XXIII Coloquio de Historia Canario-Americana
ISSN 2386-6837, Las Palmas de Gran Canaria. España, (2020), XXIII-104, pp. 1-8
EL VIAJE A TENERIFE DE LAS HERMANAS PHELPS
A TRIP TO TENERIFE BY MARY AND BELLA PHELPS
A VIAGEM A TENERIFE DAS MENINAS PHELPS
Claudia Faria
Cómo citar este artículo/Citation: Faria, C. (2020). El viaje a Tenerife de las hermanas Phelps. XXIII Coloquio de Historia Canario-Americana (2018), XXIII-104.
http://coloquioscanariasamerica.casadecolon.com/index.php/CHCA/article/view/10500
Resumen: Mary Phelps (1822-1893), hija de Joseph Phelps (1791-1879) y de Elisabeth Dickinson Phelps (1796-1876), inicia, al final del cuarto volumen de su diario manuscito, el relato del viaje que hizo a la isla de Tenerife en compañía de su hermana mayor, Bella Phelps (1820-1893), el cual se prolonga en los volúmenes 5 y 6, dedicados por completo a dicha visita de la isla del archipiélago canario.
Las hermanas zarparon del puerto de Funchal el 17 de septiembre de 1840 a bordo del paquebote Lapwing, y avistaron su destino al día siguiente. Allí fueron recibidas por el cónsul inglés, Mr. Bartlett, y por Mrs. Hamilton, en cuya residencia quedarían hospedadas. A lo laego de estas páginas, Mary describe su día a día, nombrando a las personas y relatando los acontecimientos más impresionantes y destacando aquí y allá las costumbres canarias. Este manuscrito presenta no solo una visión de una joven inglesa sobre el Tenerife ochocentista, sino que también establece una comparación entre sus vivencias en las dos islas atlánticas que consideramos singular y muy oportuna para la profundización del estudio de las islas atlánticas.
Palabras clave: Ingleses, viaje, Madeira, Tenerife, siglo XIX
Abstract: On the fourth volume of her diary, Mary Phelps (1822-1893) tells about a trip to Tenerife she made in the company of her sister, Bella (1820-1893) in September 1840.
Mary, daughter of the merchant Joseph Phelps was born in Funchal and lived with her family in this Portuguese town almost her entire life, travelling frequently to London to visit her family and friends. This trip to Tenerife stands out as it a unique moment in the life of the daughters of Joseph and Elisabeth Phelps but also because it allows a comparison between the two islands – Madeira and Tenerife in the 19th century.
Keywords: British, trip, Madeira, Tenerife, 19th century.
Resumo: Mary Phelps (1822-1893), filha de Joseph Phelps (1791-1879) and Elisabeth Dickinson Phelps (1796-1876), inicia, no fim do 4º volume do seu diário, o relato da viagem que fez à ilha de Tenerife na companhia de sua irmã mais velha, Bella Phelps (1820-1893). As irmãs deixaram o porto do Funchal no dia 17 de Setembro de 1840, a bordo do paquete Lapwing, e avistaram o seu destino no dia seguinte. Ali, foram recebidas pelo cônsul inglês, Mr Bartlett, e por Mrs Hamilton, na residência da qual ficariam hospedadas. Ao longo destas páginas, Mary descreve o seu dia-a-dia, nomeando as pessoas e os acontecimentos mais marcantes e destacando aqui e acolá os costumes canarianos. Este manuscrito apresenta não apenas a visão de uma jovem inglesa sobre Tenerife oitocentista como também estabelece uma comparação entre a vivência das duas ilhas atlânticas que consideramos singular e muito pertinente para o aprofundamento do estudo das Ilhas Atlânticas.
Palavras chave: Ingleses, viagem, Madeira, Tenerife, século XIX.
Centro de Estudos de História do Atlântico. Rua das Mercês nº 8. 9000-224 Funchal, Madeira Portugal. Telefone: 291 211 970, correo electrónico: Claudiafaria.ceha@gmail.com
© 2019 Cabildo de Gran Canaria. Este es un artículo de acceso abierto distribuido bajo los términos de la licencia Creative Commons Reconocimiento-NoComercial-SinObraDerivada 4.0 Internacional.
