XXII Coloquio de Historia Canario-Americana
ISSN 2386-6837, Las Palmas de Gran Canaria. España, (2017), XXII-032, pp. 1-9
AS CONDIÇÕES MATERIAIS DA FÉ CATÓLICA: IGREJA E POVOADOS NOS SERTÕES DE ANGOLA E PERNAMBUCO, SÉCS. XVIII E XIX
CONDICIONES MATERIALES DE LA FE CATÓLICA: IGLESIA Y POBLADOS EN INTERIOR DE ANGOLA Y PERNAMBUCO, SIGLOS XVIII Y XIX
THE MATERIAL CONDITIONS OF THE CATHOLIC FAITH: CHURCH AND SETTLEMENT IN THE BACKCOUNTRY OF ANGOLA AND PERNAMBUCO, CENTURIES XVIII AND XIX
Welber Carlos Andrade * y Alexandre Bittencourt Leite Marques**
Cómo citar este artículo/Citation: Andrade, W. C. y Bittencourt Leite Marques, A. (2017). Condiciones materiales de la Fe Católica: iglesia y poblados en interior de Angola y Pernanbuco, siglos XVIII y XIX. XXII Coloquio de Historia Canario-Americana (2016), XXII-032. http://coloquioscanariasmerica.casadecolon.com/index.php/aea/article/view/9978
Resumo: Nosso objetivo é estudar as condições materiais do catolicismo nos sertões das colônias portuguesas da América e África, mais especificamente da Capitania de Pernambuco e Angola, nos séculos XVIII e XIX. Nesse sentido, torna-se importante analisar os principais instrumentos do Estado e Igreja para cristianização no interior, que passava pela ideia da conquista espiritual e civilização dos povos, bem como os mecanismos para o povoamento do território e os bens materiais para manutenção do catolicismo entre as populações no interior dos dois continentes. Com isso, buscamos aprofundar perspectivas acerca do cotidiano colonial, que envolvem aspectos sociais, econômicos e culturais entre as populações da Europa, América e África, inseridas no sertão. Utilizamos como fontes históricas os relatos de viajantes que percorreram as regiões e a documentação oficial (cartas, ofícios, alvarás, regimentos de governadores, consultas etc.) do Conselho Ultramarino relacionados à Junta das Missões, ordens religiosas, clero secular, irmandades e câmaras, bem como as representações destes agentes em sua comunicação com as instituições centrais de poder, o que nos permitirá lançar luz sobre múltiplos anseios.
Palavras chave: Igreja, condições materiais, Pernambuco, Angola
Resumen: Nuestro objetivo es estudiar las condiciones materiales del catolicismo en interior de las colonias portuguesas de América y África, en específico en la capitania de Pernambuco y Angola, en los siglos XVIII y XIX. Así, es importante analizar los principales instrumentos del Estado y Igresia de cristianizacion en el interior, con idea de conquista espitirual y civilizacion de los pueblos, además estudiar los mecanismos para poblar y los productos materiales para el mantenimiento del catolicismo en el interior de los continentes de América y África. Así buscamos profundizar perspectivas sobre la vida cotidiana colonial, incluyendo a los aspectos sociales, económicos y culturales en el contacto de los pueblos de Europa, América y África. Empleamos como fuentes históricas los informes de viajeros y la documentación oficial (cartas, ofícios, alvarás, regimentos de governadores, consultas etc.) del Conselho Ultramarino relacionados con la Junta de Misiones, órdenes religiosas, clero secular, hermandades y concejos, así como las representaciones de estos agentes en su comunicación con las instituciones centrales del poder, que permite arrojar luz sobre múltiples deseos.
