um jogo” (Featherstone, 1995:144). Ao mesmo tempo, determinadas etapas dessa brincadeira, a exemplo do batismo e da morte do boi, ainda não são oportunizadas enquanto produto de consumo para os visi-tantes, estando restritos à comunidade local, aos devotos e agentes legitimadores dessa prática social. Ao dinamismo da restauração dos comportamentos e da transformação do bumba-meu-boi como espetáculo tu-rístico alinha-se também a discussão suscitada por Goff-mann (1985), referente ao comportamento humano na vida social. Para o autor, o relacionamento do homem em sociedade equipara-se à uma performance ou ação teatral, com o fi to de legitimar uma determinada representação do eu perante a platéia na qual se está interagindo. Para a realização desse intuito, emergem dois compo-nentes capazes de garantir o bom desempenho do ator, a saber: a região de fachada e a região dos fundos. Esque-maticamente, tem-se que a região de fachada é o lócus privilegiado da representação, destacando-se os arranjos estéticos e a linguagem corporal na composição de um cenário da situação desejada e que se quer aparentar. A região dos fundos, por sua vez, é o espaço de relaxamento das regras impostas pela representação e compartilhada de forma consciente ou inconsciente pelos atores sociais. Essa interpretação permite apreender a forma como se processa o relacionamento entre diferentes grupos sociais no contexto do turismo. Nos espaços turísticos, relações interpessoais e objetos são acionados para assegurar o conforto, a segurança e a familiaridade dos visitantes em relação a um determinado destino; assim, estabelecem-se nos equipamentos turísticos (meios de hospedagem, res- 116 PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 10(1). 2012 Espetáculos e performances culturais no turismo: ... ISSN 1695-7121 lam o intercâmbio cultural entre brincantes, espectado-res e turistas, contribuem para a conformação do bumba-meu- boi como acontecimento programado e assistido pelos poderes públicos, ao mesmo tempo em que se confi guram como territorialidades abertas às constantes infl uências, sejam elas de ordem interna ou externa, as quais promo-vem fl uxos de relações sociais e comerciais e circulação de bens simbólicos. Estes contribuem decisivamente para a reposição de uma memória e identidade em constante processo de transformação. Observou-se que mesmo nas apresentações ofi ciais, ocorrem interatividades e trocas interculturais entre os brincantes e os turistas, ou seja, entre os performers e pla-téia, resultando assim, numa experiência de mobilização em torno de uma encenação ou representação da cultura local. Reinventada no tempo-espaço presente, as apresen-tações culturais são vivenciadas pelos seus praticantes como uma experiência simbólica e estética, manifestação autêntica da cultura local. Ao mesmo tempo, as perfor-mances turísticas são entendidas como suporte para a va-lorização das memórias da cultura local, suas simbologias e crenças. As modifi cações estimuladas pela sua recente vinculação no mercado turístico e nos eventos e espetá-culos culturais são internalizadas e ressignifi cadas pelos moradores, incorporando-as à sua experiência cotidiana. Em todas essas situações, os laços de pertença ao universo ritualístico das manifestações populares tradicionais são reforçados. Assim, o turismo insere-se num amplo processo de re-generação das culturas e das identidades locais, enquan-to estratégia de inserção econômica e de diferenciação no mercado, dando origem a novos contornos e matizes. As-sim, “não fi ca clara que uma encenação destinada ao turis-ta, aparentemente inautêntica, seja tão diferente daquilo que acontece de qualquer maneira em todas as culturas” (Urry, 1996:25). Para além da aculturação, compreende-se atualmente que as culturas postas em contato incor-poram determinados elementos, promovendo constantes reinterpretações e ressignifi cações culturais, sendo os grupos locais agentes criativos da mudança e da inovação. Considerações fi nais Diante da intensifi cação dos processos culturais, do descentramento identitário e da comercialização de sig-nos, imagens e representações no mercado de consumo, as práticas sociais são revisitadas e re elaboram seus signifi - cados, estabelecendo novas formas de expressão da iden-tidade que convivem dialeticamente com produções cul-turais emergentes destinadas ao usufruto dos visitantes. No âmbito do bumba-meu-boi constataram-se ele-mentos performáticos que sinalizam um processo de re-criação cultural para atender às novas demandas de ócio e lazer que caracterizam as sociedades contemporâneas. Enquanto bem simbólico reconfi gurado como elemento de atratividade turística na cidade de São Luís, revela-se como tradução cultural interiorizada pelos brincantes, por taurantes, centros de lazer e entretenimento) determina-dos estereótipos e arranjos situacionais que propiciam a satisfação das expectativas internalizadas pelos turistas em relação à região visitada. Em se tratando do evento Vale Festejar, observa-se que determinados elementos da cultura encenada estão dispostos à fruição dos visitantes, garantindo a hospita-lidade na relação comercial e enaltecendo a experiência turística: “Na condição de espectador, o turista acabaria pro per-correr lugares facilmente reconhecíveis, devidamente preparados e encenados [...] A busca pelas experiên-cias autênticas leva a que o turista possa acreditar que o que está experimentando seja de fato autêntico, uma vez que os bastidores preparados para sua visitação são apreciados como sendo “originais” (Araújo, 2001: 59)”. Os gestos dos brincantes, a disposição dos objetos no ambiente climatizado, a sonoridade e os efeitos de luz pro-duzem uma ambiência e uma atmosfera convidativas para a elaboração de uma performance particular, “a decoração e os acessórios de lugar onde uma representação particu-lar é comumente feita, bem como os atores e o espetáculo geralmente ali encontrados, contribuem para fi xar uma espécie de encantamento sobre ele” (Goffmann, 1995:117). Os bastidores da encenação turística, por sua vez, cedem espaço para momentos de confraternização e in-tegração entre os atores do bumba-meu-boi, de eferves-cência popular e espontânea nos terreiros, ruas, avenidas e demais espaços sociais, com o alargamento do olhar nor-mativo - imanente às festas institucionalizadas e ofi ciais, e a confl uência de outros valores e regras de convívio, com a subversão da ordem socialmente estabelecida por um breve período de tempo. Ressalta-se que essas regiões não se excluem, ao con-trário, dialogam entre si, podendo existir pontos de in-terstícios entre ambos, nos quais se permite ao ator ou coadjuvante transitar por essas dimensões no sentido de reforçar ou redimensionar a encenação, atendendo, assim aos objetivos da representação cotidiana. A representação do bumba-meu-boi e os seus bastidores conformam essa manifestação como produto turístico que apresenta um elevado nível de atratividade, signifi cando uma experiên-cia autêntica, tanto por parte dos brincantes, quanto por parte dos consumidores: “Dessa forma, seria possível não apenas relativizar a oposição entre os dois pólos, front e back region, como também apontar para a questão de que o turismo pro-duz realidades situadas ao longo de um largo espectro que vai de um pólo a outro. Nesse modelo de inter-pretação, a compreensão dos espaços turísticos se dará nesse lugar em que se está operando essa idéia de au-tenticidade encenada” (Araújo, 200:59). Os lugares institucionais ou ofi ciais onde se desenro- PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 10(1). 