1909
A IDÉIA DE BRASIL NA LITERATURA BRASILEIRA
Dulce Maria Viana Mindlin
Há mais de um século, Ernest Renan formulava uma questão das mais básicas em
famosa conferência que pronunciou, na Sorbonne, em 1882, com o título de “O que é uma
nação?”, logo a seguir publicada no boletim semanal da Association Scientifique de
France.
Acompanhando o movimento do texto de Renan, observa-se que ele parte de uma série
de hipóteses –as dinastias, a raça, a língua, a religião, a comunhão de interesses, a
continuidade geográfica– as quais sistematicamente desconstrói, uma a uma, com os
argumentos mais coerentes, para, a seguir, chegar aos fundamentos da formulação de seu
conceito: “Uma nação é um princípio espiritual” (Renan 38); “A nação é uma alma”
(Renan 39).
A riqueza do pensamento de Renan é tal que ainda hoje nos fornece elementos para uma
reflexão sobre o Brasil, mormente em tempos de um necessário e urgente balanço nestes
500 anos de história. Continuemos com o pensador, uma vez que necessitamos justificar o
recorte que escolhemos para fazer dialogar “a idéia de Brasil” com uma conceituação cujo
denominador comum é mais que evidente:
A nação, como o indivíduo, é o resultado de um longo passado de esforços, de
sacrifícios e de devoções. O culto dos ancestrais é, entre todos, o mais legítimo; Os
ancestrais fizeram de nós o que somos. Um passado heróico, grandes homens,
glória (...), eis o capital social sobre o qual assenta-se a idéia nacional. (Renan 39)
Retomemos um ponto: o culto dos ancestrais. Quem melhor do que os primitivos
habitantes da terra que hoje se chama Brasil, quem melhor, repito, representa esse cultuar,
tanto que, identificado como traço cultural, foi tão combatido pelos catequistas? O culto
aos mortos de tal maneira particularizava a essência religiosa dos índios que necessitou de
uma intervenção verdadeiramente enérgica por parte dos jesuítas, como denuncia Helène
Clastres:
Montoya, porém, por consagrar sua vida inteira à conversão dos guaranis,
descobrira entre eles fato revelador de uma tradição religiosa original: o culto
voltado aos ossos dos grandes xamãs. A certa distância de uma redução recém-fundada
e onde a catequese enfrentava grandes dificuldades, Montoya descobriu,
isolados em plena floresta, espécies de templos em que eram conservados, dentro
de redes enfeitadas com penas, esqueletos engalanados. Cestas suspensas nas
paredes do templo continham alimentos como oferenda. O padre procedeu
imediatamente a um inquérito, averiguando então que os esqueletos pertenciam a
xamãs recém-falecidos, que os índios veneravam em segredo e que os xamãs
vinham a esse lugar para comunicar-se com seus espíritos e revelar suas predições.
(...) É claro que os padres trataram logo de pôr termo a essas práticas diabólicas,
XIV Coloquio de Historia Canario Americana
1910
não sem violência. Todos os cadáveres foram queimados em público, a despeito da
hostilidade e da inquietação manifestas dos índios. (Clastres 19-20)
Como se vê, os catequistas se apressaram em demonizar esse traço antropologicamente
localizado, a fim de melhor poder plantar a semente que traziam, isto é, a fé católica. Nesse
sentido, é verdadeiramente exemplar a obra do jesuíta José de Anchieta que, ao escrever
autos catequéticos, tratou de maneira explícita de estabelecer uma perfeita analogia entre
os índios e os demônios, e talvez até tenha ido além da analogia, uma vez que construiu
uma evidente identificação entre esses dois elementos – não é por acaso que os diabos de
suas peças são chamados por nomes indígenas, como Guaixará, Aimbirê, Tataurana,
Jaguaruçu etc. Vejamos, a respeito, a opinião de Alfredo Bosi:
Como o regime do encontro foi, desde o início, a dominação, as cerimônias
indígenas de relação com os mortos foram vistas, pela ótica dos viajantes e
missionários, como sintomas de barbárie e, mais comumente, caíram sob a suspeita
de demonização. (...)