* Mestre em História Social da Cultura Regional, Universidade Federal Rural de Pernambuco, Brasil. Doutorando em História pela Universidade de Évora (UÉ), Portugal. Orientando da Professora Doutora Maria de Deus Beites Manso. Bolsista da CAPES - Brasil. Pesquisador do Grupo de Estudos em História Sociocultural da América Latina/Universidade de Pernambuco. Correo electrónico: kako_andrade10@hotmail.com
** Mestre em História Social da Cultura Regional, Universidade Federal Rural de Pernambuco, Brasil. Dou-torando em História pela Universidade de Évora (UÉ), Portugal. Orientando da Professora Doutora Maria de Deus Beites Manso. Bolsista da CAPES - Brasil. Professor da Secretaria de Educação do Estado de Pernambuco (Seduc-PE). Pesquisador do “Sistema de Consulta Prosopográfica: perfil social, trajetória e documentação de Pernambuco Colonial (1640-1822) - CNPq/UPE. Correo electrónico: alexandre.bittencourt@hotmail.com
WELBER CARLOS ANDRADE Y ALEXANDRE BITTENCOURT LEITE MARQUES
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ISSN 2386-6837, Las Palmas de Gran Canaria. España, (2017), XXII-032, pp. 1-9
Palabras clave: Iglesia.Condiciones Materiales. Pernambuco. Angola
Abstract: Our goal is to study the material conditions of Catholicism in the hinterlands of the Portuguese colo-nies of America and Africa, more specifically Pernambuco and Angola, in the eighteenth and nineteenth centu-ries. In this sense, it is important to analyze the main instruments of the State and Church to Christianization in the inland, showing the idea of spiritual conquest and civilization of peoples, as well as the mechanisms for the settlement of the territory and material goods to Catholicism's maintenance among populations within the two continents. Thus, we seek to deepen perspectives on the colonial daily life, involving social, economic and cul-tural aspects of the people of Europe, America and Africa inserted in the backcountry. Therefore, historical sources were used, as the reports of travelers who visited the regions and the official documentation (letters, legal papers, permits, governors regiments, consultations etc.), of the Overseas Council related to the Board of Missions, religious orders, secular clergy, brotherhoods and chambers, as well as the representations of these agents in their communication with the central institutions of power, which will enable us to understanding on multiple yearnings.
Keywords: Church, material conditions, Pernambuco, Angola
A conquista do interior das possessões portuguesas da África e América foi realizada a partir de diversos interesses: a Coroa pretendia expandir suas fronteiras, os particulares estavam interessados na criação de novas possibilidades de aquisição de terras, títulos e comércio. Já a Igreja se interessava na expansão da fé católica nessas regiões. Além disso, existia também toda uma leva de pessoas que se arriscavam por entre os distantes e perigosos sertões no intuito de tentar a sorte1.
No presente trabalho, nos centraremos nas condições materiais da Igreja nos sertões de Pernambuco e Angola, entre os séculos XVIII e XIX2. Estas se estabeleceram a partir do processo de expansão das diversas missões que adentraram o interior dos continentes africano e americano, desde os primeiros séculos da expansão portuguesa.
Tidos pelos colonizadores portugueses como lugares afastados do litoral, ausentes de uma presença colonizadora efetiva e dos padrões culturais europeus, os sertões (o interior, terra adentro) eram considerados lugares de difícil acesso e possuidores dos mais diversos tipos de perigos, onde viviam variados grupos indígenas praticantes do chamado paganismo, tanto na África quanto na América3.
Para os europeus, que se consideravam civilizados e superiores, os povos autóctones da África e América não passavam de bárbaros e selvagens. Alguns dos costumes dos africanos e americanos, incluindo suas religiões e crenças, serviram de motivos para se promover o avanço da fé cristã.
Segundo a historiadora Maria de Deus Beites Manso, as diversas missões e ordens religiosas (franciscanos, beneditinos, jesuítas, capuchinhos, oratorianos e carmelitas), além do clero secular, nas paróquias, trabalharam desde os séculos XVI e XVII com o objetivo de cristianizar e, portanto, de ocidentalizar esses povos indígenas4.
