453
SOBRE ILHAS, MARES, DESTINOS E ESCRITAS [SÉCULOS XV-XX]
ABOUT ISLANDS, OCEANS, DESTINATIONS AND WRITINGS [FROM
THE 16TH TO THE 20TH CENTURIES]
Claudia Faria
Graça Alves**
RESUMEN
Casa do mar, a Madeira tem acolhido, ao longo dos
séculos, gente de fora, à procura do paraíso, da
riqueza, de aventura, do conhecimento, da saúde ou de
si. Da Europa, olhou-se para a Ilha como um lugar
mágico, um lugar de confluência de culturas, um lugar
que foi sendo construído pelas palavras de cronistas,
viajantes, romancistas e poetas.
Esses testemunhos, ora inflamados, ora estereotipados,
cartografaram, em várias línguas, uma visão
(continental) sobre este espaço insular – escala, porto
de chegada ou (como diz Herculano, referindo-se aos
Açores) “rochedo de salvação”.
PALABRAS CLAVE: ilha, destinos, viagem,
literatura, visão.
ABSTRACT
Throughout the centuries, Madeira, a home lost in the
middle of the Atlantic Ocean, has welcomed foreigners
who came in search of paradise, wealth, adventure,
knowledge, health or just looking for themselves.
From Europe, the island was glanced as a magical
place, where different cultures merged, a place which
has been framed through the words of chronicles,
voyagers, writers and poets.
These accounts written in several languages,
sometimes enthusiastic, other times embedded with
stereotypes, mapped a (mainland) perspective about
this insular territory – port of call, seaport or “salvation
rock” (as Herculano states when referring to the
Azores).
KEYWORDS: Island, destination, Travel, Literature,
Perspectives.
A Ilha da Madeira foi, desde sempre, uma das casas do mar, capaz de acolher gente de outros
lugares. Aqui aportaram viajantes à procura do mundo, da saúde, do conhecimento, da beleza da terra,
da confirmação do que outros haviam escrito, da promessa da felicidade, de uma relação possível com
os outros e com os próprios. Foram navegadores, aventureiros, exploradores, cientistas, políticos e
pintores, escritores e poetas.
A ilha ficou escrita desde o século XV, quer por autores portugueses que, no reino, se deixavam
envolver por este “sítio que do Mar se descobria,/ Que um novo paraíso parecia”,1 quer por
estrangeiros que, ao longo do tempo, foram projectando o seu olhar europeu sobre esta “gota de vinho
verde/ num cálice de azul imenso”.2
Estiveram cá italianos – Cadamosto (1432-1488), que elogiou os “vini assai binissimi”, Arditi e
Landi,3 alguns franceses, alemães e, sobretudo, ingleses. Foram olhares de fora, olhares cheios de
mundo, molhados de outros mares e, sobretudo no caso dos autores estrangeiros, com escritas que se
inscrevem, na sua maioria, no conceito de Literatura de Viagens de Fernando Cristóvão,4 em que os
textos (do século XV ao século XIX) entrecruzam literatura com História e Antropologia, indo buscar
à viagem real ou imaginária (por mar, terra e ar) temas, motivos e formas.
Desde o princípio, desde que esta ilha portuguesa se cartografou no mapa do mundo conhecido, a
Madeira vem exercendo um grande fascínio sobre quem se deixa envolver pela alma de um vulcão
cuidadosamente guardada numa rocha em pleno oceano.
A Europa olha para as ilhas [e para esta ilha atlântica de forma particular] como um lugar mágico,
um lugar de confluências de mares e de culturas, um lugar transfigurado pelas palavras e pelos
sentidos de cronistas, romancistas e poetas que a escreveram e lhe redefiniram os contornos.
Percorreram os segredos das escarpas, a beleza das flores, a fertilidade da terra, o viver e o sentir deste
,Investigadoras del Centro de Estudios de Historia del Atlántico (CEHA). Rua das Mercês, 8. 9000-224. Funchal Madeira-
Portugal; Teléfono: +351291214970; Correo electrónico: claudiamffaria@gmail.com
XX Coloquio de Historia Canario-Americana
454
lugar redondo, ora paraíso, ora inferno, ora refúgio, ora prisão, mas sempre cais de chegadas e de
partidas, um porto onde, às vezes, também o coração se ilha – concha, portanto.
As referências à Ilha – assim, maiusculada – aparecem na literatura portuguesa da expansão, em
pleno século XV. Gomes Eanes de Zurara (1420-1474) narra a descoberta da Madeira como um
presente de Deus ao Reino, na pessoa de um herói casto, puro, ao serviço da Fé – o Infante D.
Henrique. Esta é uma terra de promessas, rica, fértil, com ares perfeitos, capaz de encaminhar muito
bem5 para a metrópole, para o reino situado na Europa que olha para ela como um paraíso.
