1839
MEMÓRIA RURAL EM DIMENSÃO
ARQUITETÔNICA:
ARQUIPÉLAGO CANÁRIO E BRASIL.
Manoel Lelo Bellotto
Neide Antonia Marcondes de Faria
O orbe ibérico, compreendido e articulado pela complexa urdidura social, étnica,
cultural, política, econômica, geográfica, ideológica atual, pode ser vislumbrado em um
legendário dia de outubro de 1492, quando são lançados os estigmas, as inquietações,
expectativas e esperanças do seu permanente tormento histórico, que predomina, ainda
hoje, no conjunto das organizações nacionais da Ibéria além Europa.
Na América, decorridos 500 anos desse momento trágico e transcendental, centenas de
milhões de indivíduos são iberohablantes; os países que dão forma à ampla e extensa
comunidade ibérica estão integrados no mundializado processo da globalização, agindo,
vivendo e procedendo de acordo com as regras inerentes ao sistema; referidos estados
detém amplos espaços geográficos, em parte exauridos das riquezas minerais que os
caracterizavam, mas detentores de grandes reservas de um dos bens-desafios do século XXI:
a água; a estrutura étnica dessas nações, de um modo geral, é caracterizada pela mescla do
ameríndio, do negro e do branco, com forte aportação do elemento asiático.
Sob o prisma cultural, será lícito indagar qual terá sido o processo de organização da
vida cotidiana destas populações, que experimentaram um ritmo de crescimento numérico
permanente e progressivo no decorrer destes longos últimos cinco séculos, e que lhes
permitiu o usufruto das benesses e inquietações inerentes ao mundo em que vivemos.
Fixar a dinâmica da transferência e da transposição, para a América, dos bens culturais
acumulados no decorrer do tempo pelo homem ibérico europeu, disseminado pelas terras
de Espanha, Portugal e Canárias, é a meta/objetivo do presente texto. Buscar compreender
se a transposição de tais elementos da cultura material, em particular daqueles que se
referem às formas arquitetônicas de produção rural, implicou numa fidelidade ao modelo
original ou se ocorreu uma semantização formal, ditada pelo tempo e por exigências locais.
Em face da continental extensão do território americano, fez-se necessário restringir a
área de análise ao Brasil. E neste imenso país, de 8.500.000 km² de área geográfica, a
abordagem temática elegeu o Estado de São Paulo, o de maior contigente populacional e
detentor do mais expressivo potencial e desempenho econômico do Brasil.
Esta argumentação conduz ao sucinto estudo e à análise do mega processo da
transferência humana européia para além Atlântico, ou seja, do movimento emigratório
maciço para a América, em geral, e para o Brasil, em particular, surto desencadeado no
século XIX, mais propriamente nas suas três últimas décadas.
Este processo emigratório delineia e consolida no agente que lhe dá vida e expressão -o
migrante- uma de duas facetas, excludentes entre si: ou a desidentificação do indivíduo
XIV Coloquio de Historia Canario Americana
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com as suas origens ou a consolidação, fortalecida e consistente, dos procedimentos
culturais multiseculares do conjunto humano que ele integrou, do seu etos, que são o
resultado do exercício e da assimilação de postulados sociais, políticos, artísticos,
ideológicos, religiosos, familiares, culturais e do viver cotidiano do seu grupo.
As transformações que se operam na vida econômica e social do Brasil, em geral, e na
de São Paulo, em particular, na segunda metade do século XIX, explicam e justificam o
êxito do processo emigratório para esta parte da América (B.Fausto,1999). Entre tais
transformações, cumpre destacar a introdução das linhas férreas; o crescimento
demográfico e, portanto, do mercado consumidor interno; o intenso desenvolvimento da
cultura cafeeira como decorrência do crescente vulto e volume da exportação do café; o
fim da Guerra do Paraguai; a implantação institucional do regime republicano; e,
sobretudo, a abolição da mão-de-obra escrava, responsável pela desorganização da
atividade agrícola, a do cultivo do café, em particular.
