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“COMPANHEIRAS!”:
AS MULHERES E O MOVIMENTO OPERÁRIO
BRASILEIRO (1889-1930)
Benito Bisso Schmidt
A partir das últimas décadas do século XIX começam a se fazer sentir no Brasil as
marcas da sociedade urbano-industrial. Uma industrialização ainda incipiente na qual
convivem algumas poucas fábricas com grande concentração de trabalhadores e tecnologia
“moderna” e muitas oficinas manufatureiras ou mesmo artesanais. Articulado com este
processo inicia-se a formação de uma classe operária e, concomitantemente, ocorrem as
primeiras manifestações do movimento operário. Sobretudo após a abolição da escravidão
(1888) e a proclamação da República (1889), o operariado brasileiro começa a organizar-se
em associações de defesa contra a opressão dos patrões. Inicialmente constituíram-se
sociedades de mútuo socorro que visavam auxiliar os trabalhadores em caso de desemprego,
viuvez, durante a velhice, etc. Posteriormente verificou-se o ingresso das ideologias que
animavam o movimento operário europeu: o socialismo, o anarquismo, o anarco-sindica-lismo
e, já na década de 20, o comunismo. Estas penetram no Brasil por obra dos imigrantes
(italianos, espanhóis, alemães, etc.) que vêm para o país como substitutos da mão-de-obra
escrava nas lavouras mas que, em sua maioria, acabam concentrando-se nos maiores cen-tros
urbanos (como São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre). Além disso, ocorreu um
intenso intercâmbio de idéias com a Europa e com outros países latino-americanos através
da circulação de militantes, jornais, panfletos, livros, peças teatrais, entre outros materiais
de propaganda.
A historiografia brasileira já examinou este processo a partir de diversas perspectivas,
tanto destacando as macro-transformações sócio-econômicas como analisando as
experiências dos diversos sujeitos que nele atuaram. Porém apenas nas últimas décadas,
os(as) historiadores(as) voltaram-se para a atuação das mulheres no movimento operário.
Obviamente que esta “descoberta” participa de uma tendência mais geral de renovação
dos estudos históricos que inclui, entre outros aspectos, o questionamento dos modos
totalizantes/totalitários de se interpretar o passado e o resgate de sujeitos antes
negligenciados pelo discurso histórico: mulheres, negros, índios, etc. Além disso temos o
impacto do movimento feminista sobre a produção acadêmica, especialmente a partir dos
anos 70, com o fim da ditadura militar. Quero, nesta apresentação, expor alguns resultados
destes novos estudos relativos à participação de mulheres no movimento operário brasileiro,
do final do século XIX, quando surgem as primeiras organizações, até a década de 1930,
quando novas formas de relacionamento do Estado com os trabalhadores urbanos foram
implantadas.
Desde o início do processo de industrialização, as mulheres constituíram uma parte
significativa da classe operária brasileira, especialmente em alguns setores como o têxtil.
Alguns exemplos: em São Paulo, as estatísticas informam que no final do século XIX,
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72,74% dos trabalhadores nas indústrias de fiação e tecelagem eram mulheres e crianças.
Em 1912, dos 7 estabelecimentos fabris visitados pelos inspetores do Departamento Estadual
do Trabalho, num total de 1775 operários, 1340 eram do sexo feminino.1 Em Pelotas e Rio
Grande, duas importantes cidades industriais no extremo sul do Brasil, segundo o
Recenseamento de 1920, as mulheres compunham cerca de um terço da mão-de-obra in-dustrial.
2 É fácil perceber o porquê desta presença significativa do “sexo frágil” nas fábri-cas,
embora a moral da época propugnasse que as senhoras “decentes” deveriam dedicar-se
sobretudo ao lar: os salários pagos a mulheres e crianças era bem mais baixo do que os
atribuídos aos homens, o que é constantemente denunciado pela imprensa operária.