João de Barros (1492-1570) reconhece-lhe a perfeição. Mas percebe também que esta ilha, a
“Princesa de todas as terras”,6 é objecto de cobiça de um reino que procura colher dela os rendimentos
que a terra oferece. Nas Décadas da Ásia, há um povo inteiro que se alegra à vista da terra desejada, a
mesma terra a que Damião de Gois (1502-1574) se referirá, no século XVI, como um “lugar de
próspero sucesso”, entregue a João Gonçalves e Tristão Vaz a quem coube a missão de povoar a “mui
nobre e rica ilha da Madeira”.
A voz ilhoa de Gaspar Frutuoso (1522-1591), no século XVI, vê na descoberta desta terra a
possibilidade de novos diálogos do homem: com o mar, com Deus, com o próprio homem. Abrem-se
novos horizontes. A ilha abre-se ao mundo. Aqui se experimentam culturas. Daqui se expande o nome
de Portugal. Uma vocação ribeirinha de quem tem o mar aos pés e consegue perceber nele estradas
para outros lados.
Camões chama-lhe “grande”.7 Porque rica. Porque próspera, graças à cultura da cana e da vinha,
graças à sua capacidade de se tornar uma das portas da Europa. Ela é efectivamente, e desde o
princípio, a “promise land”.
No século XVII, D. Francisco Manuel de Melo (1608-1666) baseia-se na Relação de Francisco
Alcoforado e reacende a lenda (ou não) de Robert Machim e Ana d”Arfet:8 dois amantes ingleses que
lutam contra a impossibilidade do amor, atravessam o Oceano, sofrem os tormentos do mar e,
náufragos, são recolhidos por uma terra que também lhes há-de guardar a alma. “(…) la isla és el
pantéon de los espacios más representados en la literatura”,9 defende Marcos Hernandez.
A ilha assumiu, então, o modelo de um território entre o paraíso terrestre e o eterno, um sacrário de
almas inglesas, marcado por uma cruz que os portugueses hão-de encontrar, por ouvir contar aos
companheiros de Machim, segundo a versão de Manuel Thomaz (1585-1665), o poeta da Insulana.10
T. M. Hughes (?) trata o tema no Poema Ocean Flower. Outros escritores ingleses hão-de contar
esta história também, levantando mesmo a questão da soberania – “A Madeira é britânica, sempre foi
britânica, só a língua é que é portuguesa. É britânica desde 1335”, diz a personagem inglesa de A Ilha
de Arguim, de Francisco Pestana (1996).11
Hans Sloane (1660-1735),12 presidente do Royal College of Physicians e da Royal Society of
London e um dos fundadores do British Museum esteve no Funchal em 1689. Encantado com beleza
natural e a benignidade do clima, o seu olhar mais científico derrama-se por aspectos relacionados
com a história, as actividades económicas e sobretudo com as condições de vida das gentes locais e a
saúde. A Madeira está longe e o médico do rei Jorge II nota que os avanços nos cuidados de saúde
tardam em aqui chegar.
Durante o século XVIII, só os estrangeiros falam da Madeira: a ilha é um lugar de passagens, um
porto de escala para o conhecimento (várias foram as expedições que aportaram no Funchal,
nomeadamente a expedição de James Cook). São essencialmente autores ingleses que falam dela: John
Ovington (1653-1731),13 Jonh Atkins (1695-1757),14 William Bolton (?),15 George Anson (1697-
1762),16 Robert Wilson (?),17 George Thomas Stauton (1781-1859),18 Maria Riddel (1772-1808)19 e
William Gourlay (?)20 que mostram uma cidade populosa, pitoresca mas atrasada apesar de asseada,
com ruas mal pavimentadas, com igrejas mal ornamentadas, sem qualquer valor arquitectónico
(sobretudo porque distante do modelo inglês) e sem entretenimento, não obstante a beleza e a
fertilidade do resto da terra, capaz de produzir de tudo, quase sem a mão do homem.
A Europa olha para a beleza natural da ilha. E a Madeira vai ficando na rota dos naturalistas, dos
botânicos, dos amantes dos jardins. É encarada como campo de ensaio das técnicas de experimentação
e observação directas. É o século das Luzes a fazer da ilha um dos seus laboratórios. São muitos os
nomes que poderíamos referenciar, mas citamos, apenas, Richard Charles Smith que, em 1757, foi
responsável pela criação de um jardim com várias espécies e ainda o naturalista francês, Jean Joseph
d” Orquingny que se fixou na capital madeirense em 1789 onde criou uma Sociedade Patriótica,
Económica, de Comércio, Agricultura, Ciência e Artes. Por outro lado, note-se que os madeirenses
Sobre Ilhas…
455
iam para as capitais Europeias, com particular destaque para Londres, Paris e Áustria no sentido de
aprofundar os seus estudos e tomar contacto com os mais recentes avanços científicos, que regra geral,
tardavam em chegar à ilha. Era forçoso abandonar este éden e procurar outra árvore da sabedoria nos
colégios e universidades das grandes capitais Europeias.