CLAUDIA FARIA
2
XXIII Coloquio de Historia Canario-Americana
ISSN 2386-6837, Las Palmas de Gran Canaria. España, (2020), XXIII-104, pp. 1-8
As ligações entre a Madeira e as Canárias são antigas. Quando os portugueses decidiram ocupar a Ilha do Porto Santo em 1418, encontraram vestígios de carnagem, atribuídos aos canarianos que atravessavam o Atlântico. Mais tarde, e por conta da navegação marítima, as ligações aconteciam, com regularidade. Todavia e com o passar dos anos, e a falta de visão portuguesa em dotar o Funchal de um porto competitivo contribuiu para um gradual afastamento entre as duas ilhas, sendo comumente aceite que as relações entre a Madeira e as Canárias se esfumaram.
No entanto, ter descoberto, num arquivo familiar com o qual tenho trabalhado desde 2005, um relato de uma viagem a Tenerife em pleno século XIX, ajuda não só a rever a posição anterior de que as ligações, excetuando comerciais, seriam inexistentes como antevê a possibilidade de existirem, por aí, fechados em gavetas e sótãos escondidos, mais manuscritos sobre contactos de caráter privado, do lado de cá e do lado de lá. A ser verdade, fica aqui o desafio. Estou convencida que o caminho será profícuo.
Mary Phelps (1822-1893), filha do comerciante Joseph Phelps (1791-1879) e Elisabeth Dickinson (1796-1876), nasceu e cresceu no Funchal e a sua família fazia parte da comunidade britânica que, desde o final do século XVIII, se fixou na Ilha da Madeira.
Os primeiros membros da família., William Phelps (1749-1831) e Elisabeth Peyton (1757-1829)1,chegaram ao porto do Funchal, vindos de Dursley2, condado de Gloucestershire, no ano de 1784. Instalaram-se no Carmo (rua ainda existente na cidade do Funchal, assim como a casa) e ali edificaram residência e escritório. A primeira referência à casa comercial da família surge em 1786, dois anos após a chegada de William e apesar das subsequentes alterações de designação, ficou conhecida como Phelps Page & Co, fazendo pois, parte dos estudos de Noel Cossart3 [acerca das firmas estabelecidas no Funchal, e que abarca os anos de 1772 a 1880] e de Grabham Blandy4, [entre os anos de 1803 e 1811].
Seguindo a tradição britânica, os filhos de William Phelps e Elizabeth Peyton, depois de concluído o estudo das primeiras letras, seguiram para Inglaterra onde, em colégios internos, completaram a sua formação. Joseph Phelps foi enviado para Winchester e terá sido numa dessas estadas que conheceu Elisabeth Dickinson5,que, em 1819, se tornou sua mulher. Os recém-casados6rumaram ainda nesse mesmo ano à ilha da Madeira, onde Joseph iria liderar a firma herdada de seu pai. Constituíram uma enorme família de 11 filhos7e Elisabeth tomou a seu cargo a exigente função de cuidar das crianças e da casa, e não só, já que, e através da leitura do diário de Mary, tem sido possível constatar o caráter empreendedor de Mrs Phelps,
1 O casal William e Elisabeth contraiu matrimónio a 6 de dezembro de 1783, na Igreja de St. Giles, Cripple-gate, Londres, tendo partido de Gravesand no dia 18 de janeiro do ano seguinte, com destino à Ilha da Madeira.
2 Cidade situada no distrito de Stroud, condado de Gloucestershire.
3 COSSART (1984).
4 BLANDY (Sd).
5 Elisabeth era filha do Capitão Thomas Dickinson e de Francis de Brissac. O casal Dickinson teve uma família numerosa de nove filhos, sendo de destacar o primogénito, John, que fundou em 1804 a fábrica de papel John Dickinson & Co. Ltd.