Há uma outra vertente que explica o robustecimento do processo emigratório para o
Estado de São Paulo, a partir das duas últimas décadas dos oiotocentos: facilitou-se ao
emigrante o acesso à propriedade da terra, por meio da constituição de núcleos rurais no
interior do Estado, onde era permitido ao estrangeiro adquirir o seu próprio lote de terra
(Bellotto,1982). Desta forma, os núcleos ensejaram a identificação do emigrante, agora
mais seguro por força da sua condição de proprietário, com a nova terra de adoção. Ali, o
emigrante pode dedicar-se, a par da sua condição de mão-de-obra vinculada à lavoura
cafeeira, ao cultivo do milho, feijão, de legumes, das hortaliças, frutas e uvas, para
consumo próprio e para a comercialização; o emigrante “abrasileirou-se”, por fim.
E.E.González Martinez (1999), em criterioso ensaio sobre a imigração espanhola no
Brasil, ressalta que Argentina e Cuba, no período que vai de 1882 a 1930, receberam em
torno de 82% dos emigrantes espanhóis que se deslocaram para a América Ibérica. Os 18%
restantes se encaminharam para as demais -e inúmeras- repúblicas da América Espanhola e
para o Brasil, o único, entre as nações ibero-americanas, lusohablante.
A vinda de canários para o Brasil, para São Paulo em particular, nas últimas décadas do
século XIX, deve ser considerada em um contexto mais amplo da emigração procedente do
Arquipélago Canário, cujo destino era a América, tema este que é preocupação intelectual
constante do historiador J. Hernández García (1978).
Para a compreensão plena do processo emigratório canário, é indispensável recorrer aos
resultados de um inquérito realizado por uma “Comisión Especial para estudiar las
medidas de contener en lo posible la emigración por médio del desarrollo del trabajo”, na
década de 1880; constata-se que os contingentes de emigrantes eram tão grandes, que se
impunha contê-los e retê-los nas Ilhas, sob pena de elevados prejuízos para a economia e
para o perfil social das Canárias. É possível fixar as razões determinantes que explicam,
nesse momento histórico, o acentuado quadro emigratório nas Canárias:
1. grande índice populacional e a alta densidade demográfica, característica da Europa
rural no último terço do século XIX, situação que abrangia também as Canárias, cuja
condição insular tornava mais dramática a ausência de áreas de expansão;
Memoria rural em dimensão ãquitetónica: Archipélago Canario e Brasil
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2. esta situação demográfica chocava-se com a inquietante diminuição dos postos de
trabalho nos campos, pois a viticultura canária, no período, estava parcialmente
comprometida por epidemias agrícolas recorrentes;
3. a redução acentuada do aproveitamento da cochinilla, área de atividade que absorvia
grande contingente de trabalhadores canários. O usufruto deste pequeno inseto era
atividade próspera nas Ilhas Canárias, pois abastecia mercados mundiais necessitados
de tintas corantes. A expansão do uso, produção e emprego das anilinas sintéticas, no
entanto, nas últimas décadas do século XIX, foi responsável pela acentuada queda do
interesse internacional pela cochinilla (Bellotto,1989).