A expansão para o interior do continente, isto é, para os sertões, se deu de forma gradativa. Os religiosos e demais colonizadores passaram a adentrar os sertões dos dois continentes. Ao
1 A respeito do processo de expansão para os sertões de Pernambuco, Ver PUNTONI (1998), PIRES (2002), LOPES (2003), MEDEIROS (2007), SILVA (2010), MARQUES (2012). Já em relação a Angola, ver BIRMINGHAM (1965), SANTOS (1978), VENÂNCIO (1996), HEINTZE (2007). Especificamente em relação as missões ocorridas na África, entre os séculos XV e XVII, ver BRÁSIO (2011).
2 A respeito do conceito de cultura material, Jean-Marie Pesez o atribui ao conjunto de objetos que carac-terizam uma sociedade. PESEZ (2005).
3 Sobre o conceito de sertão, ver MORAES (2003), TELES (2009), SILVA (2010), NEVES (2012).
4 MANSO (2016), p. 156. CONDICIONES MATERIALES DE LA FE CATÓLICA...
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atingirem essas distantes regiões, essas pessoas fizeram uso de bens materiais no intuito de se instalar e promover as atividades de cristianização dos habitantes locais.
No caso dos sertões de Pernambuco, no Brasil, estenderam-se por uma vasta, seca e quente região, construindo benfeitorias no intuito de submeter aos indígenas os valores ocidentais. Na medida em que adentraram na vegetação da caatinga, através da abertura de testadas, caminhos e pastos, os colonizadores missionários aldearam muitos indígenas, preenchendo as missões religiosas5.
A redução dos indígenas a estes aldeamentos tinha a justificativa de servir à Igreja, à Coroa portuguesa e ao bem comum dos colonos, assim como o objetivo de serem colocados em espaços pré-determinados e transformados em mão de obra livres para produção da colônia. A ação dos religiosos católicos nessa região contribuiu para a colonização dos sertões 6.
Foi seguindo essa premissa, por exemplo, que o Rei de Portugal D. Pedro II, em 1684, ordenou ao Governador de Pernambuco D. João de Sousa de Castro que a Congregação do Oratório assumisse a administração das aldeias de Ararobá, Limoeiro, Carnijó e Palmar, nos sertões de Pernambuco7.
Nos espaços da América portuguesa, segundo a historiadora Maria de Deus Beites Manso, os aldeamentos jesuítas, por exemplo, seguiam uma estrutura que incorporava o modelo português e o indígena. Construíam igrejas que normalmente tinham um cruzeiro a sua frente, uma praça, casas ao entorno, cemitério, hospital, escola, “onde se aprendia a língua indígena”. Além disso, criava-se gado, algodão, tabaco, açúcar e fabricavam diversos tecidos e instrumentos de ferro8.
A partir da segunda metade do século XVIII, apesar da grande presença das missões religiosas espalhadas pelo Brasil, a Coroa portuguesa estabeleceu outra forma de relação sobre a política indígena e o processo de colonização dos sertões. Com o princípio de melhor preservar as fronteiras e incrementar e variar a agricultura, foi criado o Diretório dos Índios, que retirava a tutela das ordens religiosas sobre os indígenas. O controle sobre eles passaria então para as mãos de um Diretor, nomeado pelo Governador e Capitão-Geral do Estado, cujo papel seria intermediar os colonos e promover a “civilidade” dos grupos indígenas. Assim, cada povoação teria o seu próprio Diretor que desenvolveria variadas tarefas, entre elas a de tornar obrigatório o uso da língua portuguesa, proibindo o uso da língua nativa ou geral, e de incentivar os trabalhos na agricultura e comércio9.
Entretanto, apesar da retirada do controle das ordens religiosas, isso não significava que toda a estrutura material montada por esses religiosos não fosse aproveitada. Pelo contrário, alguns dos antigos aldeamentos serviram de base para a edificação das novas vilas.10 Nesse sentido, parte do aspecto material como casas, a igreja etc continuaram a existir, mesmo que reformas urbanísticas tenham vindo depois a modificar alguma coisa. Além disso, com exceção dos jesuítas que foram expulsos, outros religiosos continuaram exercendo suas atividades nessas localidades.