2012 Karoliny Diniz Carvalho y Wladimir da Silva Blós ISSN 1695-7121 117 Margarita (orgs). Turismo e identidade local: uma visão antropológica. São Paulo: Papirus. Ascanio, Alfredo. 2009 “Turismo La reestructuraccíon cultural.” In: Pasos: Revista de Turismo y Patrimônio Cultural. Volume 01, número 01, 2003. Disponível em: http: < www.pa-sosonline. org> Acessado em 10 de março de 2009. Brandão, Carlos Rodrigues. 1982 O que é folclore. São Paulo: Brasiliense, 1982. Buner, Edward. 1996 “Tourism in the Balinese Borderzone” In: Sweden-burg L.; S.; T. (Orgs.). Displacement, Diaspora, and Geographies of Identity. Duke University Press, Dur-ham: 157-179 Buner, Edward 2004 “Culture on Tour: Ethnographies of Travel”. Chicago University Press Canclini, Néstor Garcia. 2000 Culturas Híbridas. Estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Edusp. 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Nas apresentações ofi ciais do Vale Festejar confron-tam- se a dimensão simbólica que a manifestação possui para os seus agentes culturais e a necessidade de atendi-mento das expectativas da demanda turística. As novas representações vinculadas ao bumba-meu-boi relacionam-se aos processos de hibridação das produções culturais na contemporaneidade. As experiências sagrada e profana dessa manifestação são redimensionadas ou recriadas em performances turísticas que intersectam momentos coti-dianos e extra-cotidianos, ordinários e extraordinários, produzindo e reproduzindo novas identifi cações numa re-leitura da sua identidade. Inserido numa perspectiva analítica propiciada pelos estudos da performance da restauração do comporta-mento, evidencia-se um processo de enriquecimento da manifestação. As transformações contínuas na forma de apresentação do auto do bumba-meu-boi acompanham a dinâmica social da manifestação por meio de sua capaci-dade de ressignifi cação. Nelas ocorrem constantes meca-nismos de articulação, seleção e apropriação de elementos culturais decorrentes do maior contato entre os diferentes grupos sociais. Ou seja, reposição e intensifi cação identi-tária imbrincam-se no jogo das identidades. O bumba-meu-boi apresenta um caráter fl exível fren-te às infl uências da atividade turística e de outros agentes externos, mantendo-se como a combinatória de elemen-tos decorrentes de um processo de dominação/resistência e transformação/permanência de seus conteúdos. Nesse sentido, a análise proposta evidenciou as diferentes for-mas de ressignifi cação identitária realizadas pelos brin-cantes tendo por objetivo afi rmar o seu patrimônio cul-tural, fato que confere legitimidade e autenticidade à performance revisitada para o turismo. Ao apresentarem o bumba-meu-boi num determinado texto ou contexto, os brincantes comunicam entre si e pe-rante o público espectador, elementos de uma identidade plural e em constante transformação. Ressalta-se que es-sas formas de vivenciar a identidade não se contradizem, sendo partes integrantes do processo de restauração cul-tural vivenciado pelas sociedades contemporâneas. Bibliografi a Aaraújo, Silvana Miceli de. 2001 “Artifício e Autenticidade: o turismo como experiên-cia antropológica”. In: Banducci Jr., Álvaro; Barretto, 118 PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 10(1). 2012 Espetáculos e performances culturais no turismo: ... ISSN 1695-7121 ranhense de Folclore, nº 18, São Luís, dez. Marqués, Ester. 2000 Tradição e Modernidade no Bumba-meu-boi. São Luís Rosa, Maria Cristina(org) 2002 Festa, lazer e cultura. São Paulo: Papirus. Sánchez, Antonio Garcia; García, Francisco Javier Albu-querque. 2003 “El turismo cultural y de sol y playa:¿Sustitutivos o complementarios?” In: Universidad Politécnica De Cartagena. Cuardernos de Turismo: 97-105. 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Título y subtítulo | Espetáculos e performances culturais no turismo: reflexões sobre o bumba-meu-boi em São Luis, Maranhão (Brasil) |
Autor principal | Diniz Carvalho, Karoliny ; da Silva Blós, Wladimir |
Publicación fuente | Pasos. Revista de turismo y patrimonio cultural |
Numeración | Volumen 10. Número 1 |
Sección | Artículos |
Tipo de documento | Artículo |
Lugar de publicación | El Sauzal, Tenerife |
Editorial | Universidad de La Laguna |
Fecha | 2012-01 |
Páginas | pp. 109-118 |
Materias | Turismo ; Patrimonio cultural ; Publicaciones periódicas |
Enlaces relacionados | Página web: http://todopatrimonio.com/revistas/101-pasos-revista-de-turismo-y-patrimonio-cultural |
Copyright | http://biblioteca.ulpgc.es/avisomdc |
Formato digital | |
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Texto | Vol. 10 Nº 1 págs. 109-118. 2012 Espetáculos e performances culturais no turismo: refl exões sobre o bumba-meu-boi em São Luis, Maranhão (Brasil) Karoliny Diniz Carvalho i Wladimir da Silva Blós ii Universidade Estadual de Santa Cruz ( Ilhéus- BA, Brasil) i Mestre em Cultura e Turismo pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). Bacharel em Turismo pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Endereço eletrônico: karol27_turismo@yahoo.com.br. ii Doutor em Antropologia Social pela Universidade Estadual de São Paulo (2007) e Docente do Mestrado em Cultura e Turismo da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). Possui graduação em Comunicação Social pela Universidade Federal de Santa Maria (1989), mestrado em Extensão Rural pela Universidade Federal de Santa Maria (1999). Mais recentemente tem se dedicado à pesquisa em antropologia das formas expressivas, notadamente nos seguintes temas: experiência e expressão da experiência turística e antropologia da performance. Endereço eletrônico: wblos@bol.com.br Resumo: O presente artigo objetiva analisar os processos de revigoramento das culturas a partir do desenvolvimento do turismo cultural. Tendo como objeto de estudo o bumba-meu-boi na cidade de São Luís- Maranhão, discutem-se as principais modifi cações provocadas nesta brincadeira a partir de sua incorporação ao circuito de produção e consumo cultural. Tomando por base os estudos de performance e de restauração do comportamento, compreende-se que os espetáculos culturais, a exemplo do evento Vale Festejar, constituem-se remodelações das identidades diante de outros con-textos e espaços sociais, e que incorporam no presente novas signifi cações. Palavras-chave: Turismo Cultural; Identidade; Performance; Bumba-meu-boi; São Luís do Maran-hão. Title: Shows and cultural performances in tourism: refl ections on the bumba-meu-boi in São Luis, Maranhão (Brazil) Abstract: This article examines the process of revitalization of cultures from the development of cultural tourism. Where the object of study, the Bumba-meu-boi in São Luis, Maranhao, discusses the major changes brought about in this play from its incorporation into the circuit of cultural production and consumption. Based on studies of performance and restoration of behavior, it is understood that the cultural events, like the Valley Celebrate event, consist of renovations on the identities of other contexts and social spaces, and incorporating in this new meanings. Keywords: Cultural Tourism, Identity; Performance; Bumba-meu-boi; São Luís do Maranhão. © PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural. ISSN 1695-7121 www.pasosonline.org 110 PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 10(1). 