Sob o olhar do colonizador os gestos e ritmos dos tupis que dançam e
cantam já não significam movimentos próprios de fiéis cumprindo sua ação coletiva
e sacral (...) mas aparecem como resultado de poderes violentos de espíritos maus
que rondam e tentam os membros da tribo. (Bosi 73)
Num tal contexto, não é difícil concluir que o choque de culturas tenha sido mesmo
inevitável. E neste, os índios, como parte mais fraca, evidentemente levaram a pior. É
ainda Alfredo Bosi quem sintetiza quase pateticamente:
Infelizmente para os povos nativos, a religião dos descobridores vinha municiada
de cavalos e soldados, arcabuzes e canhões. O recontro não se travou apenas entre
duas teodicéias, mas entre duas tecnologias portadoras de instrumentos
tragicamente desiguais. O resultado foi o massacre puro e simples, ou a degradação
com que o vencedor pôde selar os cultos do vencido. (Bosi 72)
Como se vê, Bosi insiste em mencionar “os cultos do vencido”. Talvez porque esta seja
a marca mais fundamental de qualquer coletividade que se tenha como nação – e talvez por
isso, também, tenham sido esses cultos negados, tidos como inexistentes, desde o primeiro
documento de 1500, a famosa Carta de Pêro Vaz de Caminha:
Parece-me gente de tal inocência que se os homem (sic) entendesse e eles a nós,
que, seriam logo cristãos, porque eles não têm nem entendem em nenhuma crença,
segundo parece. (Caminha 72)
E segundo o que a mim e a todos pareceu, esta gente não lhes falece outra
cousa para ser toda cristã que entenderem-nos, porque assim tomavam aquilo que
nos viam fazer, como nós mesmos, por onde pareceu a todos que nenhuma idolatria
nem adoração têm. (Caminha 80)
Não é por acaso essa insistência em negar aos índios uma religião, uma ritualística, um
conjunto de crenças. Fosse o contrário, como justificar a colonização e a catequese? Seja
como for, o índio, como “infiel” ou como “gentio”, é alvo perfeito para que leigos e
religiosos sobre ele se debrucem, seja para a exploração pura e simples via escravização
A idéa de Brasil na literatura brasileira
1911
para o trabalho na lavoura, seja para reduzi-lo em aldeias e missões e otimizar assim a
contabilidade do número de convertidos nos relatórios enviados à Metrópole.
Negar os cultos é, portanto, negar a essência do princípio de existência de uma nação,
cujas origens, sabemos, “perdem-se nos mitos do tempo e apenas na memória seus
horizontes se realizam plenamente” (Bhabha 48). Negar a memória é negar a nação. Negar
ou impedir o culto aos ancestrais é uma forma de destruir nos fundamentos aquilo que é a
essência do sentimento nacional: “uma grande solidariedade”, como diz ainda Renan, algo
que pressupõe um passado, um conjunto de recordações, nas quais “os lutos valem mais
que os triunfos” – daí os ancestrais ocuparem um lugar de tanto relevo quando se trata de
afirmar a nação.
Mas os primitivos habitantes das terras brasis eram povos ágrafos – e, nesse caso, como
teríamos, hoje, a possibilidade de conhecer essas particularidades de sua cultura? Se
“narrar a nação” impõe-se como instância necessária para garantir sua continuidade,
mesmo que sobre a inevitável ambivalência que todo discurso porta, quem melhor que os
poetas1 para construir em linguagem a manutenção da mitologia e da ritualística, bem
como para denunciar a violência que a colonização impôs aos povos ameríndios?
Concordamos com Homi Bhabha quando diz que “é a partir das tradições do pensamento
político e da linguagem literária que a nação surge” (Bhabha 48). Portanto, nada mais
pertinente que examinarmos nessa linguagem como tal instância se atualiza.
A literatura brasileira é pródiga em exemplos. Seria impossível neste espaço mencionar
todos, de modo que observarei um corpus limitado a três momentos, talvez os mais
sintomáticos no tocante à idéia de construção nacional: o Romantismo, o Modernismo e a
contemporaneidade. Vejamos por partes:
No Romantismo, há que se reconhecer que, mesmo em sua vertente indianista, a
literatura apresenta nuances bastante significativas, denunciadoras de diferentes visões de
mundo. José de Alencar, sem dúvida o nome mais lembrado, constrói suas personagens na
ampliação do paradigma de Pêro Vaz de Caminha, enfatizando a doçura, a beleza, a
coragem, a nobreza, enfim, as qualidades que um e outro queriam ver e mencionar para
concretizar uma idéia de índio dócil, maleável e submisso, mesmo que inteligente. Ao
textos a seguir são auto-explicativos:
Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema.
Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a
asa da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira.
O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha rescendia no
bosque como seu hálito perfumado.
Mais rápida que a ema selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas
do Ipu, onde campeava sua guerreira tribo, da grande nação tabajara. (Alencar [1]
53)
XIV Coloquio de Historia Canario Americana
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Quando a cavalgata chegou à margem da clareira, aí se passava uma cena curiosa.
Em pé, no meio do espaço que formava a grande abóbada de árvores, encostado a
um velho tronco decepado pelo raio, via-se um índio na flor da idade.
Uma simples túnica de algodão (...) caía-lhe dos ombros até o meio da perna, e
desenhava o talhe delgado e esbelto como um junco selvagem.
Sobre a alvura diáfana do algodão, a sua pele, cor de cobre, brilhava com reflexos
dourados; os cabelos pretos cortados rentes, a tez lisa, (...) a boca forte mas bem
modelada guarnecida de dentes alvos davam ao rosto oval a beleza inculta da graça,
da força e da inteligência. (...)
Era de alta estatura; tinha as mãos delicadas; a perna ágil e nervosa (...) apoiava-se
sobre um pé pequeno, mas firme no andar e veloz na corrida. (Alencar [2] 49)
Desnecessário dizer, mas de qualquer forma oportuno, que tanto Iracema quanto Peri, o
índio descrito no último fragmento, ainda que fortemente inscritos em sua cultura, não
deixam de submeter-se ao homem branco, cada qual por sua vez: Iracema, ao apaixonar-se
por Martim, sofre todas as sanções de sua tribo e por fim morre, após dar à luz um filho
que o branco carrega para a Europa. Peri, ao apaixonar-se por Cecília, acaba também por
abdicar de sua identidade, aceitando até tornar-se cristão, confirmando assim as previsões
de Caminha. É claro que o Romantismo de Alencar o fazia erigir esses modelos
idealizados, o que não o isenta da responsabilidade de ter forjado uma imagem deturpada
do índio brasileiro, imagem essa que só no Modernismo seria revista.
Mas felizmente nem só de Alencar viveu a vertente indianista do Romantismo
brasileiro. Marca de diferença existe, mais ou menos sutil, tanto na obra de Gonçalves Dias
como na de seu conterrâneo Sousândrade. O primeiro, por se permitir um mergulho mais
fundo na cultura dos índios, fornecendo uma visão mais perto do real estatuto daquelas
coletividades. “I-Juca Pirama”, por exemplo, mostra uma face indígena bem diversa
daquela pintada por Alencar:
No meio das tabas de amenos verdores,
Cercadas de troncos – cobertos de flores,
Alteiam-se os tetos d’altiva nação;
São muitos seus filhos, nos ânimos fortes,
Temíveis na guerra, que em densas coortes
Assombram das matas a imensa extensão.
São rudos, severos, sedentos de glória,
Já prélios incitam, já cantam vitória,
Já meigos atendem à voz do cantor:
São todos Timbiras, guerreiros valentes!
Seu nome lá voa na boca das gentes,
Condão de prodígios, de glória e terror!
(Dias 27)
“Rudos”, briguentos, por um lado: “meigos” por outro. De qualquer forma, gloriosos e
aterrorizantes. O índio submisso de Caminha e de Alencar fica bem distante dessa nova
A idéa de Brasil na literatura brasileira
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construção, que não deixa de estar atenta para o que representou para a cultura nativa a
chegada do homem branco. Gonçalves Dias dá voz ao índio quando alerta, pelos lábios do
Piaga, sobre os danos que daí adviriam:
Não sabeis o que o monstro procura?
Não sabeis a que vem, o que quer?
Vem matar vossos bravos guerreiros,
Vem roubar-vos a filha, a mulher!