6 Elisabeth e Joseph casaram no dia 17 de agosto de 1819, segundo o registo de Margaret Peyton, cedido pela família.
7 Elisabeth nasceu em 1820, Mary em 1822, Anne em 1824, Frances em 1826 e Harriet em 1828. No ano seguinte, nasceu o primeiro varão da família, Joseph, e em 1831 nasceu Clara. Dois anos depois nasceu Charles, seguido de William, em 1836, Arthur, em 1837, e Jane Frederica, em 1842. As duas primeiras e a última filha do casal Phelps permaneceram solteiras. Anne tornou-se Mrs. Bayman, por casamento, em 1857, com Robert Bay-man, Frances casou em 1858 com o seu primo John Evans, tornando-se assim madrasta do famoso arqueólogo Sir Arthur Evans. Harriet casou em 1854 com o reverendo John Lake Crompton e foi residir para a África do Sul. Clara tornou-se Mrs. Oakley, por casamento ocorrido em 1860 com o reverendo John Oakley, e Charles casou em primeiras núpcias com Agnes Neale no ano de 1869, tendo voltado a contrair matrimónio em 1908 com Katherine Wilkinson. William e Arthur seguiram a carreira militar. O primeiro casou com Catherine Anne Glasse e o segundo com Caroline Anne Peyton, em 1868. EL VIAJE A TENERIFE DE LAS HERMANAS PHELPS
3
XXIII Coloquio de Historia Canario-Americana
ISSN 2386-6837, Las Palmas de Gran Canaria. España, (2020), XXIII-104, pp. 1-8
que se dedicou a muitas causas sociais e culturais, com particular destaque para a a Escola Lancasteriana, instituição dedicada ao ensino das primeiras letras que esteve sob a sua liderança durante 40 anos.
O manuscrito de Mary, composto por 14 volumes, e abrangendo uma baliza temporal que se situa entre junho de 1839 e outubro de 1843, permite caracterizar não apenas o quotidiano familiar, mas também é uma importante fonte de pesquisa no que diz respeito à comunidade britânica instalada na Madeira na época de Oitocentos, sendo igualmente importante entendê-lo como narrativa íntima, como reservatório de segredos de uma adolescente de origem britânica a residir numa ilha meio perdida no meio do Atlântico e distante da cosmopolita capital inglesa.
Sem referir os motivos que a levam a tomar a decisão de registar as suas impressões sobre o dia-a-dia, os seus gostos, as suas opiniões e, essencialmente os seus inner thoughts e sem adotar a conhecida expressão “meu querido diário”, Mary inicia, no final do 4º volume, o relato de uma viagem de 4 meses a Tenerife, descrição que ocupa os dois volumes seguintes.
Os acontecimentos, que antecederam o embarque, no dia 17 de setembro de 1840, embora triviais, ocupam algumas linhas deste relato, seguida da descrição da cabine onde se instalará com a sua irmã, Elisabeth (1820- 1863). Além de registar a perda de nitidez da paisagem, à medida que a embarcação se afasta da baía funchalense e de invejar o “flirt” de Bella com o “very kind captain”, lamentando profundamente não a poder acompanhar, dado o seu estado de “mareada”, Mary confessa que “our parting was not very affecting – not a tear shed on either side, we certainly are a very unsentimental family8”, concentrando-se em seguida na descrição do navio, dos passageiros e nas comodidades disponíveis para os 3 dias de viagem.
À chegada, Mary compara a ilha da Madeira com a ilha de Tenerife, dizendo que “it looks very barren and not so pretty as Madeira but much larger9”. Um pouco mais adiante acrescen-ta que «3 windmills look so British but the rest so foreign10».
Sem detalhes acerca dos contactos prévios, é por Mary que se sabe que foram recebidas pelo Cônsul, Mr Barlett, a “stupid looking old man with white hair11”, e ainda por Mr Hamilton, na casa do qual iriam ficar instaladas por uns dias, e que as recebeu “very kindly”. O beijo de Mrs Hamilton e o quarto mais confortável da residência que lhes foi oferecido foi motivo de grande satisfação.
Uma vez instaladas e já depois de algum descanso, o serão foi passado em longa conversa, na qual as manas Phelps foram dando conta das novidades sobre o Funchal. Com o passar dos dias, Elisabeth e Mary foram convivendo com os amigos dos Hamilton e alguns familiares.