Pesquisas realizadas junto ao Arquivo da Hospedaria dos Imigrantes, em São Paulo
(Bellotto,1989), permitiram fixar o destino e o perfil do emigrante canário que chegou a
este Estado do Brasil, na última década do século XIX e na primeira do XX. Esta população
canária foi parcialmente encaminhada para fazendas localizadas no interior do Estado, para
o trato agrícola do café. Esta região interiorana configura um grande quadrilátero,
integrado pelos atuais -e ricos- municípios de Brotas, Sorocaba, São Roque, Campinas, Rio
Claro, Mogi-Mirim, Descalvado, Limeira, São Carlos, Araraquara, Piracicaba, Ribeirão
Preto e Casabranca, entre outros. Desse total de emigrantes, apenas 3% se disseram não-espanhóis,
embora tenham afirmado residir há muito nas Ilhas. 85% agrupavam-se em
famílias, que eram constituídas em média por 5/6 indivíduos; 15% viajaram solitariamente
para São Paulo. Do total, 57% pertenciam ao sexo masculino, crianças incluídas, e 42% ao
feminino; 60% tinham 12 ou mais anos de idade, enquanto os demais 40% situavam-se
aquém dos 12 anos: dentre os primeiros, havia uma predominância de homens e mulheres
com idades que variavam dos 18 aos 30 anos. Tal constatação evidencia a angustiante
certeza de que a emigração drenava os “bons braços” para o trabalho nas Ilhas. A
totalidade dos emigrantes, à exceção de 0,5% -de árabes e indianos- declarou-se católica;
por outro lado, uma escassa minoria tinha acesso à leitura e à escrita.
A grande maioria dos emigrantes declarou ser agricultor ou lavrador, tendo sido
deslocada, como se afirmou acima, para a faina agrícola em grandes propriedades do
interior do Estado de São Paulo; ponderável parcela, no entanto, permaneceu adstrita ao
setor urbano, em cidades maiores como a capital São Paulo ou mesmo o porto de Santos,
para o desempenho de funções, trabalhos ou tarefas como as de pintor, seleiro, carroceiro,
tecelão, sapateiro, costureiro, alfaiate, carpinteiro, padeiro e outras ligadas ao comércio, em
geral. Para além destas funções e “especialidades”, há outras declaradas, que se faz
oportuno seu registro: cocheiro, artista(sic), caldeireiro, ferreiro, escultor(sic), cozinheiro,
açougueiro, eletricista(sic), marinheiro(sic), confeiteiro, marceneiro, marítimo(sic),
moleiro, paneleiro e músico(sic). As mulheres, na sua quase totalidade, desempenhavam,
ademais dos trabalhos domésticos, atividades agrícolas (Bellotto,1989).
A exposição supra permite afirmar ser lícito inferir e concluir que a emigração canária
para o Estado de São Paulo não buscou se reger por leis próprias, embora tenha sido gerada
por tensões internas das Ilhas, situação constatada também em outras áreas geradoras de
emigração. O fenômeno emigratório canário é antes, e portanto, um dos segmentos
significativos -não importando seu peso e sua extensão- que se integra a um movimento
muito mais amplo, regido por interesses e necessidades sociais, políticos, econômicos e
culturais de continentes em confronto, em um mundo em mutação, o mundo de transição
do século XIX para o século XX.
XIV Coloquio de Historia Canario Americana
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A concepção epocal do historiador como produtor, isto é, como trabalhador da cultura,
só se manifesta de forma eficiente quando explica e divulga uma história inserida nas
modificações histórico-estético-sociais e com programação para o contexto sócio-econômico
contemporâneo. É preciso estar atento para a rápida desagregação e dissipação
voluntária do ambiente, que transforma ou desaparece como as vilas, as propriedades, os
espaços fabris e rurais. Os acervos que restaram nem sempre recebem interpretação
significativa; é raro que grupos sócio-político-administrativos se sensibilizem pelo trabalho
acumulado numa vila fabril, no casario, na colônia, nas construções de produção rural.
Os procedimentos e formas da arquitetura são considerados, como nos demais produtos
artístico-culturais, elementos de uma linguagem. A associação dos índices descritivos das
construções de trabalho na arquitetura rural paulista aos modelos ibéricos, canários em
particular, indica o processo de transposição e ajustamento, adaptação e semantização da
arquitetura de produção. A riqueza de variedade da arquitetura rural, sua tipologia, a
desconhecida mão-de-obra artesanal têm significativo valor vernacular, quando então
soluções construtivas se perpetuam em muitas gerações, em processo lento de mutação, no
seu protótipo e em sua obra impessoal. Como ressalta Michel Maffesoli (1995), nunca é
demais insistir na nobreza da vida cotidiana de trabalho, de infinitas facetas do espírito, do
estilo, da época. O lugar cotidiano de um estilo não se reduz à função de puro utilitarismo
mas sim, ao estilo de vida, estilo de atividade, estilo de felicidade, que enfatiza o aspecto
orgânico das coisas; o íntimo, o individual adquirem mais importância na constituição da
vida social. A conjunção de formas em transmutação em novas imagens, por meio de
modulações, adaptações, expressões locais, sensibilidades afetuais faz união com a
alteridade (Marcondes,1999).