Pelos relatos que temos da época, é possível perceber as terríveis condições do trabalho
feminino nas indústrias. O pesquisador Edgar Rodrigues cita o depoimento da operária
Luiza Ferreira de Medeiros, que trabalhava na fábrica têxtil Bangú, no subúrbio do Rio de
Janeiro: “Iniciava o trabalho às 6 e terminava por volta das 17 horas sem horário para
almoço definido. Era a critério dos mestres o direito de comer, e tendo ou não tempo para
almoçar, o salário era o mesmo. As refeições eram feitas entre as máquinas. Apenas umas
pia imunda servia-nos de bebedouro. Nunca recebíamos horas extras, mesmo trabalhando
além do horário estabelecido”. A ocorrência do assédio sexual também é destacada pela
operária, aparecendo também em muitas outras fontes: “Mestre Cláudio fechava as moças
no escritório para forçá-las à prática sexual. Muitas moças foram prostituídas por aquele
canalha. Chegava a aplicar punições de dez a quinze dias pelas menores faltas, e até sem
faltas, para forçar as moças a ceder a seus intentos. As moças que faziam parte do sindica-to
eram vistas como meretrizes, ou pior que isso: eram repugnantes”.3
Como salienta Rago, o que mais chama atenção “(...) é a associação freqüente entre a
mulher no trabalho e a questão da moralidade social”4. Trabalhar fora significa ingressar
na esfera pública, o que transgredia a visão hegemônica naquele momento que associava
o sexo feminino com o espaço da vida privada. Visão esta compartilhada por diversos
agentes como médicos, juristas e jornalistas que procuravam reforçar a idéia de que o
destino “natural” da mulher era ser esposa e mãe. Por exemplo: o médico Vitorino Assunção,
em sua tese de doutoramento “Garantia Sanitária da Prole” de 1909, afirmava: “A mulher
que contrai casamento deve ser convencida das leis naturais e morais que obrigam-na a
exercer o círculo completo das funções de mãe. Se a isto recusar é que há uma falsificação
dos sentimentos contrariando as manifestações naturais e sacrificando o dever que é sacri-ficar
a si, a prole e a humanidade (...)”5. Neste caso, o discurso “científico” da medicina
reforça uma série de mitos presentes no senso comum, relativos às idéias de sacerdócio
das mães (“ser mãe é padecer no paraíso”) e da naturalidade do amor materno.
As mulheres que não assumissem estes papéis eram vistas como loucas, degeneradas
ou prostitutas.
A historiadora Maria Clementina Pereira da Cunha, estudando os prontuários dos inter-nos
do hospício do Juquery em São Paulo, cita o caso de Antonia, de 22 anos, parda,
solteira, internada em 1918. Sua história é reveladora do tratamento dado às mulheres que
com sua conduta desafiavam os papéis sexuais vigentes: “(...) Freqüentou o colégio, onde
aprendeu a ler e escrever. Não consta que houvesse padecido de moléstias graves. Foi
sempre um pouco débil de constituição, como de regra sucede com os mestiços entre nós.
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Por morte de seu progenitor é que começa a sua história mental propriamente dita.
Usufruindo um pequeno rendimento de herança, entregue a si mesma, começou a revelar-se
incapaz de gerir seus bens, que dissipava sem conta (...). Um pouco mais tarde, sua
conduta entrou a manifestar singularidades. Certa vez, comprou trajes masculinos e saiu a
viajar neste estado. Foi reconhecida como mulher e presa pela polícia (...). Achamos, pelo
exposto, que se trata de uma degenerada fraca de espírito em que se vai instalando pouco
a pouco a demência”.6
Em relação às prostitutas, são muitas as preocupações dos especialistas no sentido de
discipliná-las. O regulamento provisório às meretrizes de 1897, destinado a controlar o
exercício de sua profissão, estabelecia entre outros pontos: “a) Que não são permitidos os
hotéis ou conventilhos, podendo as mulheres públicas viver unicamente em domicílio
particular, em número nunca excedente a três. b) As janelas de suas casas deverão ser
guarnecidas, por dentro de cortinas duplas e por fora de persianas. c) Não é permitido
chamar ou provocar os transeuntes por gestos e palavras e entabular conversação com os
mesmos (...)”.7 Tratava-se, pois, de ocultar estas “messalinas” dos olhares das “famílias de
bem”, evitando a degeneração do “corpo social”, segundo as metáforas organicistas da
época.