Por sua vez, do outro lado do Atlântico, na África, os primeiros missionários chegaram na companhia do Capitão Paulo Dias de Novais, a partir da segunda metade do século XVI. A expansão para o interior se deu na passagem do século XVI para o XVII. As missões religiosas foram alargadas para os vales do Bengo, Dande, Cuanza e, depois, Massangana,
5 Sobre as missões religiosas em Pernambuco e suas capitanias anexas ver LOPES (2003), MEDEIROS (2007), CUNHA (2013).
6 Ver LOPES (2003), MEDEIROS (2007), pp. 125-159, CUNHA (2013).
7 Alvará do rei. Arquivo Histórico Ultramarino. Projeto Resgate: documentos avulsos da Capitania de Pernambuco. Cx. 13. Doc. 1320.
8 MANSO (2016), p. 161.
9 MEDEIROS (2007), pp. 125-159.
10 Ver NEVES (2002). WELBER CARLOS ANDRADE Y ALEXANDRE BITTENCOURT LEITE MARQUES
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isto é, foram expandidas para os sertões de Angola11. No governo de Paulo Dias Novais foram doados vários sobados aos jesuítas, conforme o vigente sistema de amos. Esse sistema era constituído na distribuição de terras e sobados para instituições e indivíduos particulares12.
No século XVII, após expulsar os holandeses de Luanda, a Coroa tomou como prioridade reforçar sua presença em Angola. Para isso, a ação missionária era essencial, pois garantia uma maior aproximação com a população mbundu. Nesse contexto, capuchinhos italianos e jesuítas (duas das principais ordens estabelecidas na África centro ocidental) passaram a disputar espaço, principalmente no Congo e Angola13.
No início da segunda metade do século XVIII, houve a expulsão dos jesuítas a partir das reformas pombalinas, entretanto, essa expulsão tratava mais de um caráter pontual anti-jesuítico. A presença de outros religiosos da Igreja católica continuou ocorrendo, assim como continuaram existindo outras missões de evangelização14. Depois da saída dessa ordem, as atividades religiosas foram transferidas para o clero secular, que ficava responsável pela celebração de batismo, casamento, sepultamento entre outros.
Sendo assim, tanto na África quanto na América, a Igreja conseguiu levar a sua influência ao interior dos continentes, ou seja, aos sertões. Uma vez atingidos esses lugares, foi necessário criar condições materiais para se estabelecer nessas distantes paragens.
No século XIX, o cronista Pereira da Costa já descrevia as áreas da capitania de Pernambuco que foram ocupadas por missões religiosas entre os séculos XVII e XVIII. Baseado naquilo que chamou de “um documento oficial”, o cronista citou, inclusive, aldeias inseridas nas imensidões dos sertões que possuíam ou chegaram a possuir missionários de diferentes hábitos religiosos. Das quinze aldeias elencadas pelo cronista, podemos dizer que sete se localizavam no litoral e proximidades. Já as outras oito eram espalhadas em numerosos, distintos e distantes espaços dos sertões de Pernambuco. Todas as aldeias do litoral e entorno possuíam missionários, no entanto, as dos sertões já não se encontravam na mesma situação. Das oito, somente cinco constavam das presenças de religiosos, o que nos sugere que poderia haver certa carência de pessoas destinadas a exercer a função religiosa nessas localidades em virtude da distância e de outras dificuldades. Por outro lado, não podemos perder de vista o progressivo processo de secularização que já nos referimos anteriormente15.