2012 Espetáculos e performances culturais no turismo: ... ISSN 1695-7121 Introdução A importância e a amplitude assumidas pelas viagens e pelo lazer na contemporaneidade conferem à atividade turística um caráter nitidamente dual. Nela, além de es-tarem centrados os aspectos econômicos, predomina um aspecto sócio-cultural, tendo em vista que subjaz a esse processo um amálgama de interesses e necessidades va-riantes, conforme os diferentes contextos em que se en-quadram grupos sociais distintos. Assim, o turismo emerge ora como um fenômeno coop-tador de acréscimo fi nanceiro e de inserção social, ora como prática passível de ser empreendida em face do au-mento substancial do tempo livre. Porém, à medida que se consolida a partir do maior desenvolvimento científi co e tecnológico, o turismo também se vê compelido pela lógica de produção e distribuição dos bens materiais e imateriais engendrados pelo modo de produção capitalista. Ao mes-mo tempo, o seu fomento surge em virtude de um novo padrão de consumo presente nas sociedades contemporâ-neas. Considerando que as festas e celebrações populares referem-se a momentos diferenciadores da vida cotidia-na atraindo um público consumidor específi co – os turis-tas – torna-se necessário compreender as interações que se estabelecem quando os bens simbólicos inserem-se no mercado turístico global, dando origem a produções cul-turais híbridas, móveis e polissêmicas e, por isso, sendo constantemente reelaboradas pelos grupos sociais. A redefi nição das práticas culturais, acervos e coleções dos diferentes grupos sociais pela atividade turística suscita questões referentes à autenticidade dos eventos, festas e celebrações, a espetacularização das tradições e a ressemantização dos seus signifi cados sob a égide da fragmentação ou dissolução das identidades globais. Sur-gem ainda da necessidade de compreender as mudanças nas práticas culturais enquanto resultado das diferentes formas de manifestação dos aspectos simbólicos experien-ciados pelos grupos sociais na sua vivência cotidiana e festiva. O presente artigo objetiva discutir o processo de res-tauração cultural do bumba-meu-boi, na cidade de São Luís, Maranhão, Brasil, por meio da análise de apresen-tações performáticas de grupos culturais durante o even-to Vale Festejar. Apresentam-se e discutem-se alguns elementos de redefi nição dos aspectos tradicionais desse culto popular e da ressignifi cação da identidade local para o atendimento das expectativas dos visitantes, sob a pers-pectiva da teoria da performance (Turner:1964) e da res-tauração dos comportamentos (Schechner: 2003). Dessa forma, procurou-se compreender os processos de trocas interculturais e as possíveis alterações que ocorrem nessa manifestação a partir de seu relacionamento com a atividade turística. Partiu-se do pressuposto de que as experiências sagrada e profana no bumba-meu-boi são re-dimensionadas ou recriadas em performances turísticas que intersectam momentos cotidianos e extra-cotidianos, ordinários e extraordinários, produzindo e reproduzindo novas identifi cações numa releitura das identidades. Performance cultural e turismo: o caso do Bumba-meu- boi em São Luís - Maranhão As festas, enquanto momentos de comemoração e con-graçamento popular possuem o seu enraizamento e orga-nização no interior de uma determinada comunidade, sen-do importantes no processo de coesão social e de reforço da memória e dos valores identitários de um lugar. As manifestações tradicionais tornam-se ainda polissêmicas, posto que a elas se associam de forma dinâmica, o trabal-ho e o lazer, a diversão e a devoção, o sagrado e o profano, além de convergirem importantes mecanismos de sociabi-lidade e reciprocidade cultural que intensifi cam o sentido de pertença à uma determinada cultura. Brandão (1974: 28) considera que as festas são. “Acontecimentos sociais de envolvimento parcialmen-te coletivo que geralmente observam uma ruptura com a rotina seqüente na vida social, que cria comporta-mentos sobretudo, rituais, logo expressivos e relações interativas de fora e efeitos de períodos longos da ro-tina”. Insere-se nesse cenário o bumba-meu-boi, manifes-tação cultural presente em São Luís, capital do Estado do Maranhão, e que vem se constituindo num importante elemento da oferta turística dessa localidade. Esta se ca-racteriza pela capacidade de mobilização e participação comunitária, na qual se sobressaem formas distintas de expressão da identidade local, reveladas na diversidade de sotaques (tipos ou estilos em que são classifi cados os grupos de bumba-meu-boi), musicalidade, ritmos, toadas e personagens que se apresentam nos terreiros e nos es-paços públicos da cidade durante os festejos juninos. Apresentado em diversos espaços sociais, o bumba-meu- boi é reverenciado como exercício de sociabilidade, no qual se evidenciam a pessoalidade e a coletividade das re-lações, além da reafi rmação da fé dos devotos em relação aos santos celebrados. Engendra amizades, encontros, comunicação, trânsito, diálogo e, ao mesmo tempo, riva-lidades e disputas entre os grupos. A devoção no bumba-meu- boi constitui-se um traço marcante que demonstra a relação existente entre os grupos e os santos do período junino, notadamente São João. Além dos santos católicos, observa-se a devoção em forma de pagamento de promes-sa ou obrigação para entidades espirituais cultuadas em terreiros de Tambor de Mina, Umbanda, Pajelança, den-tre outros. A religiosidade para os brincantes do boi atinge seu ápice no batismo. Esse confere ao grupo uma afi rmação de identidade, confi gurando-se parte de um ciclo, que se inicia com os ensaios – momentos em que o boi está no circuito doméstico e na intimidade das relações entre os componentes de cada grupo e se prepara para dançar para além da comunidade – e posteriormente com o batismo, momento em que o boi recebe a bênção e a proteção do santo, passando então para a fase das apresentações pú-blicas. PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 10(1). 2012 Karoliny Diniz Carvalho y Wladimir da Silva Blós ISSN 1695-7121 111 Após o batismo, os batalhões de bumba-meu-boi (nome com que são denominados os grupos) adentram nos te-rreiros, nos arraiais da cidade, onde podem ser vistos por diferentes espectadores, até que o processo ritualístico se cumpra com a morte do boi. Este momento demarca o término de um ciclo, na confi rmação de que o boi nova-mente ressuscitará no ano seguinte, reiniciando o ciclo. Essas fases ou etapas da brincadeira apresentam um rico simbolismo, expressando as diferentes visões de mundo e a forma com que os grupos de bumba-meu-boi gestam, compartilham e interiorizam as relações e confl itos ex-perienciados na sua vida cotidiana. Enquadram-se, as-sim, na categoria de drama social de que nos fala Turner (2008), momentos desarmônicos ou descontínuos da vida social que abalam as estruturas hierárquicas e cujo desfe-cho pode resultar numa desestabilização ou superação da estrutura vigente, ou na sua reafi rmação ou revitalização. O caráter de devoção, de religiosidade, de ritual, expõe na manifestação do bumba-meu-boi a própria organização social do grupo, dando forma simbólica às interações oca-sionadas em sua estrutura. E considerando o bumba-meu-boi refl exo das experiências cotidianas, este se torna lugar memória, desvelando por meio do auto, as aspirações de uma classe social específi ca, suas lutas cotidianas, as rei-vindicações para uma elevação da qualidade de vida, as críticas ao modelo social instituído. Durante as etapas de preparação, ensaios, nos mo-mentos que antecedem as apresentações, e ao fi nal delas instala-se entre os membros de cada grupo de bumba-meu- boi o que Turner (2008) denomina de communitas, isto é, um sistema de relações sociais ou uma modalidade de interação social que se opõe à estrutura, mediante o estabelecimento de outras normas, posições e regras que propicia um distanciamento dos sujeitos e uma refl exão crítica sobre a realidade social em que estão inseridos, a inversão de hierarquias e criação de laços de