Na primeira metade do século XIX, a Madeira tornou-se um espaço preferencial da comunidade
científica alemã, tendo sido visitada e estudada por uma série de investigadores das mais diversas
áreas que publicam, sobretudo ensaios que, posteriormente, partilham quer nas universidades, quer nas
sociedades científicas e literárias de cidades como Berlim, Bona, Viena. Ferdinand Christman (1863-
1894),21 Herman Schacht (1814-1864),22 Oswald Herr (1809-1883),23 George Hartung (1820-1891),24
Richard Greef (1829-1892),25 Jégor Sivers (1823-1879),26 Jean Baptiste von Spix,27 Phillipe von
Martius,28 Paul Langerhans (1847-1888),29 entre outros. Na capital francesa, também surgiram
algumas obras sobre cette grande île de Madère, de autores como Charles Marie Kerhalet (1813-
1882),30 Gaston Lemay (?),31 Garnier (?)32 e Marie Armand Avezac (1798-1875).33
No geral, e partilhando a visão dos outros visitantes, é a paisagem, a riqueza natural e o pitoresco
de alguns costumes das gentes que os fascina e que descrevem com algum entusiasmo. Esta é a terra
onde o talento da mãe natureza se faz sentir (…) aqui é o local onde tudo se pode esquecer (…),34
escreve Jegór Sivers.
Lamentam, porém, a hegemonia inglesa. Sivers35 queixa-se que todo o comércio está nas mãos
deles, Shultzer36 explica que os ingleses não só se recusam a socializar com os madeirenses como não
querem aprender o português e Katharina Pommer-Esche,37 na sua obra, incita os seus conterrâneos a
virem para a Ilha numa tentativa de travar esta ocupação anglófona.
Neste século, o clima chama outros viajantes e doentes que procuram aqui remédio para os seus
males.
A verdade é que não há visões inocentes quando se escreve sobre um lugar ou as suas gentes. Por
isso, quem chega e regista as suas impressões fá-lo de acordo com o seu olhar e envolve-os nas suas
angústias ou alegrias, medos ou deslumbramentos.
Quem vem de fora e traz consigo algum ânimo consegue perceber as condições que a ilha oferece:
um clima [quase] perfeito, habitações luxuosas, rodeadas de jardins bem arranjados, uma paisagem
exuberante que tempera as palavras de encantamentos. Até Woodsworth (1770-1850),38 que nunca
visitou a Madeira (mas acedeu a um pedido de Jane Wallas Penfold),39 exaltou as flores e a beleza da
ilha num poema que só um mestre saberia escrever.
A literatura do século XIX e da primeira metade do século XX veste a sintaxe de verde, refresca-a
com a pureza das águas que vão alimentando o chão, com a beleza das flores que pintam as
montanhas, com a generosidade do vinho que alegra o espírito.
A aproximação, por mar, sempre fascinou quem chegava. Nem sempre se encontravam palavras
para descrever esta “chef d”oeuvre” (como diz uma viajante inglesa que preferiu manter o anonimato).
Bulhão Pato (1828-1912) regista o seu deslumbramento, “Que anfiteatro, ó Deus/Que paraíso!”40 Nas
Memórias, chama à Madeira “espectáculo paradisíaco”, “país privilegiado”, “paraíso terreal”.
Conhece-lhe a sumptuosidade das quintas, a animação dos serões: é a propriedade do cônsul inglês,
Henry Veitch, a Quinta do Til, “Elysien Residence” dos Phelps, a Quinta do Palheiro Ferreiro, cujo
proprietário, educado em Inglaterra, passa a vida a viajar pelo Mundo, num exemplo a seguir (tanto
por locais como por estrangeiros). O resto, o que ultrapassa as sebes da Quintas, é apenas pitoresco.
Por esta altura, (referimo-nos ao século XIX e início do século XX) o Funchal é uma cidade
encantadora vista do mar. Porém, quem chega de fora, de uma cidade europeia, e passado o primeiro
impacto da imponência e riqueza natural, desilude-se quando resolve explorar as ruas difíceis, a falta
de divertimentos e a monotonia da vida citadina. Consideram a vida barata, o alojamento acessível e
confortável, comparável aos grandes centros urbanos europeus: os mais ricos querem viver à
l”anglaise e copiam-lhes o modo de vestir, a decoração da casa e o modo de receber e socializar, mas
o povo é pobre, ignorante, explorado.