A constante presença de uma “housekeeper” obriga Mary a desabafar que “it is nice to live with rich people specially after our poverty12”, dando evidentes sinais de que, na sua casa, as condições eram diferentes, situação que atribuímos à instabilidade política em Portugal e ao esfriar das relações entre a Grã-Bretanha e Portugal na sequência do não cumprimento da abolição da escravatura por parte das autoridades lusas13.
Ao descrever os seus anfitriões, Mary, no seu estilo acutilante, admite que Mrs Hamilton “is pretty, sweet but not wise” e que o marido “ is very gentlemanly and suits her in cleverness”, acrescentando ainda que “they are neither intellectual or deep”, facto que, no seu
8 MARY PHELPS. Diary, volume IV.
9 MARY PHELPS. Diary, volume IV.
10 MARY PHELPS. Diary, volume IV.
11 MARY PHELPS. Diary, volume IV.
12 MARY PHELPS. Diary, volume IV. 13 De notar que a 15 de maio de 1840 o governo britânico liberal de Melbourne, por meio de Palmerston, ministro dos negócios estrangeiros, pressiona Portugal ameaçando com a ocupação de Goa e Macau e, mesmo, da Madeira, invocando o cumprimento do tratado sobre a abolição do tráfico de escravos, e o pagamento de despesas com forças militares britânicas. CLAUDIA FARIA
4
XXIII Coloquio de Historia Canario-Americana
ISSN 2386-6837, Las Palmas de Gran Canaria. España, (2020), XXIII-104, pp. 1-8
entender, conduz à felicidade, sobretudo nos casos em que a superioridade se encontra do lado feminino, como é o caso.
Os dias junto da família Hamilton foram dedicados à leitura e aos lavores domésticos, destacando-se os passeios, essencialmente pela Plaza. Mary destaca a vista magnífica sobre a baía, a montanha e os jardins e considera a vila limpa, bem pavimentada, apesar de not pretty. Dos vários sítios visitados, La Concordia, L’ Iglesia de la Conception, descrita como limpa, arejada, com algumas pinturas engraçadas, but whitewashed inside mereceram a atenção de Miss Phelps assim como o pequeno jardim de Alameidos. As subidas aos pequenos hills, os cursos de água e vista sublime, não só foram elogiados, como registadas no papel de desenho.
Os domingos, passados em total recolhimento, cada um no seu quarto, lendo, rezando, ou apenas descansando, foram alvo de crítica, assim como o luto de 5 dias imposto na sequência da morte de um comerciante e que privou as manas de irem às compras. Porém, e uma vez as lojas reabertas, a desilusão manteve-se pois além dos artigos serem de fraca qualidade, o atendimento era inqualificável, pelo que, procurando compensá-las, Mr Hamilton levou-as a um estabelecimento comercial denominado Martens, onde puderam comprar flores, fitas e luvas. Apesar de tudo, Mary mantem a sua critíca quanto ao atendimento, dizendo que “the people seem to be perfectly indifferent whether they sell or not14”.
Vivendo com os Hamilton, Bella e Mary conviveram com a família do cônsul, cuja segunda mulher era espanhola. A filha mais velha de Mr Barlett, Anita, foi descrita como “spanish in appearence and manners”, acrescentado que gosta de bailes e festas, mas que também lê D. Quixote e Gilblas, facto que a impressionou e que revela uma vez mais os seus preconceitos em relação aos nativos de Canárias. Não disfarçando o incómodo que estes convívios lhe causavam sobretudo devido à presença do bebé do cônsul, “the most distressing little object in a dirty red shirt and yellow cape”15, Mary admite que aprendeu imenso sobre Tenerife e sobretudo sobre a língua espanhola, considerada por Mr. Barlet como “the first modern language”, indicando que, afinal, tirava algum proveito desta socialização.