solidarieda-de entre eles. Restrito aos segmentos populares desassitidos até meados do século XX, sofrendo constantes sanções por parte das elites que inviabilizavam a livre manifestação da brincadeira, em meados da década de 1970 o bumba-meu- boi notabiliza-se entre as camadas sociais abastadas, popularizando-se a partir de sua intensa divulgação nos aparelhos midiáticos. Enquanto símbolo da identidade local torna-se alvo também de políticas culturais e de pro-moção turística, uma vez que se identifi ca o seu potencial na geração de negócios e na melhoria da qualidade de vida local. No processo de implantação ou desenvolvimento do turismo cultural, assiste-se a uma crescente articulação entre os poderes públicos e o empresariado, no sentido de aumentar o nível de competitividade do destino turístico no mercado. Nesses casos, os elementos da cultura ima-terial, tais como os festejos populares sagrados e profa-nos, os rituais e as danças tradicionais afi guram-se como atrações turísticas com elevado potencial de captação de visitantes, diversifi cando a oferta de atrativos e minimi-zando a sazonalidade do destino em períodos de baixa es-tação: “[...] as oportunidades que presentan los festiva-les, como nueva oferta turístico-cultural especia-lizada, son importantes pues se trata de acon-tecimientos periódicos de alto nivel cultural y artístico, muchas veces en entornos patrimoniales de interés turístico, con una diversidad tal que les convierte en un producto de gran interés para un público muy diferente” (Sanchéz; García,2003:101) Assim, de prática coletiva, o bumba-meu-boi redefi ne-se na lógica de produção e consumo cultural, destacando-se como elemento de atratividade turística para a cidade de São Luís, por intermédio da sua vinculação em campan-has de marketing direcionadas aos turistas potenciais, e do estímulo para a adequação do bumba-meu-boi enquan-to produto turístico. A partir da aproximação com o mer-cado de consumo cultural, novas experiências inserem-se no universo ritualístico tradicional do bumba-meu-boi, tais como o surgimento de manifestações parafolclóricas, e a crescente profi ssionalização dos grupos mantenedores dessa tradição. Nos processos de interações turísticas, o bumba-meu-boi adquire novos signifi cados ao associar-se às apresen-tações ofi ciais da cultura local para grupos de visitantes. A comemoração popular transforma-se em espetáculo, com a redefi nição de seus elementos, mediante o estabe-lecimento de relações comerciais e a necessidade de ade-quação mercadológica visando sua inserção no turismo cultural. Assim, incorpora-se a essa festividade popular o conceito de performance cultural. Nela imbricam-se cinco dimensões chaves: “First, cultural performances are temporally and spa-tially framed. Second, they are programmed, following a more or less structured order of activities. Third, cultural performances are communal insofar as they provide an occasion for coming together. Fourth, cul-tural performances are heightened occasions invol-ving display. Fifth, cultural performances tend to be prepared for and often publicized in advance” (Fuoss e Hill, 2000:111). No âmbito das manifestações de trabalho e lazer, festa e devoção, ritual e espetáculo, sobressaem-se diferentes performances, perfomers e espectadores, os quais confe-rem sentidos e signifi cados à representação de acordo com variados interesses e expectativas. Na visão de Ligiéro (2003: 90) “[...] performance empresta insghts valiosos para a formação e identidade permitindo um espaço para entendimento intercultural e através da performance os signifi cados centrais, valores e objetivos da cultura são vistos em ação.” De acordo com Schechner (2003) as performances coti-dianas, rituais ou artísticas, misturam-se, sofrendo acrés-cimos a partir de elementos de sofi sticação, visuais ou co-reográfi cos, que enriquecem o jogo cênico e elevam o nível de desempenho dos atores sociais, garantindo assim, a efi cácia da representação teatral. Na interação proporcio- 112 PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 10(1). 2012 Espetáculos e performances culturais no turismo: ... ISSN 1695-7121 nada pela brincadeira popular como bem de consumo, os brincantes assumem novas posições identitárias, a partir de um texto – o conjunto de conhecimentos tradicionais, saberes e fazeres que referenciam as tradições afro ma-ranhenses – num espaço e contexto turístico previamente determinados, “a performance constrói a sua arte a partir da imagem emocional e estruturas arquetípicas básicas e situações que pertencem ao ‘inconsciente coletivo’ da co-munidade” (Coehn, 1989:159). A perspectiva comercial do bumba-meu-boi adéqua-se aos limites do cenário turístico, com delimitação de ho-rários, repertórios, fi gurinos, e duração da performance. Nela, as trocas simbólicas operam numa esfera global, híbrida e envolvem os órgãos de cultura, promotores de eventos, patrocinadores e o empresariado que atua no turismo, “international tourism is an exchange system of vast proportions, one characterized by a transfer of images,signs, symbols, power, money, goods, people, and services” (Bruner,1996:157). Nesse ínterim, a adoção de novos elementos altera-ram signifi cativamente as formas de representação desse auto popular, com ênfase nos aspectos estéticos, na adap-tação das indumentárias, fi gurino e coreografi a, além de modifi cações nos instrumentos e na redução do tempo de apresentação, no sentido de atender às expectativas dos visitantes. Conforme constata Lima (2002:15): “Aos grupos folclóricos moderninhos que insistem em se autodenominar bumba-meu-boi, apropriaram-se na brincadeira junina tradicional e transformaram-na em um show de tv, espetáculo colorido e esfuziante, agra-vável aos olhos, senão imitação pelo menos inspirados nos grupos de ‘tchan’ ou nas escolas de samba [...] O antigo rebanho agora se chama quadra de ensaio. Os cordões são alas. A dança primitiva e espontânea obe-dece a uma coreografi a ensaiada por experts de ba-llets. O amo passou a mestre-sala. Os adereços têm grifes de renomados artistas plásticos. Enfi m, o boi sofi sticou-se”. [...] “Aliás, realçado pelas reduzidas in-dumentárias das brincantes que põem em destaque as formas esculturais de verdadeiras modelos. Mas, por que chamá-lo bumba-meu-boi? Por que não classifi cá-los, com toda a propriedade e justiça como grupo da dança folclórica, teatro de rua ou coisa equivalente?”. Os brincantes extraem da sua realidade cotidiana os elementos que produzem a encenação ritual e artística, ou tomam de empréstimo de outros sistemas culturais infor-mações, instrumentos de percussão e elementos cênicos, transformando a manifestação numa estrutura dinâmica e complexa, extensão de sua vivência individual ou sub-jetiva. Tal mecanismo repercute entre os legitimadores des-sa expressão tradicional, os quais intensifi cam suas ar-ticulações com diferentes agentes: promotores culturais, gestores públicos, empresariado local. Inseridos na lógica capitalista de consumo cultural global, solicitados a apre-sentar- se em shows e a ministrar ofi cinas, os mestres e brincantes do bumba-meu-boi participam ativamente das trocas culturais com outros setores da sociedade. Nas perfomances turísticas institucionais tende a oco-rrer uma reordenação da realidade material e simbólica dos brincantes, dos valores sagrados e profanos inerentes à brincadeira popular, ao mesmo tempo em que a recriam, articulando diferentes experiências: sagrada/profana, in-dividual/ grupal, cotidiana/profi ssional. A experiência do Bumba-meu-boi no vale festejar Como parte integrante dessa estratégia de valorização para o turismo, destaca-se a realização