A questão da mulher ocupou um espaço importante nas discussões e reivindicações do
movimento operário, tanto socialista como anarquista. Em termos gerais, houve um espaço
significativo para a contestação dos padrões morais vigentes, com a freqüente proclamação
da igualdade entre os sexos. O militante socialista Antônio Guedes Coutinho, por exemplo,
que atuou na cidade de Rio Grande no final do século XIX, atacava o casamento institucional
e religioso e afirmava que, na sociedade socialista, as uniões seriam livres e baseadas
exclusivamente no amor. Afirmava também a igualdade entre homens e mulheres e atri-buía
as diferenças existentes à educação: “(...) a razão da aparente inferioridade da mulher
é efeito da educação que esta tem recebido (...)”.8 No mesmo sentido, o “Programa do
Partido Socialista Rio-Grandense” defendia a “ampliação do sistema eleitoral,
reconhecimento do direito de voto e elegibilidade à mulher (...)”.9
Do lado dos anarquistas, a educação da mulher trabalhadora aparece como um instru-mento
essencial de libertação. Neste sentido, no jornal “A Plebe” de 20 de novembro de
1920 pode-se ler: “antes de tudo, e isso é o essencial, ela deve fazer uso do seu raciocínio
para se despir dos vãos temores, dos tolos preconceitos e dos ridículos escrúpulos que lhe
incutiu a falsa moral de Deus e da Pátria, para assim, obter o seu pensamento emancipa-do”.
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Porém, embora muitas vezes os socialistas e anarquistas tenham defendido a
emancipação da mulher, é possível encontrar, nas práticas e discursos do movimento
operário, um forte elemento sexista, com a reafirmação dos valores dominantes: a idéia de
que a mulher deve se dedicar sobretudo ao lar, cumprindo suas funções “naturais” de
esposa e de mãe, o controle de sua sexualidade, entre outros aspectos. Passo a citar alguns
exemplos deste fato.
No jornal socialista “Echo Operário”, encontra-se um artigo transcrito do periódico
português “A Voz do Proletário” com o seguinte teor: “A burguesia, as classes dominan-
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tes, a sociedade, enfim (...) deve estar orgulhosa dessa grande conquista, arrancar as filhas
do povo, a mulher do povo, do lar doméstico, onde a sua missão era toda candura e amor,
criando e educando a sua prole, preparando a frugal refeição à sua família, lavando,
compondo e fabricando o vestuário de todos, vivendo, enfim, na família e para a família.
Arrancá-la, dizíamos, a essa missão, toda candura e amor, e metê-la na oficina, na fábrica,
a fazer concorrência com o trabalho do esposo, expulsando-o do seu posto no trabalho,
reduzindo-o, e com ele a todos, à miséria, à degradação (...)”.11 Neste mesmo jornal,
afirmava-se que “as senhoras são admitidas na ‘União Operária’ com iguais direitos aos
homens, tendo as suas secções à parte e terão lei propriamente para o seu sexo, feita por
elas, quando atingirem o número capaz de organizarem-se”.12 Nos estatutos da União
Operária, uma das primeiras associações operárias do país, estabelecida na cidade de Rio
Grande, proclamava-se que “a sociedade só admitirá sócios do sexo feminino quando
comprovada a sua idoneidade”.13 Segundo o jornal paulista “O amigo do povo”, de 28 de
maio de 1904, quando uma operária do primeiro círculo anarquista no Rio de Janeiro,
durante os anos 1890, praticou a doutrina do amor livre, trocando seu parceiro amoroso, o
grupo se desintegrou.14
Tais representações podem ser percebidas também na iconografia veiculada pelos jornais
operários. Vejamos alguns exemplos: a primeira gravura (anexo 1), capa do periódico
anarquista “A Vida” de 30 de janeiro de 1914, mostra um operário vigoroso que brada pela
liberdade, mirando o céu. Sua mulher olha submissa para o chão, apoiada no ombro do
companheiro. De forma sintética, temos uma imagem simbólica da concepção vigente
que associa o homem à ação e a mulher à passividade, cabendo ao primeiro proteger e
guiar a segunda. A segunda gravura (anexo 2), capa do periódico socialista “Echo Operário”
comemorativo do primeiro de maio de 1898, fala do papel das mulheres no movimento
operário pela sua ausência. A cena mostra militantes empunhando a bandeira do socialis-mo
e mirando o sol e o pássaro, símbolos da liberdade. Nenhuma mulher aparece na imagem.