A vida social dos Hamilton, apesar de não ser intensa, era por vezes animada durante o chá. Mary travou conhecimento com Mr Bruce,“a vulgar, awkward, odd stupid young man”, e se, ao primeiro impacto afirma que “I don’t like him”, passados alguns dias, acaba por admitir que tem mantido um flirt com ele, não o dispensando nos seus passeios pela praça. Importa ter em linha de conta, que estamos perante uma adolescente, que como tal, evidencia oscilações bruscas de comportamentos, ideias e sentimentos, razão pela qual não nos devemos surpreender quando, alguns dias mais tarde, acrescenta que “he is not so bad after all”. Outra das personagens merecedora de registo foi Don Sisto, filho de um conde de Oratava, considerado bonito, opinião que ela não partilha, acrescentando, no que se refere à sua condição social, que “ he is not more reputable than poor Jacinto except the Don before his name16”. A chegada de um navio proveniente da Madeira no dia 23 de setembro causou alguma comoção junto das irmãs Phelps, pois não receberam a ansiada correspondência. Perante tamanha desilusão, Mary procede a um exame de consciência, revelando a sua incapacidade para sentir seja alegria seja tristeza, admitindo que “My feelings are neither lively, passionate or deep17”. Acrescenta igualmente, e no mesmo tom, que “I am just the kind of person that is laughed at books and despised in mankind”, razão pela qual acha estranho que alguém seja capaz de sentir qualquer tipo de afeição por ela. Esta “falta” de sentimento generalizado na família poderá explicar que Bella tenha celebrado o seu aniversário, no dia 25 de outubro, longe da família, sem ter recebido qualquer prenda e nem sequer um jantar mais elaborado.
14 MARY PHELPS. Diary, volume IV.
15 MARY PHELPS. Diary. volume V.
16 MARY PHELPS. Diary. volume V.
17 MARY PHELPS. Diary. volume V. EL VIAJE A TENERIFE DE LAS HERMANAS PHELPS
5
XXIII Coloquio de Historia Canario-Americana
ISSN 2386-6837, Las Palmas de Gran Canaria. España, (2020), XXIII-104, pp. 1-8
Bella adoece no início do mês de outubro e Mary não hesita em culpar o calor e o tipo de alimentação, evidenciando que a alteração de hábitos tinha consequências, por vezes, dramáticas. Os dias que se seguiram foram passados de forma mais calma e em casa, tendo Mary aproveitado para passear pelo jardim da residência, para escrever cartas e para ler, admitindo que “was happy to be left alone all day18”.
Esta monotonia foi interrompida com a chegada de Mr Smith, “the most charming, kind and condescending without patronizing person19”, que veio buscar as filhas do comerciante Phelps, levando Mary a confessar que agora iria viver “with rational and sensible people20”, sendo visível a sua vontade de deixar os Hamilton, justificando-se que “it is unsatisfactory to find that at the end of 3 weeks our mutual knowledge and liking remain exactly the same as the 1st day21”.
Após uma viagem vespertina ora a cavalo ora de rede, atravessando La Laguna, La Motanga, descrita como a miserable place e ainda Vitória, que contrasta fortemente com a cultivated and magnificent Oratava.), as raparigas foram recebidas calorosamente pela esposa de Mr Smith, que apesar de ser considerada invalid, “talks, laughs and eats like normal people22.” Fica aqui patente que Tenerife, tal como a Madeira, haviam adquirido o estatuto de health resort, sendo este um dos motivos do elevado número de britânicos fixados em ambas as ilhas.
Durante a estada junto de Mr Smith, Mary dedicou grande parte do seu tempo ao piano, praticando diariamente uma média de 4 a 5 horas. Aproveitou o restante tempo livre para ler tudo o que lhe era recomendado pelo anfitrião. As irmãs aproveitaram igualmente para conhecer os arredores de La Paz, a residência de Mr Smith, mas igualmente algumas paragens mais longínguas. Bella e Mary visitaram por várias vezes o Jardim Botânico e um dos destinos mais habituais era o porto e o passeio marítimo. Exploraram ainda a praia das Callaeds, anotando as ondas gigantes e uma gruta, escura e cheia de lama e ainda a Cueva de los Siete Palácios, residência do último rei dos guanches.
No que se refere a excursões, Mary destaca as idas a Canadas, Caldadeira, Aqua Mansa. Nesta última, as irmãs levantaram-se às 5h da madrugada e, através de um caminho descrito como assustador, chegaram à residência da Marquesa de La Candia por volta das 11h. A casa, suja e desconfortável, foi o local de refreshment, tendo o grupo depois subido até La Madre de la Acqua, local que Mary compara com a freguesia do Monte, no Funchal. É recorrente a comparação entre o Funchal e/ou a Madeira, numa busca por um topos paisagístico e social que se tornando mais familiar, seja capaz de amainar a estranheza deste local [ainda] desconhecido.