do evento “Vale Festejar”, patrocinado pelo Governo do Estado em parce-ria com a iniciativa privada. Trata-se da promoção de es-petáculos de bumba-meu-boi no mês de julho e, portanto, não correspondente ao ciclo ritualístico do bumba-meu-boi e ao período tradicional de apresentações. A estruturação desse espaço vincula-se à necessidade de captação de fl uxos de visitantes, estendendo o período de alta estação da cidade, e permitindo aos turistas o aces-so aos elementos da cultura local, ao mesmo tempo em que se propunha a benefi ciar social e economicamente a comunidade, enquanto agente partícipe da manifestação. Durante a realização do evento, observa-se um cres-cente processo de estetização da brincadeira, com o dis-tanciamento dos brincantes em relação aos espectadores, o apelo visual e performático dos grupos folclóricos, e a criação de um cenário normatizado, onde se sobressaem a passividade do público e o seu olhar direcionado aos ele-mentos diferenciadores do espetáculo foco de apreciação: “Nas festas, as lentes dos turistas [...] são atraídas, também, por personagens, alegorias, fantasias, excen-tricidades, ou seja, elementos visuais, característicos da sociedade moderna, [...] tornando-se um atrativo para as pessoas de fora, sendo a imagem um dos ele-mentos fundamentais impulsionadores da cultura de consumo” (Rosa, 2002:35). Ressalta-se a valorização estética e a preocupação com o entretenimento e a ludicidade, se comparada aos ele-mentos devocionais e espirituais que também caracteri-zam a manifestação. Durante a performance cultural no Vale Festejar, o auto do bumba-meu-boi não é realizado integralmente em virtude do tempo reduzido. Muitos dos elementos sagrados são abreviados, como por exemplo, as toadas ou cânticos de louvações e reverências aos santos que ocorrem normalmente no início das apresentações. As toadas tradicionais são substituídas pelas denominadas toadas de cordão, as quais possuem maior receptividade junto ao público espectador. Em alguns grupos ou sotaques, como os bumba-meu-boi de orquestra, ocorre a incorporação de novos instru-mentos, dando origem a sonoridades e ritmos emergentes. Nesse caso, a preocupação incide-se menos nas signifi - cações religiosas do que na efi cácia da performance cultu-ral. Mesmo em grupos considerados tradicionais em que PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 10(1). 2012 Karoliny Diniz Carvalho y Wladimir da Silva Blós ISSN 1695-7121 113 constata que estes tendem à ser sintetizados e estetiza-dos, adornados para o consumo. Durante o processo, atribui-se aos brincantes a carac-terística de liminaridade (Turner, 1964). O estágio limi-nar invoca a transposição de status, ou seja, de passagem da condição de agente local para brincante, revestida por novas formas de representação identitária. Os diferentes matizes presentes na ação performada dos brincantes diante de públicos específi cos sugerem certa mobilidade ou trânsito - como revelam as expressões corporais no centro da roda, os sons dos tambores, ou as toadas evoca-das pelos mestres – os quais reterritorializam o lugar do bumba-meu-boi na cultura local. Assim, revigoram-se os laços de pertencimento dos brincantes em relação ao seu patrimônio, ao mesmo tem-po em que promovem articulações com o global, não num movimento de ruptura ou imposição, mas de circularida-de, intercâmbio ou troca. As novas representações vincu-ladas ao bumba-meu boi relacionam-se aos processos de hibridação das produções culturais na contemporaneida-de sem, contudo, invalidar o substrato que lhe é subja-cente. Nesse patamar, ocorrem constantes mecanismos de articulação, seleção e apropriação de elementos cultu-rais decorrentes do maior contato entre os diferentes gru-pos sociais. Ou seja, reposição e intensifi cação identitária imbrincam-se no jogo das identidades. Ocorrem mecanismos de identifi cação e apropriação de elementos, técnicas, materiais e formas culturais emergentes, caracterizando uma tradução e atualização do bumba-meu-boi ou um processo de enraizamento e re-enraizamento. Vistas sob o prisma da teoria da perfor-mance, as apresentações que obedecem ao tempo social do brincantes e aquelas atreladas ao calendário turístico podem ser compreendidas como interpretações possíveis da relação entre texto e contexto, numa releitura contem-porânea dessa brincadeira popular. A aceleração do intercâmbio cultural, atrelada às modernas tecnologias da informação e da comunicação, ocasiona o surgimento de produtos culturais híbridos, que transitam em diferentes sistemas culturais e não possuem fronteiras defi nidas, desconstruindo, assim, a concepção tradicional de cultura. Na visão de Dias (2003:113): “Essa mudança funcional coloca-se perfeitamente no processo dinâmico em que se insere o fato folclórico. Perante novos atores – os turistas -, estes provocam mudanças geradas pelas interações recíprocas, que podem provocar modifi cações no fato folclórico, o qual, quando bem conduzido, será a continuidade, em outro tempo, do fato original determinado historicamente, porém transformado e com novas funções”. Constata-se que a apresentação de grupos de bumba-meu- boi para o turismo insere-se na busca pelo consumo de experiências consideradas autênticas pelos visitantes. Bruner (2004) em sua análise sobre a performance da vida e cultura de jovens guerreiros da tribo Massai no Rancho Mayer, propriedade privada de remanescentes de a participação da fi gura feminina e de brincantes jovens era reduzida, a presença desses brincantes tona-se cen-tral nas apresentações destinadas aos turistas, com ên-fase nos gestos corporais, adornos e indumentárias que elevam o seu potencial de atratividade. A performance durante o evento pode ser entendida como uma co-produção entre os brincantes, comunidade local e turistas, numa dialética que não está isenta de confl itos ou dissensões entre esses diferentes agentes. Ao tempo em que a matriz tradicional da brincadeira popu-lar é recriada, permitindo a combinação de elementos e variações de acordo com a subjetividade e a criatividade de cada grupo e do nível de treinamento dos brincantes, a performance turística torna-se fonte de recursos para a continuidade e sustentabilidade dos grupos e para a rea-fi rmação dos laços de pertencimento ao universo simbólico do bumba-meu-boi. Constitui-se também ícone da cultura popular apropriado pelos órgãos estatais enquanto instru-mento de promoção turística. As observações em campo e a s informações obtidas junto aos brincantes nos levaram a inferir que ocorre um processo de retradicionalização da brincadeira. As modi-fi cações estimuladas pela crescente vinculação do bumba-meu- boi no mercado turístico e nos eventos e espetáculos culturais são internalizadas e ressignifi cadas pelos seus participantes, incorporando-as à sua experiência cotidia-na. Foram entendidas, assim, como necessárias para a continuidade dessa manifestação. Assim, a tradição cultural incorpora-se ao consumo tu-rístico, provocando mudanças na forma de apresentação do bumba-meu-boi, num espaço constante de negociação dos seus elementos originários para atender aos anseios dos visitantes. Ao longo do Vale Festejar, re atualiza-se a devoção, na medida em que são agregados novos estilos na forma de apresentação dos grupos folclóricos, ressal-tando- se os aspectos de padronização dos instrumentos e das coreografi as, redução de personagens, conferindo uma apresentação sistemática e nitidamente comercial. Reacende-se, pois, a discussão em torno da autentici-dade das festas, eventos e celebrações, quando encenadas para grupos de visitantes. Considera-se que o mercado turístico estimula a formatação de produtos e atrações ar-tifi ciais, com a conseqüente invenção de tradições “[...] a fi n de obtener um producto presentable como auténtico, fuera de tiempo, que debe infundir la idea de experiencia inolvidable y única para su consumidor y, la vez, ser re-petible y estandarizada para el conjunto” (Markwell apud Talavera 2003: 44). É nesse sentido que Talavera (2003) assinala que os novos conteúdos e formas culturais conduzem à materia-lização de “autenticidades emergentes”, percebidos e in-terpretados como autênticos, tanto por parte dos turistas, como pela comunidade local, levando à afi rmação de que a autenticidade torna-se subjetiva e resultante dos sen-tidos e signifi cados que os diferentes consumidores atri-buem às atrações e produtos culturais que experienciam. E, embora ressalvando a importância dos produtos cul-turais serem vinculados aos signifi cados locais, o autor 114 PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 10(1). 