Vem trazer-vos crueza, impiedade –
Dons cruéis do cruel Anhangá;
Vem quebrar-vos a maça valente,
Profanar manitôs, maracás.
(...)
Vossos Deuses, ó Piaga, conjura,
Susta as iras do fero Anhangá.
Manitôs já fugiram da Taba,
Ó desgraça! ó ruína! ó Tupá!
(Dias 48-49)
No mesmo diapasão Joaquim de Sousa Andrade elaborou seu índio, desta feita
ampliando os horizontes e situando-o além das fronteiras do Brasil. O “Guesa” é sua
personagem no longo poema narrativo em que a mesma dinâmica da conquista com
violência se faz ver sem rodeios:
Jejuava Atahualpa, silencioso,
De sua vasta corte redeiado,
Marmóreo, calmo, andino, glorioso!
(...)
Do ibereo chefe2 e o imperador indeano
Amigas saudações, ricos presentes
Foram trocados.
(...)
Luzem os pavilhões d’iris de Quito:
D’entre o excército e o sol no firmamento
Vem solene Atahualpa, os olhos fitos,
Qual setas, no hespanhol acampamento.
(...)
Dupla amostra, de paz e de grandeza,
Quer ele honrar o encontro que aliança
Firma co’o branco, que há para defesa
Raios, trovões, corcéis, espada e lança.
(...)
E o projeto infernal resolve interno.
O Inca vem pernoitar em Kaxamarka
Entre amigos, na Casa-da-serpente
(Fascinação eterna!) – ai do monarca!
(...)
Religioso eis o vigário
XIV Coloquio de Historia Canario Americana
1914
Vem caminhando. Atroz encara o Andino
Fala em Christo e apresenta o breviário. ...
(...)
Ó Felipilho! Atraiçoar aquele
Coração índio, quando à liberdade
Quer dos céus abraçar quanto os revele!
Ser o Demônio em nome da Trindade!
(...)
O Sol, de todo, desaparecera.
Atahualpa, dos céus desamparado,
Tremeu vendo-se ao seio da cratera
Qual um que assombra e está petrificado!
(...)
Ai quem ‘stá sub a força dos cobardes!
Ou panico, ou dos crimes a consciência
Do quanto de bestial e de maldades
Praticam, de loucura e de indecência
(...)
Na traça ou no terror jogam a sorte
Do Inca infeliz. Baptizam-no. Em seguro
Choram-no e dão... “suavíssimo” garrote.
(Sousândrade 293-297)
É verdade que Sousândrade, ainda hoje, é um poeta pouco lido, lamentavelmente. Sua
visão de mundo, sem dúvida, ultrapassava seu tempo, como sua poesia ultrapassava seu
espaço. Importante é assinalar sua voz como uma das poucas, no século XIX, em termos de
denúncia, ao lado do outro maranhense já mencionado, Gonçalves Dias. O que não deixa
dúvida é a representação do desmantelamento das culturas nativas do lado de cá do
Atlântico em nome da fé católica, da “civilização” ocidental ou de qualquer outra instância
que avalizasse a brutalidade cometida.
Na esteira de Gonçalves Dias e de Sousândrade, e revendo para contestar o paradigma
alencarino é que o Modernismo retoma o índio como referência literária. E não apenas
como personagem, como veremos, mas como elemento da construção nacional. Não é por
acaso que no mesmo ano, 1928, surgem o “Manifesto Antropófago”, de Oswald de
Andrade, e Macunaíma, de Mário de Andrade. Neste, a inversão mais parodística do índio
romântico-mitificado, cheio das boas qualidades já elencadas:
No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto
retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão
grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia tapanhumas pariu uma
criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma.
(Andrade [1] 8)
Há de se convir que Macunaíma foge por completo ao modelo consagrado. Além de
“preto retinto”, portador portanto de todo o estigma que recaiu sobre a raça africana devido
à escravidão, era declaradamente feio, mentiroso, inconfiável e, principalmente,
preguiçoso. Como inversão paródica, uma perfeição. Como personagem literária, um
paradigmático anti-herói cuja presença é obrigatória quando se trata da construção da
nacionalidade brasileira, porquanto é mencionado como “o herói sem nenhum caráter”.