Farta é a literatura que expressa a preocupação constante com os estudos sobre as
construções rurais, construções de trabalho, como casas de cereais, sequeiros, eiras,
abrigos, moinhos, horreos e olarias. Publicações revelam o interesse com a continuidade
dos cultivos tradicionais e com a conservação da mão-de-obra regional, mesmo diante da
ampliação da comunidade econômica. A estreita vinculação da arquitetura com fatores
geográficos, condições sócio-econômicas, organização de serviços, por vezes torna-se
difícil de ser apreendida nos edifícios reconhecidos como eruditos. A arquitetura erudita
sempre foi mais sensível à mutação dos estilos; a popular possui uma imobilidade que
tende a conservar as formas consagradas de eficácia comprovada.
A arquitetura rural brasileira, a de São Paulo em particular, assim como a arquitetura
rural canária, no encontro de modelos se articulam com a realidade ecológica, econômica,
social e antropológica, realidade diferenciada e adaptada às necessidades condicionantes
regionais. Nesse espaço rural paulista e canário identifica-se o aparecimento de dois tipos
de arquitetura: uma “culta”, de modelos importados, e outra “popular”, mais próxima de
um nacional-folclorismo. A classe artesanal alcançou um desenvolvimento notável e
significativo ao transpor os modelos cultos e ao elaborar os modelos populares.
Cumpre formular um outro paralelismo de destaque: nas Canárias atuaram mestres-de-obras
andaluzes, engenheiros militares e artistas “ilustrados” além fronteiras (Flores,1977),
que aplicaram seus conhecimentos nos edifícios religiosos, civis e militares -tenha-se como
exemplo os modelos culturais procedentes da Ilha da Madeira, chamados
“portuguesismos”-; em São Paulo comprovou-se a efetiva presença de mestres-de-obras,
engenheiros militares e especialistas em arquitetura procedentes da Europa ibérica,
presença reforçada na segunda metade do século XIX por aqueles vindos da península
Memoria rural em dimensão ãquitetónica: Archipélago Canario e Brasil
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itálica, nas edificações das áreas rurais e nas urbanizações marginais, que também
apresentam certo grau de mimesis da arquitetura urbana.
Nas formas arquitetônicas rurais da região paulista, curiosas construções, como os
horreos da Galícia e os sequeiros de Portugal, são notadas em pequenos edifícios que
serviam, e ainda servem em parte, como “graneiros”, e que para evitar o assalto de ratos
estão construídos em forma de cabana de madeira ou pedra, como verdadeiros templetes
sobre altos pilares redondos, que tem a função de impedir os passos dos animais ao longo
das colunas. Essas construções, que aparecem sustentadas sobre pilotis, assumem
características de involuntária modernidade (Marcondes,1995).
A preocupação com a displicência que se apossou das gerações paulistas, contribuindo
para a destruição de parte do patrimônio histórico rural, e conhecendo a significativa
transposição de formas oriundas do exterior e situações de adaptação à topografia, às
condições climáticas, à eleição dos produtos agrícolas, foram destacados para este estudo,
para a análise comparativa das formas:
* levantamento de núcleos rurais canários e paulistas;
* o programa das propriedades rurais:
as construções secundárias de trabalho: estábulos, armazéns, tulhas, moinhos, olarias;
habitação de trabalhadores;
o espaço religioso;
* a casa-sede canária e paulista:
os elementos estruturais e de acabamento;
os elementos constitutivos e de organização espacial;
soluções plásticas.