2012 Espetáculos e performances culturais no turismo: ... ISSN 1695-7121 uma família britânica localizada no leste da África, assi-nala que há um processo de construção idealizada de um drama colonial num espaço e tempo pré-determinados. Segundo o autor, a recriação do universo simbólico presente na vila Massai confi gura um espaço turístico de fronteira, liminar e, portanto, um teatro de experiência. Nele, as tradições dos Massai são revisitadas e em alguns casos, adaptadas, inserindo-se num jogo de interesses em que se sobressai a manutenção da tribo frente às novas demandas políticas, sociais e culturais, das quais a ativi-dade turística constitui-se parte integrante. Mediante a pesquisa etnográfi ca, as danças, cantos e rituais que envolvem a transposição de status dos jovens guerreiros Massai produzem um efeito realista nos visi-tantes que se completa com a tradição do chá inglês no jar-dim do Rancho Mayer, reforçando, assim, a oposição en-tre a resistência tribal e o colonialismo. As apresentações realizadas atrelam-se ainda à necessidade de confi rmar as expectativas de retorno nostálgico à vida selvagem e exótica da África colonial presente no imaginário dos vi-sitantes. Paralelamente, tona-se um palco revelador das negociações, diferenças, confl itos e paradoxos existentes entre a realidade social e cultural dos Massai e a repre-sentação de sua narrativa identitária que é encenada en-quanto performance turística. As refl exões encetadas por Bruner (2004) têm contri-buído para reorientar as análises acerca dos eventos e das produções de caráter turístico para além dos processos de aculturação, evidenciando os mecanismos de refl exivida-de e tradução cultural. Nesse patamar, a performance tu-rística dos grupos de bumba-meu-boi insurge como uma instância de redefi nição dos símbolos que codifi cam as re-lações sociais entre os mestres, performers e espectadores em condições cotidianas e extra-cotidianas. Essas duas dimensões não se tornam mutuamente ex-cludentes; estabelecendo trocas entre si, enriquecem o jogo das identidades locais, sendo os meios de comunicação, as novas tecnologias e o turismo, vetores do hibridismo cul-tural. As performances turísticas revelam articulações de agentes internos e externos, os quais evidenciam as re-lações entre centralidade e marginalidade, inclusão e ex-clusão, ou seja, movimentos “de passagem e signifi cados que são posicionais e relacionais, sempre em deslize ao longo de um espectro sem começo nem fi m (Hall, 2003:33). Diante do caráter místico do bumba-meu-boi, da fé que direciona as ações dos grupos, o espetáculo acontece den-tro de uma esfera que abrange os mesmos ritos que tam-bém fazem parte desse universo simbólico. O mesmo gru-po de bumba-meu-boi que vai à igreja receber as bênçãos dos santos, que batiza, cumpre sua promessa, é o boi que sobe ao palco do Vale Festejar, que se faz presente nos veículos de promoção e divulgação da identidade cultural local, que se apresenta nos espaços turísticos ofi ciais para apreciação dos visitantes, que recebe o pagamento pelas performances culturais. A forma com que os grupos reconhecem a dinâmica intercultural e desenvolvem estratégias de visibilidade correspondem aos diferentes modos de expressividade popular, de reconstrução da memória social e, consequen-temente, de reposição ou de revigoramento das identida-des. Dotada de valores simbólicos, a autenticidade é nego-ciável devendo ser gerida preferencialmente pelos setores populares, os quais devem estabelecer limites à mudança cultural, quando descontextualizadas da realidade local: “Para a teoria da performance, a idéia de autenticida-de está fi ncada no aqui e agora de cada performance realizada, em condições sociais, econômicas e histó-ricas concretas, conforme a intencionalidade de cada realização. Nesse sentido, pode-se afi rmar que o au-têntico, desse ponto de vista, é aquilo que é real e que se concretiza e materializa num dado momento” (Vian-na e Teixeira, 2008:125). A autenticidade é entendida como um constructo so-cial, uma releitura ou reinterpretação das culturas e das identidades que ocorrem nas diversas esferas da experiên-cia cotidiana, “[...] é precisamente quando a mudanças se voltam para as formas tradicionais, realmente tornando-se essas formas, que uma restauração do comportamento ocorre” (Schechner 1985: 210). Com base nos estudos realizados por Schechner, as re-generações dos fatos culturais também se enquadram no movimento de restauração dos comportamentos próprios da dinâmica social. As práticas culturais são revisitadas, reforçadas e condicionadas a partir de códigos e símbo-los anteriormente construídos e retransmitidos entre ge-rações sucessivas. A partir do momento em que a mani-festação é formatada para uma apresentação de caráter turístico, as fronteiras entre o ritual e o jogo cênico da performance turística diluem-se. O comportamento res-taura- se através da repetição, na passagem do movimento do ritual para a brincadeira, do religioso para o profano, tornando-se recorrentes a preocupação dos brincantes e organizadores com o desempenho das apresentações e com a satisfação das expectativas do público. As apresentações performáticas dos grupos folclóricos e parafolclóricos constituem-se, portanto, remodelações da identidade, diante de outros contextos e espaços sociais, as quais incorporam no presente novas signifi cações: “O comportamento restaurado é simbólico e refl exivo: não comportamento vazio, mais pleno que irradia plu-ralidade de signifi cados [...] O comportamento simbóli-co ou refl exivo signifi ca fi xar, transformando em teatro o processo social, religioso, estético, médico e educa-cional. A representação signifi ca: nunca pela primeira vez. Isso signifi ca: da segunda até n vezes. A represen-tação é o comportamento repetido” (Schechner 1985: 206). Tal fato torna-se perceptível quando do repasse do saber- fazer do bumba-meu-boi pelos mestres aos demais membros das comunidades. A confecção dos instrumentos, indumentárias e adereços, a fabricação do couro do boi, as toadas, ensaios, gestos, rituais, expressões corporais, PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 10(1). 