A mulher só é representada com uma atitude vigorosa quando não parece ser uma
pessoa real, mas uma alegoria, ou seja, o símbolo de uma idéia abstrata. Nas gravuras
seguintes (anexos 3 e 4) as mulheres são alegorias da liberdade que guia os povos do
mundo (constituído só de homens?!) e da civilização libertária que, empunhando as
ferramentas-símbolos do trabalho, se levanta sobre os escombros da sociedade capitalista,
representada pelas armas. Tais imagens remetem às alegorias surgidas na Revolução Fran-cesa
e que se prolongam no século XIX, como o famoso quadro de Delacroix “A liberdade
guiando o povo”, alusivo às barricadas de 1830. Em todos os casos, temos uma nova
forma de sacralização da figura feminina que substitui a imagem cristã de Maria: a
sacralização da liberdade, da razão e do saber.
Apesar deste arsenal de práticas e discursos, produzidos por membros da elite mas
também por certos setores do movimento operário, que procuravam associar a mulher
com os papéis de mãe-esposa-dona-de-casa, retritos à esfera doméstica, é possível recupe-rar
na documentação uma série de exemplos que evidenciam uma efetiva participação das
mulheres em variadas manifestações do movimento operário.
A escritora, feminista e comunista Patrícia Galvão, a Pagu, descreveu em seu romance
“Parque Industrial” uma cena que explicita a resistência das trabalhadoras às duras condições
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de vida e trabalho: “Enquanto as fêmeas da burguesia descem de Higienópolis e dos bairros
ricos para a farra das garçonières e dos clubs, a criadagem humilhada, de touquinha e
avental, conspira nas cozinhas e nos quintais dos palacetes. A massa explorada cansou e
quer um mundo melhor”.15 Além desta resistência subterrânea, tecida nas cozinhas e
quintais, as mulheres também organizaram-se e saíram às ruas para reivindicar seus direitos.
O jornal anarquista “A Terra Livre” noticiava em 1907: “Uma das classes mais
ignominiosamente exploradas, a classe das costureiras de carregação, na sua quase totalidade
de mulheres, agitam-se atualmente em São Paulo para arrancar um aumento de salário aos
seus patrões. Estes, quase todos de nacionalidade estrangeira, sórdidos e exploradores em
máximo grau, negaram-se a satisfazer o pedido das operárias. Estas declaram-se em greve
imediatamente”.16 A primeira grande greve geral do país, em 1917, contou com uma
expressiva participação de operárias. Na cidade de Pelotas, no estado do Rio Grande do
Sul, encontramos a operária Amélia Gomes discursando e “concitando as suas companheiras
a se congregarem em torno dos trabalhadores a fim de lutarem em prol da felicidade e
bem-estar de seus lares”. Dias depois, em uma assembléia na Liga Operária, discursou
outra operária da Fábrica Fiação e Tecidos, Clementina Silva Ramos, que reclamava um
aumento de salários.17
Para concretizar ainda mais a importância da participação feminina no movimento
operário brasileiro, gostaria de citar alguns exemplos de mulheres que se destacaram na
reivindicação dos direitos do seu sexo e dos trabalhadores em geral, enfatizando também
as dificuldades por que passaram. Meu objetivo não é fazer a apologia de “heroínas”, mas
destacar a atuação de algumas personagens que emergiram da opacidade do discurso do-minante
sobre o “belo sexo”.