Em todas essas aldeias, certamente era necessário haver um mínimo de estrutura material a fim de ser executada uma política de fixação e evangelização. Nesse sentido, edificações foram construídas para servirem de habitações e de locais para a prática do cristianismo. Aliados a isso, era necessário também promover a abertura de roçados para a agricultura de mandioca, milho, algodão e feijão, bem como a abertura de pastos e construções de currais para as criações de gado vacum, cavalar, ovelhas e cabras. A produção desses gêneros era bastante difundida pelos sertões de Pernambuco, e devem ter sido usadas também para a subsistência e pequenas trocas comerciais dos aldeamentos. Nos relatos compilados pelo cronista Pereira da Costa, havia um frei chamado Vital que, no ano de 1804, chegou a afirmar que o aldeamento dos índios Pipipães era “um núcleo de 135 habitantes, e pacificamente entregues às suas lavouras, na serra do Periquito, distante três léguas da missão, e nas imediações da Serra Negra”16. O sertão da Serra Negra localizava-se entre os Vales do Rio Moxotó e Pajeú, Pernambuco.
Pereira da Costa também descreveu que no sertão do Ararobá eram encontrados os índios tapuias “Xocurus”. “Mantendo o nome de aldeamento ou missão do Ararobá, progrediu tanto,
11 MANSO (2016), p. 182 e 183.
12 CARVALHO (2013), p. 72.
13 CARVALHO (2013), p. 123.
14 CARVALHO (2013), p. 123.
15 COSTA (1987), vol. 2. p. 82.
16 COSTA (1987), vol. 5. p. 168. CONDICIONES MATERIALES DE LA FE CATÓLICA...
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que em 1744 constava de 150 casais de índios, tinha uma boa igreja convenientemente”17. Em 1746 já formavam “um grande aldeamento, composto de 642 indivíduos, situado na Serra de Ararobá, e dirigidos por um missionário sacerdote da Congregação de S. Filipe Néri”18.
O cronista chegou, inclusive, a fazer menção a um documento produzido em 1767 que tratava dos bens patrimoniais dos padres da Congregação de São Felipe Néri. Segundo ele, a congregação possuía no sertão do Ararobá de Pernambuco: “um sítio de terras, chamado o Curral dos Bois; [...] como também o sítio do Acaí e o sítio chamado do Sapato com seus logradouros, que está despovoado há muitos anos, e o sítio dos Inhumas, que não rendem coisa alguma [...]”19.
Aos olhos do cronista, alguns dos aldeamentos dos sertões eram prósperos, grandes, com vários habitantes e igreja conveniente, como o do Ararobá, por exemplo. Porém, outros aldeamentos e propriedades de religiosos não chegaram a se desenvolver e, até mesmo, a não produzir. Foi o caso, respectivamente, do sítio Sapato e seus logradouros e do sítio Inhumas, ambos pertencentes a ordem de São Felipe Néri, como nos mostra o trecho do documento acima.
Em relação a outros bens patrimoniais das ordens religiosas, temos dos jesuítas alguns exemplos situados nas capitanias de Pernambuco e suas anexas. Em Ibiapaba e seu entorno, no Ceará, existiram três fazendas de gado vacum e cavalar, com suas fábricas, ferramentas, lavouras, gados e escravos20, pertencentes ao Colégio de Olinda - Pernambuco, que entre as instituições jesuítas atuantes em Pernambuco era a que mais concentrava propriedades agrícolas e pecuaristas21.
Nos sertões de Pernambuco, segundo o viajante cronista Henry Koster, que percorreu aqueles espaços no início do século XIX, havia uma enorme dificuldade dos moradores das áreas mais afastadas dos núcleos urbanos em ter acesso às igrejas edificadas, por conta das grandes distâncias entre fazendas e povoados e vilas. Por esse motivo, padres obteriam licenças do Bispo de Pernambuco para viajar aos locais isolados dos sertões, promovendo cultos em localidades onde o acesso a serviços religiosos era bastante difícil. Geralmente esses padres eram agraciados pelos moradores por seus serviços prestados, chegando a ganhar, quando havia homem rico que tinha orgulho de receber um sacerdote, cerca de oito a dez mil réis22.
Nesse sentido, ao nos debruçarmos nessas informações, podemos ter alguma ideia da localização de determinados aldeamentos dos sertões de Pernambuco, da sua configuração espacial, do número de habitantes, dos bens de raiz pertencentes a algumas ordenações, bem como da produtividade de algumas propriedades da Igreja.