2012 Karoliny Diniz Carvalho y Wladimir da Silva Blós ISSN 1695-7121 115 e demais formas de relacionamento com o transcendente apresentam-se como um conjunto de códigos legados por uma herança secular e que legitima o bumba-meu-boi como experiência sagrada e profana. O processo de preparação dos grupos, os ensaios do boi, assim como os adereços e indumentárias utilizados apresentam-se carregados de simbologias, e constituem um conjunto de códigos culturais que legitima o bumba-meu- boi como experiência referencial da cultura local. A forma de dançar é transmitida de modo intergeracional e ocorrem por meio da observação e da realização de ofi - cinas nas sedes dos grupos – denominados barracões – o que permite a intensifi cação dos laços comunitários e fa-miliares. Tais elementos contribuem também para o reforço, repetição, ou fi xação de comportamentos, atitudes e pos-turas dos brincantes perante o espectador e, por exten-são, na sua vivência cotidiana. “As culturas supostamente em desaparecimento, estão presentes, ativas, vibrantes, inventivas em todas as direções, reinventando o seu pas-sado” (Sahlins, 1997:52). O movimento de intensifi cação identitária – reposição e fi xação de comportamentos inerentes aos processos de transmissão dos elementos ri-tuais, dramáticos e cênicos dos grupos de bumba-meu-boi – orienta a postura e a conduta dos brincantes em relação aos locais onde ocorre uma encenação teatral ou represen-tação específi ca. Visando a apresentação de uma determinada perfor-mance, a exemplo dos acontecimentos que antecedem os espetáculos culturais ou durante o evento Vale Festejar, ocorre uma imersão histórica ou fi ccional dos indivíduos no âmbito da matriz cultural que deu origem à esta ma-nifestação. A partir dela textos são produzidos, ensaios são realizados e os conteúdos da encenação interiorizados pelos atores-brincantes, perfazendo um vasto espectro de possibilidades de reatualização das memórias e das tra-dições a diferentes platéias ou audiências: “[...] Performances afi rmam identidades, curvam o tempo, remodelam e adornam corpos, contam his-tórias. Performances artísticas, rituais ou cotidinas – são todas feitas de comportamentos duplamente exercidos, comportamentos restaurados, ações perfor-madas que as pessoas treinam para desempenhar . [...] A vida cotidiana também envolve anos de treinamen-to e aprendizado de parcelas específi cas de comporta-mento, e requer a descoberta de como ajustar e exercer as ações de uma vida em relação as circunstâncias pes-soais e comunitárias” (Schechner, 2003:27). Dada a capacidade criativa e a inventividade dos gru-pos de bumba-meu-boi, ou em virtude da mediação pelo turismo, a busca por elementos e motivos identitários re-lacionados à tradição, inter relaciona-se com a arregimen-tação de aspectos modernos, sendo capazes de ampliar o sentimento de pertença dos brincantes à cultura local. En-quanto encenação para os turistas permite o acesso destes ao domínio simbólico e ritualístico da brincadeira, a qual não apresenta excessivo descentramento identitário, fato que poderia tornar a apresentação inautêntica perante o público consumidor. Nesse movimento de retorno ou de restauração cul-tural acionado, “a modernidade fundamenta e legitima a sua dinâmica na tradição [...] que volta sempre que é solicitada pela contemporaneidade para compor novos re-fl exos e efeitos de sentido” (Marques: 2000), ensejando o bumba-meu-boi como espaço simbólico de restauração de comportamentos e das identidades. No âmbito do Vale Festejar, a dessacralização do bum-ba- meu-boi pelos brincantes torna-se possível em virtude do retorno fi nanceiro proporcionável pelas apresentações sem, no entanto, ferir os princípios e valores da tradição. Sahlins, (1997), ao analisar a reorganização das culturas em meio ao mercado global de circulação de produtos e processos, enfatiza o movimento de articulação dos gru-pos sociais e de resistência em relação aos supostos efei-tos homogeneizadores da globalização. Assiste-se a uma intensifi cação ou fl orescimento cultural, com a seleção de determinados elementos que podem ser utilizados como fatores de auto afi rmação das culturas, enquanto resposta à sua inserção no mercado capitalista ocidentalizante. Dessa forma, aos visitantes é reservada a represen-tação e o espetáculo, uma vez que “os pós-turistas não têm tempo para a autenticidade e deliciam-se com a natureza simulacional e construída do turismo contemporâneo, que sabem ser apenas um jogo” (Featherstone, 1995:144). Ao mesmo tempo, determinadas etapas dessa brincadeira, a exemplo do batismo e da morte do boi, ainda não são oportunizadas enquanto produto de consumo para os visi-tantes, estando restritos à comunidade local, aos devotos e agentes legitimadores dessa prática social. Ao dinamismo da restauração dos comportamentos e da transformação do bumba-meu-boi como espetáculo tu-rístico alinha-se também a discussão suscitada por Goff-mann (1985), referente ao comportamento humano na vida social. Para o autor, o relacionamento do homem em sociedade equipara-se à uma performance ou ação teatral, com o fi to de legitimar uma determinada representação do eu perante a platéia na qual se está interagindo. Para a realização desse intuito, emergem dois compo-nentes capazes de garantir o bom desempenho do ator, a saber: a região de fachada e a região dos fundos. Esque-maticamente, tem-se que a região de fachada é o lócus privilegiado da representação, destacando-se os arranjos estéticos e a linguagem corporal na composição de um cenário da situação desejada e que se quer aparentar. A região dos fundos, por sua vez, é o espaço de relaxamento das regras impostas pela representação e compartilhada de forma consciente ou inconsciente pelos atores sociais. Essa interpretação permite apreender a forma como se processa o relacionamento entre diferentes grupos sociais no contexto do turismo. Nos espaços turísticos, relações interpessoais e objetos são acionados para assegurar o conforto, a segurança e a familiaridade dos visitantes em relação a um determinado destino; assim, estabelecem-se nos equipamentos turísticos (meios de hospedagem, res- 116 PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 10(1). 2012 Espetáculos e performances culturais no turismo: ... ISSN 1695-7121 lam o intercâmbio cultural entre brincantes, espectado-res e turistas, contribuem para a conformação do bumba-meu- boi como acontecimento programado e assistido pelos poderes públicos, ao mesmo tempo em que se confi guram como territorialidades abertas às constantes infl uências, sejam elas de ordem interna ou externa, as quais promo-vem fl uxos de relações sociais e comerciais e circulação de bens simbólicos. Estes contribuem decisivamente para a reposição de uma memória e identidade em constante processo de transformação. Observou-se que mesmo nas apresentações ofi ciais, ocorrem interatividades e trocas interculturais entre os brincantes e os turistas, ou seja, entre os performers e pla-téia, resultando assim, numa experiência de mobilização em torno de uma encenação ou representação da cultura local. Reinventada no tempo-espaço presente, as apresen-tações culturais são vivenciadas pelos seus praticantes como uma experiência simbólica e estética, manifestação autêntica da cultura local. Ao mesmo tempo, as perfor-mances turísticas são entendidas como suporte para a va-lorização das memórias da cultura local, suas simbologias e crenças. As modifi cações estimuladas pela sua recente vinculação no mercado turístico e nos eventos e espetá-culos culturais são internalizadas e ressignifi cadas pelos moradores, incorporando-as à sua experiência cotidiana. Em todas essas situações, os laços de pertença ao universo ritualístico das manifestações populares tradicionais são reforçados. Assim, o turismo insere-se num amplo processo de re-generação das culturas e das identidades locais, enquan-to estratégia de inserção econômica e de diferenciação no mercado, dando origem a novos contornos e matizes. As-sim, “não fi ca clara que uma encenação destinada ao turis-ta, aparentemente inautêntica, seja tão diferente daquilo que acontece de qualquer maneira em todas as culturas” (Urry, 1996:25). Para além da