Alguns visitantes comparam, inevitavelmente, a cidade do Funchal com a sua cidade natal ou com
as outras capitais da Europa, e reparam na hospitalidade das gentes e sobretudo nos hábitos de vida
dos madeirenses, que alguns chamam medievais. Ver passar mulheres e crianças com molhos de lenha
à cabeça, descalços e semi-nus, choca o forasteiro que acaba de chegar.
As gentes são, muitas vezes, descritas com um olhar enviesado, carregado de preconceitos (alguns
ainda hoje visíveis no olhar de quem nos visita). Alguns autores, e em particular as mulheres, detêm-se
XX Coloquio de Historia Canario-Americana
456
na descrição da condição de vida, evidenciando a falta de higiene, de assistência social, de
escolarização assim como nas crianças que se criam na rua, entregues a si próprias (uma opinião
partilhada por muitos). Outros entenderam que a condição do povo, mal vestido, mal nutrido,
negligenciado e sem qualquer apoio social por parte das autoridades era fruto de uma má governação,
de impostos severos e injustos, de uma política inexistente porque discutida e aplicada apenas no
continente, onde a voz da Madeira raramente se fazia ouvir porque se confundia com a leve brisa do
Atlântico.
Esta era uma ilha de passagem, de viajantes, que, por vezes apenas olham o Funchal do deck do
navio e não conseguem resistir ao feitiço da paisagem, à atmosfera inebriante e registam, quase em
euforia, as suas impressões: John Barrow (1746-1848),41 John Driver (?)42 Eduard Bowdich (1798-
1843),43 Eduard Harcout (1825-1891)44 William White Cooper (?),45 Ellen Taylor (1842-1907),46 entre
muitos deixaram-se levar pelos aromas, pelos sabores, pelas impressões. É o século da excentricidade
dos aventureiros e da sua escrita. É o século dos Diários e dos Guias de Viagem que, gradualmente,
vão dando voz ao olhar e à sensibilidade feminina.
A grande maioria dos viajantes tece duras críticas àquilo que é estranho, porque diferente do que é
hábito no seu país de origem, elogiando tudo aquilo que é importado e tem o mesmo aspecto e fala a
mesma língua. Alguns tecem comentários acerca das relações entre os madeirenses e a comunidade
britânica. Lady Emmeline Stuart Wortley (1806-1855),47 que inicia o seu relato de viagem elogiando a
“noble appearence” da ilha, explica que estas comunidades não se misturam, lamentando, acima de
tudo, a falta de reconhecimento por parte dos madeirenses das obras beneméritas e do
desenvolvimento que os ingleses foram proporcionando ao longo dos tempos. Acredita que, apesar da
admiração que demonstram, é a inveja que os faz calar: por serem mais ricos, mais elegantes, mais
instruídos, mais viajados, mais cultos, mais “gente”. Isabella Hurst de França (1795-1880),48 que
chega à ilha na sequência do seu casamento com o morgado José Henrique de França, acha estranho o
cumprimento quase servil do tirar do chapéu e do beija-mão. Os ilhéus fazem tudo para agradar quem
vem de fora e, quase sem nada para oferecer, recebem, no seu chão, os forasteiros, um chão feito de
jardins, de estilo inglês, claro.
O século XIX situa, também, a ilha num lugar importante do circuito europeu do turismo
terapêutico. Numa carta a Justino de Montalvão, datada de 28 de Janeiro de 1898, António Nobre
(1867-1900) diz que “a Madeira tem a mesma fama que a Suíça”. Mas não se adapta à monotonia da
cidade, ao seu clima “mole e húmido”.49 Consegue, porém, ver a poesia da terra – “Esta ilha é
Portugal, mesma a bandeira / morrer nesta ilha não deve custar”, apesar de não ser este o seu lugar:
“Mas para mim sempre é terra estrangeira / A minha pátria quero, enfim, voltar”.50
Júlio Dinis (1839-1871) observa a cidade através da tristeza da tuberculose, “assombrado por um
pressentimento doloroso”. A ilha do escritor [porque os escritores transportam a ilha no peito]
transparece no que deixa escrito: a praia negra” comprime-lhe o coração. O Funchal é um dos
hospitais de uma Europa doente - “São ingleses cadavéricos, alemães diáfanos, portugueses
descarnados (…) São velhos, adultos, crianças, vaporosas belezas femininas de toda a parte do mundo;
todos a convencer-nos que estamos na «citta dolente», onde à entrada revestem-se de esperança os
próprios condenados”.51 Outra opinião têm as personagens do romance Ângela Santa Clara de
Guilherme Read Cabral (1821-1897) que observam e discutem o progresso que entra na ilha - “O
Funchal é uma cidade modelo, uma lição para os grandes centros”.52
O século XX ilustra uma modernização, uma maior aproximação ao padrão europeu. O Funchal
ganha beleza, ganha electricidade, gás, ruas asfaltadas, cafés, lojas, hotéis, e até em 1903, o primeiro
automóvel trazido por Harvey Foster. Cada vez mais chegam forasteiros, gente de toda a parte do
mundo, o mundo que o madeirense vislumbra em cada maré alta. E a ilha a todos recebe, “open-hearted
and open handed”.