A idéa de Brasil na literatura brasileira
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Esse detalhe é esclarecido pelo próprio Mário de Andrade, no Prefácio que escreveu para
essa obra:
O que me interessou por Macunaíma foi incontestavelmente as preocupação
em que vivo de trabalhar e descobrir o mais que possa a entidade nacional dos
brasileiros. (...) O brasileiro não tem caráter porque não possui nem civilização
própria nem consciência tradicional. Os franceses têm caráter e assim (...) os
mexicanos. Seja porque possuem civilização própria, perigo iminente ou
consciência de séculos tenha auxiliado o certo é que esses uns têm caráter.
(Andrade [1]218-219)[grifos meus]
Vê-se, portanto, que a questão da memória, da ancestralidade, é ainda a pedra-de-toque
que move a escrita de Mário de Andrade, nem que seja pela negação das mesmas no modo
de ser do brasileiro. Mas não nos esqueçamos que Macunaíma foi forjado para chamar a
atenção justamente por essas anti-qualidades. O outro Andrade, Oswald, iria mais longe, ao
afirmar no Manifesto Antropófago:
Contra todas as catequeses. (...)
Nunca fomos catequizados. (...)
Contra a verdade dos povos missionários. (...) É a mentira muitas vezes repetida.
(Andrade [2] 13-19)
Se de um lado Oswald de Andrade rechaça o índio romântico, de outro reforça ainda a
idéia de ancestralidade, pedra angular da possibilidade de nação, quando diz
(...) nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. (...)
Uma consciência participante, uma rítmica religiosa.
É preciso partir de um profundo ateísmo para chegar à idéia de Deus. Mas o caraíba
não precisava. Porque tinha Guaraci.
Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade.
(Andrade [2] 13-19).
É fato, portanto, que o Modernismo operou uma revolução quando se trata de verificar a
construção da nacionalidade, no que revitalizou o “passado imemorial” pela atualização
dos “grandes sistemas culturais” sistematicamente minimizados quando não
peremptoriamente negados pelos europeus desde que aqui chegaram. Mas é igualmente
fato que, por trabalhar em inversão paródica, não avançou muito, porquanto de certa forma
limitou-se a ver o outro lado da mesma moeda. O grande passo viria nos anos 60-70, com a
publicação de Quarup (1967) e Maíra (1976). E por uma razão muito simples: ambas as
obras retomam em grande estilo a questão da ancestralidade ligada ao culto aos mortos e às
cerimonias fúnebres. Quarup, já no título tem a sua definição: é um ritual que celebra a
memória dos mortos. Maíra, por sua vez, já se inicia com as cerimônias fúnebres pela
morte de Anacã, o chefe dos mairuns.
É bem provável que essas duas obras sejam as mais significativas no processo de
revitalização do lugar que o elemento indígena representa na cultura e na formação da
identidade do Brasil. Não é por acaso que a partir dos anos 70 houve uma presença muito
XIV Coloquio de Historia Canario Americana
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mais evidente dos temas ligados ao problema da aculturação e da desculturação dos povos
ameríndios, sempre relacionado com a violência, a brutalidade, a covardia. E agora, por
vezes, dando voz ao nativo, ventrilocamente, pelas palavras de Affonso Romano de
Sant’Anna, ou solidariamente, como pelas de Gilberto Mendonça Teles:
Mas embora fosse ainda escuro, os deuses como homens se ajuntaram numa
assembléia
Junto às pirâmides de Teotohuacan
(...)
como num canto deste continente se ajuntam desde sempre
os Mbya-Guarani
resistindo a quatro séculos de ofensa
sobrevivendo aos alheios Xamãs
e conservando na memória o Grande Falar.
Amanhece sobre as árvores da taba.
Uma voz de índio ecoa entre a neblina da floresta.
Nos quartéis, uma vez mais, os espanhóis despertam
tocam seus clarins e seus cavalos
e vão extrair do sangue guarani
o ouro que decora igrejas e mulheres.
Índio, eu olho o brilho das espadas e estandartes
o tropel empoeirado e colorido da morte
-- cada vez mais perto
e aguardo o inimigo com uma canção nos lábios
-- e meu peito aberto.