Em primeiro lugar cito a professora e escritora mineira Maria Lacerda de Moura que se
manteve muito próxima dos anarquistas, embora tenha guardado uma certa distância em
relação a eles devido às suas convicções espiritualistas. Nascida em 1877, Maria Lacerda
escreveu livros polêmicos como “A mulher é uma degenerada?”(1924), “Religião do amor
e da beleza” (1926), “Amai e não vos multipliqueis” (1932), “Hans Ryner e o amor plural”
(1933), entre outros. Publicou também a revista “A Renascença” (1923), e realizou inúmeras
palestras nos meios intelectuais e nos círculos operários da época. Divergindo das femi-nistas
liberais, que reivindicavam sobretudo o sufrágio feminino, a personagem fundou a
Federação Internacional Feminina, em 1921, com grupos de São Paulo e de Santos. Sua
meta era “canalizar todas as energias femininas dispersas, no sentido da cultura filosófica,
sociológica, psicológica, ética, estética - para o advento da sociedade melhor”.
A emancipação feminina foi a grande meta de Maria Lacerda. Em “A mulher é uma
degenerada?”, ela contestava as concepções vigentes sobre os papéis destinados às mulheres:
“(...) protesto contras a opinião antifeminista de que a mulher nasceu exclusivamente para
ser mãe, para o lar, para brincar com o homem, para diverti-lo”. Tocava também em assuntos
tabus como a sexualidade: “a ciência costuma afirmar que a mulher é uma doente periódi-ca,
que a mulher é útero. Afirma que o amor para o homem é apenas um acidente na vida
e que o amor, para a mulher, é toda a razão de ser da sua vida, e ela põe nessa dor o melhor
de suas energias e esgota o cálice de todas as suas amarguras, pois o amor é a conseqüência
lógica, inevitável, de sua fisiologia uterina. Há engano no exagero de tais afirmações.
Ambas nasceram pelo amor e para o amor”. Finalmente, reivindicava o amor livre e o
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estabelecimento de novas relações afetivas: “Deixem o amor livre, absolutamente livre.
Homens e mulheres encontrarão, nas leis biológicas e nas necessidades afetivas e espirituais,
o seu caminho, a sua verdade e a sua vida... A solução só pode ser individual. Cada qual
ama como pode...”. Ou ainda: “Por que só divinizar a Maternidade dentro do casamento
legal? (...) Aceitar um senhor imposto pela religião, pela lei ou pelas conveniências é que
é imoralidade”.18
Sobre a libertária Agostina Guizzardi temos menos referências: no início desse século,
na cidade de Rio Grande, ela lecionava, proferia discursos, escrevia. No jornal “O Proletário”
de 28 de janeiro de 1906, os redatores recomendavam aos operários a escola de italiano e
português que seria inaugurada pela “companheira” Agostina Guizzardi. Ela também
escreveu peças teatrais como “A Honra Proletária” e “Amor e Ouro”. Atuando na União
Operária, não deixava de criticar os seus líderes, sem recear “melindrar a quem quer que
seja”. Em um artigo, critica a diretoria da União por dar conotação patriótica a uma festa
realizada em homenagem a um marinheiro português de passagem pela cidade, o que
afrontaria a idéia de internacionalismo da luta proletária: “Ignorava talvez a comissão
promotora que o talento é cosmopolita e a União Operária uma associação internacional?
Esqueceram-se de que festejavam um filho do povo distinto, e não a nacionalidade portu-guesa?”.
O final do seu texto talvez aponte para o isolamento das vozes femininas no
âmbito do movimento operário: “Sabemos perfeitamente que falamos no deserto, mas
mesmo assim gritaremos cada vez mais, na esperança que no meio da aridez da
inconsciência, ligada à mais imperdoável apatia, existe ainda alguns oásis, verdejantes de
dignidade no pleno sentido da palavra. Às vezes, tanto se grita, até que alguém se acorda”.19
Finalmente destaco a trajetória de Laura Brandão, conhecida principalmente como
mulher do militante Octávio Brandão, um dos fundadores do Partido Comunista do Brasil.