O Funchal é, agora, uma cidade para turistas e, como tal o número de guias de viagem
especializados (essencialmente ingleses), aumenta consideravelmente. É preciso informar o visitante,
de forma eficaz e objectiva, não deixando espaço para eventuais surpresas ou contratempos. Seguindo
o exemplo de Thomas Cook, na Grã-Bretanha, a viagem passa a ser mais planeada e mais organizada.
Tenta-se mostrar tudo, no menor espaço de tempo. Koebel (1909)53 relata a chegada de barcos, a
organização do porto e da cidade quando os vapores atracam no cais. Ingleses, sobretudo. E trazem
dinheiro e influências.
Sobre Ilhas…
457
Nos anos 20, Alan Lethbridge54 mostra uma Madeira capaz de sustentar Portugal, uma “mina de
ouro” que J. Edith Hutcheon55 sublinha, não entendendo onde ficaram a História e a Natureza da ilha
no desrespeito manifestado pelo continente. Em Things seen in Madeira, de 1928, a autora refere-se
aos Casinos que a cidade oferece aos visitantes (Quinta Pavão, Vitoria e Monumental). Vê um povo
habituado ao contacto com o que vem de fora. E o Funchal é cosmopolita. Note-se que, em 1900, já
havia 15 consulados.
Os ingleses escrevem muito sobre a sua importância no desenvolvimento da ilha. Ann Bridge
(1891-1974)56 e Susan Lowndes (1907-1993)57 escrevem sobre Mrs. Phelps e o seu papel nos
bordados, o senhor Hinton e o incentivo na indústria dos vimes ou sobre a importância dos Blandy na
exportação do vinho e de outros produtos madeirenses. Nas entre-linhas sente-se algum desconforto,
um certo lamento pela falta de reconhecimento dos madeirenses para com os beneméritos ingleses
(sentimento, aliás, comum na grande maioria destes relatos). No seu entender, talvez o madeirense seja
ingrato em aceitar que o desenvolvimento ocorrido na ilha se deveu ao capital e ao know how dos
residentes de Além-Mancha. Na verdade, foi o vinho e, mais tarde, o turismo terapêutico que tornaram
a Madeira Europa.
Este Portugal insular é feito de Ilhas Desconhecidas, como diria Raúl Brandão (1867-1930), em
1926. A sua sensibilidade fixa-se nas gentes “Só o homem! Só o homem é que se atreve a cultivar
socalcos abertos a fogo na perpendicular na falésia”.58 As suas palavras transportam-nos a um
exotismo (quase) africano de calor, de cores e de animação. Sentado no Golden Gate, a “esquina do
Mundo”, vê armar e desarmar o teatro da cidade do Funchal, sempre que os navios chegam e quando
zarpem do cais. É uma cidade de esperas, esta - espera os navios que trazem novas do mundo, que, por
algum tempo, desfazem o isolamento e abrem as fronteiras do mar. No dizer de Oldemiro César
(1884-1953), é uma cidade anglicizada, uma cidade escrita e vivida em inglês, contaminada pelo que
vem de fora, deixando-se explorar sem se aperceber do seu verdadeiro valor.
Quem visita a ilha, guarda no olhar o paraíso. É uma ilha ridente, majestosa, de levadas que rasgam
as escarpas. É uma ilha-porto que estende a mão a quem chega. Pela ilha dentro, porém, há casas que
se entalham nas rochas, há mães-meninas que trazem os filhos agarrados às saias, há crianças que
pedem um tostãozenho para ajudar a viver.
Mas os autores reconhecem também que o ilhéu tem a força das rochas. Levanta-se do chão depois
das aluviões, reergue-se das cinzas depois dos fogos, reconstrói-se depois das crises. A cidade volta-se
para o mar. Sabe que é por lá que entra o mundo. Sem ser propriamente um poeta, o arquitecto
Edmundo Tavares descreve, em 1948, uma cidade moderna, voltada para os turistas, aproveitando a
“indiscutível maravilha da natureza pela sua incrível formosura, pelo pitoresco extraordinário da sua
paisagem, pela graça dos seus costumes, e pelos primores das suas flores perfumadas e dos seus frutos
saborosos, é um imenso rincão de magia e de sonho, verdadeiro Éden ou Paraíso Terrestre que
encanta, embriaga e entontece o visitante”.59
Ferreira de Castro (1898-1974) também se deslumbra com as ilhas, sempre que as visita. Mas não
deixa de ver as mãos que as crianças lhe estendem ou a miséria que os tapassois deixam entrever ou as
mulheres que limpam as cabeças dos filhos, sentadas nos portais, com a fome estampada nos rostos. A
cidade de Ferreira de Castro é uma cidade de ingleses que se organiza em função do turismo que lhe
traz proventos generosos.60
A Eternidade mostra a “condição insular” que se explica pelos diversos isolamentos que ilham o
madeirense, com a fatalidade que o espreita a cada hora, com a natureza que, de tão perto, ora é mãe,
ora é madrasta. Um fado triste que Maria Lamas (1893-1983) traduz na frase ainda não ouvi o povo
cantar nesta ilha.