Núcleos rurais
O núcleo rural constitui um tipo de habitat bastante comum no Estado de São Paulo,
onde uma unidade de povoamento é formada por conjunto de habitações que, no caso
paulista, surgiu no século XIX, ligado a três fatores básicos: desmembramento de terras,
estabelecimentos de núcleos coloniais e colonização espontânea formada por elementos
vindos de outras regiões, atraídos pela tomada de posse. O desenvolvimento econômico do
imigrante propiciou a divisão das grandes propriedades rurais e a formação de
núcleos/bairros rurais, que ocuparam especialmente as regiões do centro oeste paulista e a
porção oeste ao longo dos rios Tietê, Piracicaba e seus afluentes. O núcleo rural é variável
em suas dimensões, formas e campos e apresentam variedade de serviços, que se fazem
presentes nas igrejas, escolas, armazéns, nos caminhos rurais e na cultura agrícola. O setor
rural dos municípios de Piracicaba, Tietê, Capivari e Campinas possui áreas desligadas de
antigas fazendas de cana-de-açúcar, de café e de produtos de subsistência. Tem-se por
exemplo significativo, o núcleo da antiga Fazenda Pereiras, de Campinas - São Paulo, com
colônia de trabalhadores, construções de trabalho, casa-sede, casa para lavradores, capela e
campos agrícolas. (Fig.1)
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Nas Canárias, são encontradas formas típicas de aglomerações rurais, com casas,
plantações, pátios cobertos por vegetação e articulações com eixos ao redor, constituindo-se
em caminhos. Há exemplos pertinentes em San Bartolomé de Tirajana, Gran Canaria, e
em El Juncal, Arucas. Em Arure, Gomera, são conhecidos os agrupamentos rurais de
caráter elementar, que buscam formas arquitetônicas com perfeita adaptação ao meio,
assentadas em amplos vales, protegidas dos ventos. (Fig.2)
Tem-se como exemplo de desmembramentos de grandes fazendas, com casarios,
plantações, colônias de lavradores e capela, o núcleo do Valle de Guerra, Tenerife. (Fig.3)
O programa das propriedades rurais
Nas últimas décadas do século XIX, os cafezais invadiram o antigo sertão paulista. Nas
regiões de Campinas, Itatiba, Morungaba, propriedades revelam em seu programa a fase da
penetração do café, com casa-sede, casa das máquinas, colônia, terreiro, tulha, olaria,
estábulo, curral, fonte de água e aqueduto.
Fazendas/engenhos, originalmente dedicadas ao cultivo da cana-de-açúcar, apresentam
também a casa de engenho, casa de purgar, antigas senzalas, monjolo, alambique e ca
ldeiras. Em muitas propriedades do interior paulista, o programa contempla a chamada
solução mista; as construções de trabalho do engenho foram adaptadas para o cultivo do
café, com tulhas e terreiro à frente. A concentração das construções junto à casa-sede
facilitava a vigilância. O administrador tinha a sua casa construída próxima à colônia. O
termo colônia adquiriu o significado de conjunto de habitações para moradia das famílias
dos colonos/lavradores (Marcondes,1995). V. Fazenda Sete Quedas, Estrada de Itu, e casa
de tropeiro, em Porto Feliz. (Figs.4 e 5)
Nas Canárias, interessante notar também no programa das propriedades rurais, as
fazendas, além da casa-sede, o conjunto da casa dos lavradores, com a fonte/poço como
exemplo típico do casario tinerfeño em El Cascajo, Tenerife. (Fig.6)
Outro conjunto de casas, de construção caracteristicamente primitiva, contém um pátio
interno e conjunto de telhados, com telhas de barro tipo capa-canal. V.Chiguergue,
Tenerife. (Fig.7)
As chamadas “casas de postas”, de planta baixa, com varandas denominadas
“alpender”, ostentando suportes de madeira conhecidos por “esteyos”, com capitéis
trabalhados, disseminavam-se ao longo dos caminhos reais. V.La Palma. (Fig.8)
São muitos os exemplares paulistas que apresentam as mesmas características formais,
como a casa do Sítio do Padre Inácio, em Cotia, São Paulo. (Fig.9)
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Em La Palmita, na Gran Canaria, faz parte integrante do programa das fazendas o
conjunto de estábulos e armazém, para reserva de cereais, junto à casa senhorial da
propriedade. (Fig.10)
Entre as construções de trabalho, o moinho d’água e o forno para cozimento das telhas
fazem parte do programa das propriedades. Como exemplo, o moinho d’água em Gran
Canaria. Em Mogán, também na Gran Canaria, temos o forno tradicional, com uma só
câmara, e paredes de pedras colocadas sem grande regularidade, devido ao seu caráter de
construção complementar. (Figs.11 e 12)
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Em São Paulo é possível identificar moinho e forno para cozimento de telhas e tijolos,
na região de Itapecerica da Serra. (Figs.13 e 14)
Junto às mansões das grandes fazendas está representado o espaço religioso, a capela, que
aparece em primeiro plano, defronte à aguada, como se pode observar na fig.3.