Por sua vez, do outro lado do Atlântico, na África centro ocidental, também temos vestígios de informações a respeito da configuração espacial e material dos estabelecimentos religiosos nos sertões de Angola.
Segundo um cronista e militar que viveu em Angola na segunda metade do século XVIII, Elias Alexandre Correa, a religião “Católica Romana” era dominante entre os ditos “brancos e civilizados” dessa possessão portuguesa. O cronista afirmava que o estabelecimento e expansão da fé cristã se davam graças aos esforços da Coroa e dos missionários. Ele também era enfático a respeito da presença de outras formas de religiões existentes em Angola23.
Encarando de forma muitas vezes pejorativa, a partir de um olhar eurocêntrico, Elias Alexandre dizia que metade da população local acreditava em Jesus Cristo e a outra metade
17 COSTA (1987), vol. 6. p. 240.
18 COSTA (1987), vol. 5. p. 172.
19 COSTA (1987), vol. 6. p. 238.
20 AHU_CU_Inventário dos bens confiscados aos jesuítas em Pernambuco, cód. 1964.
21 Sobre administração dos bens dos jesuítas em Pernambuco ver DIAS y ANDRADE (2017).
22 KOSTER (2003), p. 139.
23 Ver CORREA (1937), p. 87. WELBER CARLOS ANDRADE Y ALEXANDRE BITTENCOURT LEITE MARQUES
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acreditava em uma espécie de “feiticeiro”, chamado de “Senhor do Bengo”, e outros mais que praticavam “supertições ridículas”. Também acusava muitos brancos de levarem uma vida cheia de torpeza, de tolerância e de complacência com os ritos dos autóctones, definidos por ele de “gentílico”24.
Sendo assim, a partir desses relatos, podemos perceber que, embora a igreja tentasse promover a conversão dos gentílicos, na prática, algumas vezes isso não acontecia. E mais, o cronista relatava que até muitos brancos cristãos que lá habitavam, terminavam por praticar também alguns dos “péssimos costumes” e ritos “pagãos” daqueles que eram chamados por ele de povos “bárbaros” e “selvagens”.
Apesar do relato de Elias Alexandre vir carregado da visão eurocêntrica, podemos perceber na sua descrição a existência de um processo que podemos chamar de mestiçagem cultural entre os europeus e africanos25. Em outras palavras, as descrições nos mostram que os brancos não só influenciavam os negros, como também os negros terminavam por influenciar os brancos, ou seja, havia uma troca e absorção de elementos culturais entre os dois grupos.
Para o cronista militar, a situação se intensificava mais na medida em que se afastava do litoral, em direção ao interior da África. Era comum se referir aos sertões pelo adjetivo de “incultos”. Logo na saída da cidade de Luanda, nos arrebaldes, já afirmava existir a prática de uma religião “miscelânica”, isto é, parte católica, maometana e pagã. “Fazem o sinal da cruz, trazem um rosário no pescoço, usam e celebram a poligamia, e adoram os seus ídolos, conforme a sua imaginação.” Nos arimos, um tipo de fazenda de agricultura, os proprietários faziam uso do trabalho escravo, mas não se preocupavam em batizar os ditos escravos pagãos. Já mais afastado, nos distantes sertões, “se descobre o paganismo em toda sua pureza”26.
Embora tenha tido essa visão dos sertões, é bem verdade que Elias Alexandre Correa também reconheceu que as povoações dos presídios sertanejos (espécie de fortalezas) possuíam pessoas católicas, bem como presumia que os vassalos vizinhos dessas povoações sertanejas também estivessem inclinados a esse lado espiritual27.
No entanto, para o cronista, a presença da Igreja nas povoações portuguesas do interior de Angola era deficiente. Dizia ele: “as igrejas ali se conhecem somente pela casca: o âmago está vazio. Nem mesmo há párocos que queiram sacrificar-se a pestilência do clima, e a falta de socorros necessários para restabelecer a natureza enferma”28.