Um outro passeio digno de registo ocorreu no dia 22 de outubro, tendo as filhas de Joseph se levantado às 4h da madrugada com o objectivo de subir ao Peak. Devido ao frio, Bella e Mary cobriram-se com cobertores e tomaram o pequeno-almoço a meio caminho, ao nascer do sol. A subida íngreme e perigosa foi motivo de preocupação, mas o objetivo foi alcançado e as irmãs regressaram a casa satisfeitas e deslumbradas com a paisagem.
Do ponto de vista social, Mary realça o momento em que foram recebidas pelo Governador Don Rafael Camps, destacando o jantar composto de sopa, pêssegos, carne, peru, tarte de maça e fruta variada. No entanto, e no seu estilo habitual, a jovem termina a descrição dizendo que, como sempre, os convidados “adopted the English and unspanish custom of devouring all23” um comentário pouco abonatório e revelador do seu background.
18 MARY PHELPS. Diary, volume IV.
19 MARY PHELPS. Diary, volume IV.
20 MARY PHELPS. Diary, volume IV.
21 MARY PHELPS. Diary, volume IV.
22 MARY PHELPS. Diary, volume IV.
23 MARY PHELPS. Diary, volume IV. CLAUDIA FARIA
6
XXIII Coloquio de Historia Canario-Americana
ISSN 2386-6837, Las Palmas de Gran Canaria. España, (2020), XXIII-104, pp. 1-8
Significativo é o facto de que se por um lado, a chuva e o mau tempo motivaram o cancelamento de algumas excursões, por outro lado, o detestável hábito dos canarianos “to sit and do nothing” contribuíram largamente para que as irmãs não tivessem conhecido melhor Tenerife. Além do mais, a saúde débil de Mrs Smith tornava os convívios e os passeios mais longos impossíveis, vendo-se Bella forçada a tomar conta da anfitriã, enquanto Mr Smith se ocupava das crianças.
Mary refere que “the education of their bodies, mind and disposition is uncommon24”, e não só registou que o casal fazia questão em não deixar os filhos muito tempo com os criados como presenciou o hábito de tomar banho diariamente num tanque ao ar livre. Admitindo a sua surpresa perante este modo de educar as crianças, Mary ocupou muito do seu tempo a assistir às aulas que Mr Smith dava aos seus filhos, Charles James and Derwet, numa tentativa de learn the art of teaching, já que Mr Smith entendia que “children should be taught nothing nor be allowed even to learn anything that they cannot entirely understand25”. Sem hesitar, Mary compara as regras e a educação mantida em sua casa onde “poor children, like us, who were compelled to learn without understanding and to live without liberty26”, revelando ainda que, segundo o seu anfitrião, uma rapariga da idade de Mary deveria estudar cerca de 3 horas por dia e andar durante cerca de 2h, equilibrando assim o intelecto e o físico.
Certa de que “[oh, that] my mother could or would govern her children in the same way27” Mary não consegue esconder o desconforto pela inovação das metodologias e estratégias de Mr Smith, confessando, quase entre-linhas que “I do hope they will not corrupt us28”.
Tendo em conta que o quotidiano, a rotina, os pequenos nadas são marcas identitárias do género confessional, o manuscrito de Mary acaba por nos revelar esses dias que passam, uns iguais aos outros, numa narrativa memorialista que obedece a duas formalidades: a fragmentação e a repetição. Assumindo com um registo sistemático de acontecimentos e (inter)vivências, o diário tem de ser visto como uma narração intercalada, uma enunciação intermitente constituída por experiências do dia a dia29.
O sexto e último volume do diário de Mary dedicado à viagem a Tenerife difere dos restantes, na medida em que Mary identifica o local onde está a ser feito o registo: Oratava, Tenerife. Focando-se integralmente na estada junto da família Smith, as entradas do diário de Mary espelham as crises mais severas, em que Mrs Smith era curada com doses de opio, com Bella à sua cabeceira, dia e noite.