Maria Lamas fala da insularidade como poucos autores de fora da ilha. É uma ilha-quase-prisão,
terra de exilados, fechada pelo mar que a envolve. Mas é também porta por onde entra o mundo. É por
isso que, nas suas palavras, faz coincidir a história da ilha com a história das mobilidades:
Vieram os homens – nas caravelas, nos veleiros corsários, nos barcos de guerra e nos
vapores. Povoaram as ilhas. Desbravaram a terra. Durante cinco séculos ergueram templos e
palácios. Abriram caminhos, “furados” e levadas. Construíram quintas e mirantes; engenhos
e fábricas; pontes e estradas de turismo; hotéis e centrais eléctricas. E continuaram sempre a
chegar ou a passar, cada vez em maior número, nos cargueiros, nos transatlânticos, nos iates,
XX Coloquio de Historia Canario-Americana
458
nos aviões. Já não partem apenas de Lisboa, como as naus das descobertas: vêm de todo o
mundo.61
Ao longo do século XX, outros vieram mas poucos mais a escreveram. Vitorino Nemésio (1901-
1978) analisa o progresso que abre os pulmões à cidade e que a faz respirar “desafogada, no quadro de
uma das mais belas e sedativas paisagens do mundo”. Miguel Torga (1907-1995) também percorreu
esta “alucinação da natureza” e os seus “caminhos de assombro”; Helena Marques fá-la pulsar nos
seus romances e ganhou legitimidade para afirmar que “Ninguém se liberta de uma ilha”.62 Possidónio
Cachapa (1965) guarda-a dentro de si e por ela faz também “Uma viagem ao Coração dos Pássaros”.
A Madeira guarda-se dentro do peito dos artistas que por aqui passaram. E foram desenhando, no
contorno manso das palavras, representações de uma ilha atlântica. Por ela se foi para o mundo. Sobre
ela o mundo europeu foi pensando e escrevendo.
Hoje, a ilha continua a ser lugar de chegadas. O Turismo aproxima-a dos continentes. Ainda
encanta uma Europa que continua a chegar.
Teremos sido capazes de manter - apesar de tudo - a nossa identidade? Escrever-se-á Ilha de forma
diferente da que se escreve Continente?
Percorremos a Madeira e encontrámos Europa. Partilhámos quem éramos e deixámo-nos
contaminar pelo que vem de fora. O que ficou, então, de quem somos? Somos jangada no mar ou a
modernidade e a globalização nos fizeram ancorar ao continente?
Terminamos, pois (e à laia de conclusão), com três versos de um poema de José Agostinho
Baptista:
Sim,
(…)
Há sempre uma ilha, estrangeiro,
a ilha63
Sobre Ilhas…
459
BIBLIOGRAFÍA
(1835). Ship and Shore, Leaves from a Journal of a cruise to the Levant.
(1864). Geologische Beschreibung der Inseln Madeira und Porto Santo. Leipzig, Verlag von Wilhelm Engelmann.
ANSON, G. (1853). A voyage round the world in the years 1740-41-42-43-44, London, s.n.
ATKINS (1837). A voyage to Guinea, Brazil and the West Indies, Madeira, Cape Verde… London, Ward and Chandler.
BARROW (1806). A voyage to Conchichina in the years 1792 and 1793. London: T.Cadell and W. Davies.
BENJAMIN (1878). The Atlantic Islands as a resort of Health and Pleasure. London.
BOLTON, W. (1928). The Bolton Letters: the letters of an English merchant in Madeira, 1695-1714.
BOWDICH, T. E. (1825). Excursions in Madeira and Porto Santo during the Autumn of 1823, while on his third voyage
to Africa. London, George B. Whittaker.
BRANDÃO, R. (1988). As Ilhas Desconhecidas. (3º Edição).
BURTON, R. F. (1883). To the Goaldcoast for Gold- a personal narrative. (vol I, II), London, Picadilly.
CHARTON, E. (1889). Le Tour du Monde – noveau journal de voyages. Paris: Librarie Hachette et Cie.