Mais recentemente, através do primoroso trabalho de Maria Helena Berdardes, foi possível
ultrapassar a idéia de que “por trás de um grande homem há sempre uma grande mulher”,
e conhecer melhor a grandeza da militância de Laura. Ela nasceu em 1891, era professora,
escritora e militante. Segundo seu marido, era quem “auxiliava o companheiro a carregar
a cruz. Afastava as pedras do caminho. Arrancava os espinhos”. Ou então: “... a inspiradora,
a animadora e a cooperadora. Acompanhou-me aos sindicatos, auxiliou-me no trabalho de
massas...”.
No que tange à questão da mulher, não consta que Laura tenha participado de algum
grupo ou associação feminista. Contudo os registros mostram que ela não ficou fora do
debate instaurado no período. Com a publicação de seu livro “Meia Dúzia de Fábulas”,
em 1917, a escritora deliciosamente desmascara o falso moralismo em relação às mulheres.
A fábula “Sociedade Protetora”, por exemplo, conta a história de um terreiro onde as
galinhas com seus pintinhos e frangas amargam a “sobra da miséria”, provocada pelo luxo
das marrecas. Decide-se então, no terreiro, criar uma Sociedade Protetora do “sexo fraco”,
com a ajuda dos patos - jornalistas - que promovem grandes festas para arrecadar dinheiro.
No final, a “marreca mor” é eleita presidente da sociedade.
Através da fábula a autora criticava a sociedade capitalista, que sustenta o luxo de
poucos a custa da miséria de muitos, e as artimanhas da política, representada pela eleição
da “marreca mor”. Segundo seu marido, a publicação desta historieta resultou no fechamento
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de uma associação criada por damas cariocas, que tinha como objetivo “proteger” a mulher.
O escândalo devia-se sobretudo ao fato de ter sido escrita por uma mulher. Algumas filhas
de famílias “respeitáveis” foram proibidas de ler seus poemas.
Apesar de seu trabalho em prol da causa comunista, Laura mantinha uma relação tensa
com a estrutura partidária. Por exemplo, embora editasse as cartas dirigidas ao jornal “A
Classe Operária”, seu trabalho não era divulgado.Como afirma Bernardes: “Mais uma
vez, assistimos a direção do PCB ocultando o trabalho da militância feminina (...). Apesar
de Laura ter sido uma militante ativa e dedicada, sua recusa em filiar-se ao partido parece
nos mostrar que o compromisso dela era com o comunismo e não com o PCB, inclusive
porque o Partido não dava espaço efetivo de igualdade para as mulheres. Sua atuação é
claramente demarcada pelos movimentos de solidariedade (...), ou às atividades ligadas à
cultura e à literatura, embora seu nome não aparecesse. As tarefas que davam a ela maior
visibilidade eram as atividades de agitação e propaganda mas, como podemos constatar,
todas as tarefas que ela executava eram fora da estrutura partidária, portanto, fora da esfe-ra
do ‘poder’ interno do PCB”.20
A partir destes fragmentos biográficos de mulheres ligadas ao movimento operário
brasileiro, é possível extrair algumas conclusões. Primeiro, existiam mulheres que não se
conformavam com o papel que lhes era destinado: o de esposa-mãe-dona-de-casa, cir-cunscrito
à esfera do lar. Muitas ingressaram na vida pública através de diferentes canais.
As três personagens citadas eram professoras, o que parece demonstrar que o magistério
era um trabalho socialmente aceito para o sexo feminino, já que ele se aproximava bastan-te
da maternidade. Porém não deixava de ser também uma forma de “sair de casa”. Todas
eram escritoras: a literatura era uma forma fundamental de expressão feminina, embora
na maioria das vezes apenas alguns gêneros fossem permitidos às mulheres: as poesias
românticas e castas, a prosa fútil e ligeira. Porém, através dela, como demonstram os
exemplos acima, era possível manifestar anseios, tomar posições, levantar a voz. Final-mente,
o movimento operário também oferecia um espaço para a contestação dos valores
e da moral patriarcal. Embora as discriminações estivessem muito presentes, como o caso
de Laura Brandão bem demonstra, estas personagens associaram a causa da libertação da
mulher com o projeto mais amplo de emancipação social, anarquista ou comunista.