As oscilações de humor patentes nestas linhas estão intimamente ligadas á adolescência mas também ao seu forte caráter. Porém, não deixa de ser importante que o estado de saúde de Mrs Smith condicionava as aulas de piano além de alterarem a rotina familiar. A título de exemplo, sabe-se que, durante estas crises, o pequeno-almoço era servido mais tarde, o que, no caso de Mary, lhe causava dores de cabeça e mal-estar durante o resto do dia.
A tranquilidade destes dias em terras espanholas foi interrompida no dia 30 de novembro com a chegada de correspondência e, em particular, uma carta da progenitora informando da sua gravidez, ao que Mary reage de forma intempestiva: “worst shot of all! There is coming an 11th Phelps!30”. Se por um lado confessa o receio de regressar à Madeira antevendo o choro insistente do bebé e o trabalho extra que esta criança implicará, por outro lado, e
24 MARY PHELPS. Diary, volume IV.
25 MARY PHELPS. Diary, volume IV.
26 MARY PHELPS. Diary, volume IV.
27 MARY PHELPS. Diary, volume VI.
28 MARY PHELPS. Diary, volume V.
29 Reis e Lopes (1994).
30 MARY PHELPS. Diary, volume VI. EL VIAJE A TENERIFE DE LAS HERMANAS PHELPS
7
XXIII Coloquio de Historia Canario-Americana
ISSN 2386-6837, Las Palmas de Gran Canaria. España, (2020), XXIII-104, pp. 1-8
demonstrando grande preocupação pela mãe admite que “poor lady, she is more to be pitied than we31”.
Gradualmente e com a aproximação do dia do regresso à Madeira, o tom do diário de Mary torna-se mais pesado, mais escuro. Uma carta informando que Mr Hewson estava a caminho de Tenerife para as acompanhar de volta ao Funchal, seguida da chegada do Vernon, fazem aumentar a tristeza e a ansiedade. Admitindo que não tem qualquer vontade de regressar a casa, Mary confessa que:
it will be so miserable after having our own way so long and being treated like reasonable beings, to be scolded and contradicted continuously and told that we are very wicked and depraved – at least that we are lazy, idle and good - for- naught32.
Todavia, e manifestando alguma réstia de esperança, atendendo à condição da mãe, acaba por revelar alguma compaixão acrescentando que “after all she is a good mother and would certainly make us happy – only it must be in her own way33”.
Bella e Mary começam a fazer as malas no dia 23 de dezembro, mas são interrompidas por visitas inoportunas, situação demasiado frequente, no entender de Mary, cujo humor dava sinais de forte inconstância, e que terá justificado não ter aceitado o convite do jovem Charles Freeman para ao baile a ter lugar no porto, no dia 25, sob o argumento que “doesn’t fell much in the humour for balls34”, dando conta do mal-estar inerente aos preparativos da viagem e ao regresso à rotina. A verdade é que o mau tempo, uma verdadeira bênção nas suas palavras, não só acabou por adiar o baile como impediu mais visitas inoportunas. No entanto, e já nas linhas seguintes, Mary ter lamentado ter passado o dia “in such a heathenish manner35”.
Este “dark mood” parece ter perdurado alguns dias, pelo menos no que a Mary diz respeito, plasmado na entrada que abre o dia de Natal, chuvoso e triste, igual aos outros: “no spirits except for plum pudding36”.
No dia seguinte, as irmãs levantaram-se às 6h da manhã tendo chegado à residência dos Hamilton à 1h da tarde, onde se encontraram com Mr Hewson. Subiram a bordo do navio por volta das 4h e “soon after found ourselves sailing away home again37”.
Termina assim, de forma breve e seca o relato da estada das meninas Phelps em Tenerife, uma narrativa vincadamente etnográfica onde Mary acaba por analisar uma cultura [diferente da sua] num processo muito semelhante ao crítico literário que perante um texto procura “sorting out the structures of signification38”. Esta viagem a Tenerife, uma verdadeira eruption tal como postulada por Farbe, assume-se como uma experiencia multidimensional com uma forte componente contemplativa mas que simultaneamente coloca dificuldades acrescidas enquanto descoberta [empírica] do OUTRO.