COOPER (1840). The invalid’s Guide to Madeira with a description of Teneriffe, Lisbon: Cintra, Mafra etc. London:
Smith, Elder and Co.
CHRISTMAN (1889). Funchal auf Madeira und seine klima.
CRISTOVÃO, F. (1999). Condicionantes Culturais da Literatura de Viagens (coord.). Lisboa.
D’ AVEZAC (1847). L”univers. Histoire et description de tous les peoples. L” île Afrique. Paris: Firmin Didot Frères,
Editeurs.
DRIVER, J. (1838). Letters from Madeira in 1834 with an appendix, illustrative of the History of the Island, Climates,
wines and other information up to the year 1838. Liverpool: Longman & Co.
FRANÇA, I. (1970). A journal of a visit to Madeira and Portugal. Madeira.
GARNIER (1859). Itineraire de Paris à Madére. Paris: J. B. Bailliére et Fils.
GONÇALVES, J. A. (1991). Antologia Verde. Cadernos Ilha nº. 5, Madeira.
GONZÁLEZ CRUZ, M. I. (1995). La convivencia anglocanaria: estudio sociocultural y linguístico (1880-1914), Las
Palmas de Gran Canaria: Cabildo Insular de Gran Canaria.
GOURLAY (1792). Observations on the Natural History, climate and diseases of Madeira during a period of eighteen
years.
GREEF (1868). Reise nach den Canarischen Inseln (London, Lissabon, Madeira, Tenerife, Gran Canaria, Lanzarote,
Marokko, Spanien).
HARCOUT (1851). A sketch of Madeira containing information for the traveler or invalid visitor. London: John Murray.
HERNANDEZ (2009). Islas míticas en relácion com Canarias.
HERR (1852). An die Zürcherische Jugend auf das Jahr 1852: Monatschrift für Deutsche und Schweiserische Garten-und
Blumenkunde; 1851, über die periodischen Erscheinungen der Plflanzenwelt in Madeira; Der Renton Garten in
Funchal, etc.
KEITH (1819). A voyage to South America and the Cape of Good Hope. London: Printed for the Author.
KERHALET (1907). Madére, les Iles Sauvages et les Iles Canaries. Paris.
KOEBEL (1909). Madeira old and new. London: Francis Griffiths.
LAMAS, M. ( 1956). Arquipélago do Funchal, Maravilha Atlântica. Funchal.
LANGERHANS (1885). Handbuch für Madeira. Berlin, August Hirschwald.
LEMAY, (1879). A bord de la Junon voyage au tour du monde. Paris: G. Charpentier Éditeur.
MARCH (1856). Sketches and adventures in Madeira, Portugal and Andaluzia. Evans Brothers limited.
MARQUES, H. (2009). O Bazar alemão. D. Quixote, Lisboa.
MELO, (s.d.). Descobrimento da Ilha da Madeira – ano 1420, Epanáfora Amorosa, com texto crítico e notas informativas
por José Manuel de Castro.
MONIZ, F. y COELHO E SANTOS (2011). Funchal (d)escrito. Ensaios sobre representações literárias da Cidade.
Funchal.
NEPOMUCENO (2008). A Madeira vista por escritores portugueses (séculos XIX e XX).
OVINGTON (1696). A voyage to Surrat in the year 1689. London: Oxford University Press.
PESTANA, F. (1996). A Ilha de Argüim. D. Quixote, Lisboa.
POMMER-ESCHE (1902). Madeira die Wald Insel.
RIDDEL (1792). Voyages to the Madeira and Leeward Caribbean isles with sketches of the natural history of these
islands.
ROUNDELL (1889). A visit to the Azores with a chapter on Madeira.
SIVERS, J. von (1793-1829). Über Madeira und die Antillen nach Mittelamerika. Reisedenkwürdigkeiten Forschungen.
SCHACHT (1859). Madeira und Tenerife mit ihrer vegetation, 1857, über Funchal auf Madeira.
SCHULTZE, R. (1864) Die Insel Madeira: Aufenhalt der kranken und Heilung der Turberkulose daselbst. Nach
dreijährigen Beobachtung.
SLOANE (1725). A voyage to the Islands of Madeira, Barbados, Jamaica, etc.
STAUTON (1797). An Authentic account of an Embassy from the king of Great Britain to the Emperor of China.
SPIX, J. B. VON y MARTIUS, P. VON ( ). Travels in Brazil in the years 1817-1820 undertaken by command of his
Majesty the King of Bavaria, London, Longman, Hurst, Rees, Orme, Brown and Green.
THOMAS (1860). Adventures and observations on the West Coast of Africa and its Islands.
TAVARES, E.(1948). Terra Atlântida (Impressões da Madeira). Bertrand.