(Sant’Anna 197-108) [grifos meus]
No meio das tabas há menos verdores,
Não há gentes brabas nem campos de flores.
No meio das tabas cercadas de insetos,
pensando nas babas dos analfabetos,
Vou chamando as tribos dos sertões gerais,
Passando recibos nos vãos de Goiás
Trago o sol das férias e algumas leituras,
E trago as misérias dessas criaturas,
Para pôr num brinde os sinais que são
A força dos índios escutando o chão.
(...)
No meio das tabas não quero ver dores,
Mas morubixabas e altivos senhores.
Quero a rebeldia das tribos na aldeia.
Nada de “poesia”. Quero cara feia:
Cor de jenipapo e urucum no peito,
Não índio de trapo falando sem jeito.
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1917
(...)
Escutar estórias, as dicções agudas;
Saber as memórias, as coisas miúdas
Ditas nos gerais como quem dedilha
As cordas vocais de uma redondilha.
(Teles 57-58) [grifos meus]
É de se observar, em textos como esses, que a memória ocupa um lugar de grande
destaque, pois que é ela a depositária da essência da identidade, ou seja, daquilo que faz de
um povo uma nação. Os índios bem o sabiam, e não apenas por serem ágrafos, mas porque
confiavam na sabedoria dos ancestrais para construir sua mítica e sua ritualística: reunir-se
em assembléia para escutar “o Grande Falar” ou, de qualquer forma, “escutar estórias” e
“saber as memórias”.
Nos últimos vinte anos também a música brasileira tem-se mostrado sensível a essa
problemática. São muitos os compositores que se preocupam em dar vez e voz ao índio,
infelizmente ainda como ventrílocos, embora não se negue o avanço que isso representa
em face do silêncio anterior. A meu ver, Renato Russo conseguiu de maneira bastante feliz
representar, numa letra, tudo o que significou para o nativo brasileiro a chegada dos
portugueses, a conversão forçada, a exploração, a violação dos direitos – e o resultado de
todo o processo:
Quem me dera, ao menos uma vez,
Ter de volta todo o ouro que entreguei
A quem conseguiu me convencer
Que era prova de amizade
Se alguém levasse embora até o que eu não tinha.
(...)
Quem me dera, ao menos uma vez,
que o mais simples fosse visto como o mais importante,
mas nos deram espelhos
e vimos um mundo doente.
Quem me dera, ao menos uma vez,
Entender como um só Deus ao mesmo tempo é três,
(...)
Quem me dera, ao menos uma vez,
Como a mais bela tribo, dos mais belos índios,
Não ser atacado por ser inocente.
(...)
Nos deram espelhos e vimos um mundo doente –
Tentei chorar e não consegui.
(Russo 1986)
Em definitivo, o mundo do índio, hoje, é esse “mundo doente”, no qual ele já não
consegue nem chorar. Com tanta coisa para ensinar, com tanta sabedoria para repassar, a
voz que fala suas dores é apenas a do solidário, não a sua, embora não reste dúvida de que
o discurso poético brasileiro tem-se preocupado em “falar o índio”. Infelizmente para
perceber que as profecias mais sinistras (cf. “O canto do Piaga”, já mencionado) acabaram
por se confirmar: hoje, a taba “cercada de insetos” é um ícone dos mais eloqüentes das
XIV Coloquio de Historia Canario Americana
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“misérias dessas criaturas” que guardam teimosamente o seu “grande falar” mesmo depois
de “[cinco] séculos de ofensa”.
Para quê?, perguntaríamos, embora de antemão soubéssemos intuitivamente a resposta:
-- Para preservar a identidade, para resistir ao domínio, para conservar a cultura, para
continuar a memória, para acreditar na possibilidade, remota que seja, de se constituir
como nação – “de peito aberto”, como diz Affonso Romano de Sant’Anna, encontrando
eco na voz de Marina Lima e Antonio Cícero, que retomam, em “Fullgás”, aquela grande
solidariedade preconizada por Renan: “Você me abre os braços/ E a gente faz um país”
(Lima, Cícero 96).
A idéa de Brasil na literatura brasileira
1919
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NOTAS
1 uso a palavra em sentido amplo, i. e., de criador.
2 Sousândrade refere-se a Pizarro.