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A casa-sede
A casa-sede da fazenda paulista constituiu-se, nas últimas décadas do século XIX, em
cópias adaptadas da arquitetura dos grandes centros urbanos. Freqüentemente as famílias
brasileiras chamavam os mestres-de-obras para a construção ou reforma dos edifícios
rurais. Se nos pedidos e documentos para as construções urbanas não estão claras as
atribuições dos empreiteiros, mestres, construtores, na área rural não constam solicitações e
contratos de construções.
A identificação com o gosto europeu expressa-se pela rejeição das formas
condicionadas à sociedade rural da época. O espaço interno da casa-sede do proprietário
rural paulista apresenta-se com planta em forma de L ou U, com ala dos quartos, a sala na
parte fronteiriça, e na parte posterior a cozinha e despensa. A varanda, sala de refeições e
lazer da família ocupam a parte central. A zona de culto apresenta-se em algumas
propriedades com espaço próprio; em outras está representada em nichos para oratórios,
sobre móvel da época. V. Fazenda São Pedro, em Piracicaba. (Fig.15)
A referência supra ao gosto europeu denota a transposição para o interior paulista de
exemplares arquitetônicos rurais, como os existentes em Teguise, Lanzarote, exemplar este
de casa com pátio central, rodeado por galerias com dois andares ou pisos, e em
Puntallana, La Palma. (Figs.16 e 17)
Tais edificações são em sistema modular em L ou C, tendo pátios e galerias com função
de proteção da família; no andar superior estão os dormitórios e salas e a cozinha, no
pavimento térreo, muitas vezes apoiada sobre o terreno, no aproveitamento da topografia.