Professoras, escritoras e militantes... estas mulheres não foram apenas “companheiras”,
mas ativas participantes das lutas dos trabalhadores brasileiros.
Concluindo, gostaria de ressaltar que os trabalhos recentes vêm demonstrando a
inexistência de uma essência ou natureza feminina, e apontando para a variabilidade his-tórica
e social dos papéis desempenhados por mulheres. Estas, em diferentes épocas,
manifestam anseios, calam, gritam, reivindicam, se submetem, resistem dentro de um
campo de possibilidades historicamente limitadas. Este foi o caso das mulheres que de
formas diversas atuaram no movimento operário brasileiro entre 1889 e 1930. Algumas
deixaram sua voz para a posteridade, outras foram reduzidas ao silêncio. Espero que este
trabalho tenha contribuído para tornar mais claras as suas vozes.
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ANEXO 1 - fonte: jornal “A Vida”, 30/01/1914.
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ANEXO 2 - fonte: jornal “Echo Operário”, 01/05/1898.
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ANEXO 3 - fonte: jornal “Avanti!”, 01/05/1901.
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ANEXO 4 - fonte: jornal “A Plebe”, 27/05/1922.
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NOTAS
1 Apud RIBEIRO, Maria Alice Rosa. Condições de trabalho na indústria têxtil paulista (1870-1930). São
Paulo, Hucitec/UNICAMP, 1988.
2 Apud SILVA, Maria Amélia Gonçalves da. Rompendo o silêncio: a participação feminina no movimento
operário de Rio Grande-Pelotas (1890-1920). Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre, PUCRS, v. XXII,
n. 2, dezembro 1996, p 158.
3 RODRIGUES, Edgar. Alvorada operária: os congressos operários no Brasil. Rio de Janeiro, Mundo
Livre, 1979.
4 RAGO, Margareth. Trabalho feminino e sexualidade. In: PRIORE, Mary Del. História das mulheres no
Brasil. São Paulo, Contexto/UNESP, 1997. p. 585.
5 Citado por RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar, Brasil 1890-1930. Rio
de Janeiro, Paz e Terra, 1985. p. 79.
6 Citado por CUNHA, Maria Clementina Pereira. O espelho do mundo: Juquery, a história de um asilo.
Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986. p. 143.
7 Citado por RAGO, M. “Do cabaré...”, op. cit., p. 93.
8 Jornal “Echo Operário”, 19/02/1899. p. 1.
9 Transcrito no jornal “Echo Operário”, 01/05/1898. p. 2.
10 Citado por RAGO, M. “Do cabaré...”, op. cit., p. 98.
11 Jornal “Echo Operário”, 17/10/1897. p. 1.
12 Jornal “Echo Operário”, 20/09/1896. p. 2.
13 Estatutos da Sociedade União Operária. Rio Grande, Tipografia do Diário do Rio Grande, 1903. p. 5.
14 Citado por RAGO, Margareth. Relações de gênero e classe operária no Brasil, 1890-1930. Caderno
espaço feminino. Núcleo de Estudos de Gênero e Pesquisa sobre a Mulher da Universidade Federal de
Uberlândia. p. 22.
15 Citado por RAGO, M. “Trabalho feminino...”, op. cit., p. 594.
16 Citado por RAGO, M. “Do cabaré...”, op. cit., p. 72.
17 Citado por SILVA, M. A. G. “Rompendo o silêncio...”, op. cit., p.p. 159-60.
18 Citações extraídas de RAGO, M. “Do cabaré...” e “Trabalho feminino...”, op. cit.
19 Citações extraídas de SILVA, M. A. G. “Rompendo o silêncio...”, op. cit.
20 BERNARDES, Maria Elena. Laura Brandão: a invisibilidade feminina na política. Campinas, UNICAMP.