A pouca presença de párocos, bem como as situações precárias de muitas igrejas pareciam ser uma constante nos sertões de Angola. Estamos a observar também que nas correspondências trocadas entre as autoridades locais, o governo de Angola e Coroa portuguesa, existam diversos relatos que descreviam a difícil situação dos religiosos e das condições materiais das igrejas dos sertões, na passagem do século XVIII para o XIX.
Na segunda metade do século XVIII, para que os religiosos instalados no interior obtivessem seus pagamentos, por exemplo, era necessário, de tempos incertos, se deslocarem dos sertões até Luanda. Lá eles recebiam as côngruas de recursos provenientes da Fazenda Real. No entanto, nem sempre foi assim: segundo o então governador de Angola D. Miguel de Mello, entre os anos de 1693 e 1758, a antiga Junta das Missões, responsável pelos religiosos que se estabeleciam nos sertões, realizava o pagamento para essas pessoas a partir de recursos provenientes da venda de escravos africanos para o Brasil. Depois de 1759, por conta das reformas pombalinas, a situação se modificou29.
24 Ver CORREA (1937), p. 87.
25 Sobre o conceito de mestiçagem, ver MANSO y LOBATO (2013).
26 CORREA (1937), p. 93.
27 CORREA (1937), p. 95.
28 CORREA (1937), p. 94.
29 AHU_Angola, cx. 101. Doc 01. CONDICIONES MATERIALES DE LA FE CATÓLICA...
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Em relação à saída dos párocos estabelecidos nos sertões, no intuito de receber as côngruas em Luanda, afirmava o governador haver dois problemas: 1) os párocos necessitavam de uma autorização do capitão-mor da localidade para se ausentar, o que fazia com que muitos ficassem dependentes da vontade do dito capitão; 2) ao partirem, “abandonavam” por muito tempo a paróquia ou a freguesia em que estavam, pois ao longo do caminho dos sertões paravam para conferir o batismo aos “negros bárbaros”. Batismos estes, segundo o governador, muitas vezes instruídos de forma não correta30.
Na virada do século XVIII para o XIX, o dito governador relatou à Alteza Real as dificuldades com que os Prelados Diocesanos passavam ao realizar suas visitas naquela possessão africana. Primeiro, havia a questão da distância das viagens: tanto por mar (quando embarcavam para esse fim, em embarcações que deixavam a desejar na qualidade) quanto por terra (depois que aportavam até chegar aos seus destinos finais, nos sertões)31. O caminho por terra era marcado por ser cansativo e dispendioso. Aqueles prelados que aportavam em Luanda, saiam de lá em direção aos presídios do interior. Já os que aportavam em Benguela se dirigiam para o longínquo presídio de Caconda, também nos sertões. Esses prelados tinham dificuldade em arranjar guias que os conduzissem pelos caminhos. Também “não havia cavalgaduras que não sejam as costas dos pretos”. Por fim, tinham despesas com carregadores para si, para a sua família e bagagens. Tudo isso, segundo o Bispo, para receber somente uma “tenue e limitada côngrua [pagamento], que não excede a hum conto de reis”32.
As paróquias e freguesias de Angola recebiam uma espécie de renda, a partir da Fazenda Real, para ajudar nas suas atividades. Eram as esmolas destinadas ao culto das imagens dos santos. No entanto, de acordo com o governador Miguel de Melo, por vezes, as esmolas eram, de forma “ordinária e vulgar”, convertidas em proveito particular de algum tesoureiro das confrarias estabelecidas em igrejas do sertão33. Em outras palavras, algumas das pessoas responsáveis por administrar esse dinheiro terminavam por desviá-lo para uso próprio.