Interessante o forno como elemento funcional, com a boca adentrando o espaço da
vivenda. V. Lanzarote. (Fig.18)
Na fazenda paulista São Pedro, em Piracicaba, nota-se uma construção anexa à cozinha,
para abrigar o forno. (Fig.19)
Nas Canárias são usadas, para as construções, a pedra, a “mamposteria” basáltica e
aglomerados com areia vulcânica, denominados tobas. A típica cobertura em quatro
águas, dispõe de telhas de barro, em capa-canal. Um exemplo tardio de casa senhorial
mostra típica distribuição do espaço em L, com a balcões abertos e voltados para o
pátio,estando a cozinha junto ao piso térreo. V. La Palmita, Gran Canaria. (Fig.20)
Na arquitetura rural paulista, embora a forma do espaço arquitetônico seja semelhante,
foi necessária uma adaptação de material e mão-de-obra local. O material para a
construção de alicerces e paredes está caracterizado pelo uso restrito da pedra, que
encontra seu correspondente no uso do barro, sistema taipal, para as casas mais simples e
mais antigas, e de tijolões para as casas mais recentes. O telhado, geralmente de quatro
águas, é coberto por telhas de barro, tipo capa-canal. Os elementos estruturais, em madeira,
são trabalhados, como nos esteios, escadas, balcões, forros, portas e janelas, com desenhos
lavrados. Como exemplo, temos a fazenda Boa Vista, em Tietê, e a fazenda Murungaba, na
região de Piracicaba. (Figs.21 e 22)
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Soluções Plásticas
Nas Canárias, a madeira básica para a elaboração de esteios, escadas, forros, balcões, é
o pino canário; são usados também os fibrosos troncos de palmeira. Nota-se o refinamento
e a elegância no trabalho dos pilares em madeira, com os capitéis. V. San Nicolás,
Tenerife. (Fig.23)
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No trabalho da arquitetura popular canária, destaca-se a mão-de-obra do artesão,
desenvolvendo interessantes formas de desenhos em balcões corridos, janelas, portas,
divisórias e assoalhos. Temos por exemplo o modelo de Teseguite, Lanzarote. (Fig.24)
Há modelo significativo também em Valsequillo, Gran Canaria. (Fig.25)
O trabalho de carpintaria artesanal também é notado no “tablazón” localizado em
balcões, treliças e em “gelosias”. V. El Socorro, Tenerife. (Fig.26)
Na região de Piracicaba, em São Paulo, nota-se o trabalho em madeira, no caso, fixada
como uma parede. São os exemplares paulistas: propriedade Paulo Pereira, Tietê, os
anexos para engenho da cana e o sequeiro/horreo, da fazenda São Pedro, Piracicaba.
(Figs.27 e 28)
Quanto ao revestimento e pintura das casas, algumas propriedades rurais canárias
deixam à vista as qualidades plásticas da “mamposteria”; outras são caiadas, com as partes
em madeira como portas e janelas pintadas em fortes tons de azul e vermelho. Em outros
modelos encontramos a pintura das paredes em cor ocre, combinando com a cor natural
das madeiras, que contrastam com as massas vegetais. V. Mogán, Gran Canaria. (Fig.29)
Motivos geométricos coloridos ornamentam as paredes de casas rurais, vistos como
decoração de vestígios aborígenes. V. Fagajesto e Artenara, Gran Canaria. (Fig.30)
Interessante ressaltar que na pequena cidade paulista Cananéia, junto ao mar Atlântico,
são notados modelos de casas térreas, com figuras geométricas em tons de azul e verde,
ornamentando as fachadas das edificações da antiga aldeia paulista. V. Cananéia, São
Paulo. (Fig.31)
É possível concluir a presente análise, com a arguta e sensível observação detectada na
obra Arquitectura Popular Española (Carlos Flores,1977) para explicar a progressiva
deterioração e provável extinção da arquitetura rural tradicional canária. Tal poderá ocorrer
pela ação conjunta de mudanças das bases sócio-econômicas da região; das alterações
ecológico-econômicas que tornaram raro o uso de materiais tradicionais empregados nas
construções; o evoluir da tecnologia, que ensejou o aparecimento de novos materiais; e,
sobretudo, as mudanças culturais, que fortaleceram as sociedades de consumo. O que causa
impacto, é que esta reflexão, este pensamento e esta projeção de natureza sócio-cultural
aplicam-se, sem alteração, ao caso brasileiro, paulista em particular.
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OBSERVAÇÕES
1. Os Autores da presente Comunicação, Manoel Lelo Bellotto e Neide Antonia Marcondes de Faria,
Professores Titulares nas áreas de História e História da Arte, respectivamente, são Professores
Credenciados junto ao Curso de Pós-Graduação em Artes, da Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo-USP/Brasil.
2. A parte iconográfica relativa aos exemplares paulistas é de autoria de Neide Antonia Marcondes de
Faria; a referente aos exemplares canários é a que ilustra a obra La Arquitectura Popular Española, de
Carlos Flores.
3. A apresentação da Comunicação em sessão do Colóquio far-se-á acompanhar da projeção de
diapositivos/slides.