aculturação, compreende-se atualmente que as culturas postas em contato incor-poram determinados elementos, promovendo constantes reinterpretações e ressignifi cações culturais, sendo os grupos locais agentes criativos da mudança e da inovação. Considerações fi nais Diante da intensifi cação dos processos culturais, do descentramento identitário e da comercialização de sig-nos, imagens e representações no mercado de consumo, as práticas sociais são revisitadas e re elaboram seus signifi - cados, estabelecendo novas formas de expressão da iden-tidade que convivem dialeticamente com produções cul-turais emergentes destinadas ao usufruto dos visitantes. No âmbito do bumba-meu-boi constataram-se ele-mentos performáticos que sinalizam um processo de re-criação cultural para atender às novas demandas de ócio e lazer que caracterizam as sociedades contemporâneas. Enquanto bem simbólico reconfi gurado como elemento de atratividade turística na cidade de São Luís, revela-se como tradução cultural interiorizada pelos brincantes, por taurantes, centros de lazer e entretenimento) determina-dos estereótipos e arranjos situacionais que propiciam a satisfação das expectativas internalizadas pelos turistas em relação à região visitada. Em se tratando do evento Vale Festejar, observa-se que determinados elementos da cultura encenada estão dispostos à fruição dos visitantes, garantindo a hospita-lidade na relação comercial e enaltecendo a experiência turística: “Na condição de espectador, o turista acabaria pro per-correr lugares facilmente reconhecíveis, devidamente preparados e encenados [...] A busca pelas experiên-cias autênticas leva a que o turista possa acreditar que o que está experimentando seja de fato autêntico, uma vez que os bastidores preparados para sua visitação são apreciados como sendo “originais” (Araújo, 2001: 59)”. Os gestos dos brincantes, a disposição dos objetos no ambiente climatizado, a sonoridade e os efeitos de luz pro-duzem uma ambiência e uma atmosfera convidativas para a elaboração de uma performance particular, “a decoração e os acessórios de lugar onde uma representação particu-lar é comumente feita, bem como os atores e o espetáculo geralmente ali encontrados, contribuem para fi xar uma espécie de encantamento sobre ele” (Goffmann, 1995:117). Os bastidores da encenação turística, por sua vez, cedem espaço para momentos de confraternização e in-tegração entre os atores do bumba-meu-boi, de eferves-cência popular e espontânea nos terreiros, ruas, avenidas e demais espaços sociais, com o alargamento do olhar nor-mativo - imanente às festas institucionalizadas e ofi ciais, e a confl uência de outros valores e regras de convívio, com a subversão da ordem socialmente estabelecida por um breve período de tempo. Ressalta-se que essas regiões não se excluem, ao con-trário, dialogam entre si, podendo existir pontos de in-terstícios entre ambos, nos quais se permite ao ator ou coadjuvante transitar por essas dimensões no sentido de reforçar ou redimensionar a encenação, atendendo, assim aos objetivos da representação cotidiana. A representação do bumba-meu-boi e os seus bastidores conformam essa manifestação como produto turístico que apresenta um elevado nível de atratividade, signifi cando uma experiên-cia autêntica, tanto por parte dos brincantes, quanto por parte dos consumidores: “Dessa forma, seria possível não apenas relativizar a oposição entre os dois pólos, front e back region, como também apontar para a questão de que o turismo pro-duz realidades situadas ao longo de um largo espectro que vai de um pólo a outro. Nesse modelo de inter-pretação, a compreensão dos espaços turísticos se dará nesse lugar em que se está operando essa idéia de au-tenticidade encenada” (Araújo, 200:59). Os lugares institucionais ou ofi ciais onde se desenro- PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 10(1). 2012 Karoliny Diniz Carvalho y Wladimir da Silva Blós ISSN 1695-7121 117 Margarita (orgs). Turismo e identidade local: uma visão antropológica. São Paulo: Papirus. Ascanio, Alfredo. 2009 “Turismo La reestructuraccíon cultural.” In: Pasos: Revista de Turismo y Patrimônio Cultural. Volume 01, número 01, 2003. Disponível em: http: < www.pa-sosonline. org> Acessado em 10 de março de 2009. Brandão, Carlos Rodrigues. 1982 O que é folclore. São Paulo: Brasiliense, 1982. Buner, Edward. 1996 “Tourism in the Balinese Borderzone” In: Sweden-burg L.; S.; T. (Orgs.). Displacement, Diaspora, and Geographies of Identity. Duke University Press, Dur-ham: 157-179 Buner, Edward 2004 “Culture on Tour: Ethnographies of Travel”. Chicago University Press Canclini, Néstor Garcia. 2000 Culturas Híbridas. Estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Edusp. 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Nas apresentações ofi ciais do Vale Festejar confron-tam- se a dimensão simbólica que a manifestação possui para os seus agentes culturais e a necessidade de atendi-mento das expectativas da demanda turística. As novas representações vinculadas ao bumba-meu-boi relacionam-se aos processos de hibridação das produções culturais na contemporaneidade. As experiências sagrada e profana dessa manifestação são redimensionadas ou recriadas em performances turísticas que intersectam momentos coti-dianos e extra-cotidianos, ordinários e extraordinários, produzindo e reproduzindo novas identifi cações numa re-leitura da sua identidade. Inserido numa perspectiva analítica propiciada pelos estudos da performance da restauração do comporta-mento, evidencia-se um processo de enriquecimento da manifestação. As transformações contínuas na forma de apresentação do auto do bumba-meu-boi acompanham a dinâmica social da manifestação por meio de sua capaci-dade de ressignifi cação. Nelas ocorrem constantes meca-nismos de articulação, seleção e apropriação de elementos culturais decorrentes do maior contato entre os diferentes grupos sociais. Ou seja, reposição e intensifi cação identi-tária imbrincam-se no jogo das identidades. O bumba-meu-boi apresenta um caráter fl exível fren-te às infl uências da atividade turística e de outros agentes externos, mantendo-se como a combinatória de elemen-tos decorrentes de um processo de dominação/resistência e transformação/permanência de seus conteúdos. Nesse sentido, a análise proposta evidenciou as diferentes for-mas de ressignifi cação identitária realizadas pelos brin-cantes tendo por objetivo afi rmar o seu patrimônio cul-tural, fato que confere legitimidade e autenticidade à performance revisitada para o turismo. Ao apresentarem o bumba-meu-boi num determinado texto ou contexto, os brincantes comunicam entre si e pe-rante o público espectador, elementos de uma identidade plural e em constante transformação. Ressalta-se que es-sas formas de vivenciar a identidade não se contradizem, sendo partes integrantes do processo de restauração cul-tural vivenciado pelas sociedades contemporâneas. Bibliografi a Aaraújo, Silvana Miceli de. 2001 “Artifício e Autenticidade: o turismo como experiên-cia antropológica”. In: Banducci Jr., Álvaro; Barretto, 118 PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural, 10(1). 2012 Espetáculos e performances culturais no turismo: ... ISSN 1695-7121 ranhense de Folclore, nº 18, São Luís, dez. Marqués, Ester. 2000 Tradição e Modernidade no Bumba-meu-boi. São Luís Rosa, Maria Cristina(org) 2002 Festa, lazer e cultura. São Paulo: Papirus. Sánchez, Antonio Garcia; García, Francisco Javier Albu-querque. 2003 “El turismo cultural y de sol y playa:¿Sustitutivos o complementarios?” In: Universidad Politécnica De Cartagena. Cuardernos de Turismo: 97-105. 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