Ao analisarmos a relação das esmolas destinadas a cada localidade, estamos a perceber que algumas localidades recebiam mais esmolas que outras. Segue alguns exemplos: para o culto de Santo Antônio e sustentação dos missionários capuchinhos italianos do hospício de Luanda se pagava anualmente a importância de 336 mil reis. Na mesma cidade, para o culto do Santíssimo Sacramento da Freguesia da Sé se pagava a importância de 132 mil reis. De igual valia para o culto da imagem de Nossa Senhora da Conceição da mesma igreja, 132 mil reis. Para as imagens das paróquias de Ambaca e Muxima se pagava 144 mil reis para cada uma delas. A realidade já não era a mesma para algumas das outras paróquias. As imagens das paróquias de Cambambe e Caconda, por exemplo, receberam somente 25 mil reis cada34. Nesse sentido, além de algumas delas receberem pouco, ainda tinham que lidar com os desvios cometidos pelos tesoureiros das confrarias.
Em outra correspondência do governador de Angola é possível perceber a localização de algumas das paróquias da colônia, inclusive as que se situavam no sertão. Existia um total de 37 freguesias espalhadas pelo território de Angola. Dessas, somente 12 possuíam párocos. As outras 25 não dispunham desses religiosos. Duas delas foram descritas até mesmo como desertas por falta de missionários: uma na jurisdição de Ambaca e outra na jurisdição de Encoge, ambas situadas nos sertões da África ocidental35.
O Governador Miguel de Melo alertava para a deterioração das igrejas dos sertões. Elas eram comumente fabricadas de taipa, isto é, madeira entrelaçada, preenchida e coberta por argila. Por
30 AHU_Angola, cx. 101. Doc 01.
31 AHU_Angola, cx. 101. Doc 03.
32 AHU_Angola, cx. 101. Doc 03.
33 AHU_Angola, cx. 101. Doc 01.
34 AHU_Angola, cx. 101. Doc 01.
35 AHU_Angola, cx. 101. Doc 03. WELBER CARLOS ANDRADE Y ALEXANDRE BITTENCOURT LEITE MARQUES
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conta da falta de párocos para que tratassem de sua conservação, terminavam por arruinar-se. Aquelas que estavam há bastante tempo vagas se encontravam em “estado deplorável”. Dizia o D. Miguel: “[...] da maior parte delas nem vestígios já aparecem e várias das que existem estão tão arruinadas, que os sacerdotes celebram o Santo Sacrifício em altares portáteis, e em Tilheiros, a que cá chamam ramadas, porque com ramos de árvores são cobertos”36.
Sendo assim, ao nos debruçarmos nas constituições físicas e materiais da presença católica nos distantes sertões de Pernambuco, na América portuguesa, e Angola, na África, foi possível perceber as estratégias do Estado e Igreja para a cristianização no interior. O processo passava pela ideia da conquista espiritual e civilização dos povos, bem como pelos mecanismos para o povoamento do território e os bens materiais para manutenção do catolicismo entre as populações no interior dos dois continentes.
Mesmo distante dos grandes núcleos urbanos do litoral dos seus respectivos continentes, os sertões da África e da América faziam parte do espaço do Império português. Tanto a Coroa quanto a Igreja Católica tinham planos para eles. Um desses planos perpassava justamente na ocupação do território e na conversão de grupos de ameríndios e negros africanos.
Depois de atingidas essas longínquas regiões, foi necessário estabelecer estruturas materiais que dessem suporte para a realização do intento. Uma vez estabelecidas essas estruturas, percebemos que suas condições e manutenções não eram fáceis. Tanto no sertão de Pernambuco quanto no sertão de Angola, por vezes, a situação dos religiosos, das igrejas e das missões era precária. Até mesmo havia ausência de missionários, o que terminava por esvaziar determinadas localidades. Por outro lado, só o fato de haver existido missões e paróquias no interior das duas colônias já nos mostra que a Igreja e a Coroa estavam preocupadas em se estabelecerem nos distantes sertões do Império.
BIBLIOGRAFÍA
BIRMINGHAM, D. (1965). A Conquista Portuguesa de Angola. Porto: A Regra do Jogo Edições.
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