Se tal como defende Niels Bohr “we are part of that nature that we seek to understand”, também eu, tal como Mary, procuro alcançar um entendimento no seio de fragmentos e descontinuidades, isto é, procuro “ouvir a musica” tal como nos sussurra Alguinagalde e sem nunca esquecer que “every reality is there for a feeling:it promotes feeling and it is felt39”.
31 MARY PHELPS. Diary, volume VI.
32 MARY PHELPS. Diary, volume VI.
33 MARY PHELPS. Diary, volume VI.
34 MARY PHELPS. Diary, volume VI.
35 MARY PHELPS. Diary, volume VI.
36 MARY PHELPS. Diary, volume VI.
37 MARY PHELPS. Diary, volume VI.
38 GEERTZ (1993).
39 WHITEHEAD (1929). CLAUDIA FARIA
8
XXIII Coloquio de Historia Canario-Americana
ISSN 2386-6837, Las Palmas de Gran Canaria. España, (2020), XXIII-104, pp. 1-8
Ao cruzar as águas do Atlântico em direção a Tenerife, Mary aproveitou para reflectir não apenas sobre si mas sobre a sua família, tendo tido oportunidade de estabelecer comparações em relação ao sistema educativo implementado por Mr Smith mas também no que concerne ao entourage social de cá e de lá. Nesse sentido, a viagem das meninas Phelps a Tenerife, se por uma lado poderá ser entendida como produto da “domestic subject of empire40” atinge, porém, um estatuto e a simbologia de um ritual de iniciação na medida em que contribui, de forma determinante, para o fortalecimento e amadurecimento da autora, pois Mary, ao se confrontar com outra realidade, é obrigada a fazer (re)ajustamentos e a (re)ver posições nem sempre conciliadores e/ou espectáveis.
Para mim, enquanto investigadora social, muito mais do que analisar este “couer symbolique41” sob o espetro do colonialismo/imperialismo e por isso um discurso incrustado de opiniões/ conceitos/ atitudes etnocêntricas e coadjuvantes de uma “master narrative”, inevitavelmente Europeia/Ocidental, o desafio que se coloca é, e tal como sugere Ann Laura Stoler, procurar para lá da “semantic availability” e trazer para a discussão os “minor keys” da História. As memórias de Mary Phelps, uma adolescente de origem britânica que viveu grande parte da sua vida no Funchal oitocentista, vem-nos relembrar que estes “mil nadas” sobre a vida dos dias simples [enquanto dispositivos de resistência], legitimados como “fonte e acontecimento” não só desafiam o historiador como possibilitam a sua reinvenção, abrindo “a dialogic space wherein the writer of the document and the researcher meet, interact and negotiate meaning42”. Este diário que apresento aqui é um exemplo. Haverá, certamente, mais “journals of personal memorada” de acordo com a tipologia de Fothergill, algures por ai, esperando ser resgatados e, não posso deixar de concordar com Cairns Craig que ao defender que “we need histories of specific families43” nos convida a emergir no “challeging world of the history of sensibility44” ou melhor dizendo, a acompanhar “o homem lapidário de si mesmo45”.
BIBLIOGRAFÍA
CRAIG, C. (1996). Out of History. Edinburgh: Polygon.
DOURADO, E.P. (1962). «O velho Rebouças». En Diário de Noticias.
FESCHET, V. (1996). La correspondance rurale au XIXe siècle, Analyse d’un corpus de lettres adressées à une famille de propriétaires-cultivateurs en Provence alpine. France.
FOTHERGILL, R. (1974). Private Chronicles: A study of English Diaries. England.
GEERTZ, C. (1993). The interpretation of cultures, Selected Essays. New York: Basic Books, Inc, Publishers
WHITEHEAD, A.N. (1929). Process and Reality: Essay on Cosmology. University of Edin-burgh.
PHELPS, Mary, (1839-40) Diary, Volume VI, V, VI, Lambeth Archives and the Minet Li-brary, London (Unpublished Manuscript).
PRATT, M.L. (1992). Imperial Eyes, Travel and Transculturation. United Kingdom: Routledge.
40 PRATT (2009).
41 V. FESCHET (1996).
42 TOMBOUKOU (2010).
43 CRAIG (1996).
44 FOTHERGILL (1974).
45 DOURADO (1962).