TAYLOR (1882). Madeira, its scenery and how to see it. With letters of a year’s residence and lists of trees, flowers,
ferns and seaweeds. London, Edward Stanford.
XX Coloquio de Historia Canario-Americana
460
WILSON, R. (1806). Voyages of discoveries around the world, comprehending authentic and interesting accounts of
countries never before explored. Vol. I, London: James Cundel.
WORTLEY, E. S. (1854). A visit to Portugal and Madeira. London, Chapman and Hall.
Sobre Ilhas…
461
NOTAS
1 THOMAZ (1635).
2 GONÇALVES (1991), p. 23.
3 Sobre o assunto ver ARAGÃO (1981).
4 CRISTOVÃO (1999), p. 35.
5 “E como Deus queria encaminhar tanto bem para este Reino, e ainda para muitas outras partes, guiou-os assim que com
o tempo contrário chegou à Ilha que se chama agora do Porto Santo, que é junto com a Ilha da Madeira , na qual pode
haver sete léguas em roda. E estando ali por alguns dias, guardaram bem a terra, e pareceu-lhe que seria grande
proveito de se povoar. E tornando dali para o reino, falaram sobre isso ao Infante, contando-lhe a bondade da terra e o
desejo que tinham acerca da sua povoação”. Citado por Vários, Aquele espesso negrume (variações sobre um mesmo
tema: Machico e Machim na Alvorada da ilha), 1982.
6 “A qual chamaram da Madeira por causa do grande e mui espesso arvoredo de que era coberta. Nome já mui celebrado e
sabido por toda a nossa Europa e em muitas partes de África e Ásia por os frutos da terra de que todas participam: e ela
tão nobre fértil e generosa em seus moradores, que (…) se pode chamar Princesa de todas”. In Barros (1998), p. 17.
7 CAMÕES ( ), V. 5.
8 MELO (s.d.).
9 HERNANDEZ (2009), 141.
10 “Os ares regalados e suaves /Mostram ser paraíso a nova TerraJardim de várias ervas preciosas/Pudera a bela estância
assim chamar-se/Que o parque singular da Natureza/ Mais válida não pintar pode a beleza. Assim com Deus a
possessão tomaram/Da nova terra e com mais alegria/Vendo que humanos pés a não pisaram/Depois que o mundo deus
criado havia”. TOMAZ (1635).
11 PESTANA (1996).
12 SLOANE (1725).
13 OVINGTON (1696).
14 ATKINS (1837).
15 BOLTON (1928).
16 ANSON (1748).
17 WILSON (1806).
18 STAUTON (1797).
19 RIDDEL (1792).
20 GOURLAY (1792).
21 CHRISTMAN (1889).
22 SCHACHT (1859).
23 HERR (1852).
24 HARTUNG (1864).
25 GREEF (1868).
26 SIVERS (1861).
27 VON SPIX (1823).
28 VON MARTIUS (1823).
29 LANGERHANS (1885).
30 KERHALET (1907).
31 LEMAY (1879).
32 GARNIER (1859).
33 D’ AVEZAC (1847).
34 “Hier ist das Land, wo die Natur übereich die herrlichsten ihrer Gaben spendente und den Menschen zum Genusse
auffordet. Hier ist es, wo der Mensch alle Sorgen vergessend, tief Athem holen kann aus reiner stärkenden Luft! Hier
ist die Luft, die, ein erquickender Balsam, alle Wunden heilen mag (…)” citado por REBOK ( ), p. 253.
35 SIVERS (1793-1829).
36 SCHULTZE (1864).
37 POMMER-ESCHE (1902).
38 WOODSWORTH.
39 Jane Wallas Penfold, nasceu na Madeira em 1821 e era filha de William Penfold e Sarah Gilbert. Casou a 7 de Março de
1846 com William Mathews e faleceu em Bath no ano de 1884. Madeira, Fruits and Ferns dado à estampa em 1845.
40 NEPOMUCENO (2008), p. 16.
41 BARROW (1806).
42 DRIVER (1838).
43 BOWDICH (1825).
44 HARCOUT (1851)
45 COOPER (1840).
46 TAYLOR (1882).
47 WORTLEY (1854).
48 FRANÇA (1970).
49 NEPOMUCENO (2008), p. 51.
50 NEPOMUCENO (2008), p. 51.
51 NEPOMUCENO (2008), p. 28.
XX Coloquio de Historia Canario-Americana
462
52 CABRAL (1895), p. 193.
53 KOEBEL (1909).
54 LETHBRIDGE (1924).
55 HUTCHEON(1928).
56 BRIDGE (1958).
57 LOWNDES (1958).
58 BRANDÃO (1926), p. 103.
59 TAVARES (1948), p. 21.
60 CASTRO (1977).
61 LAMAS (1956), p. 25.
62 MARQUES (2009).
63 BAPTISTA (2000).