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Núm. 50 (2004) 219 68 AS ILHAS ATLÂNTICAS. PARA UMA VISÃO DINÂMICA DA SUA HISTÓRIA AS ILHAS ATLÂNTICAS. PARA UMA VISÃO DINÂMICA DA SUA HISTÓRIA P O R ALBERTO VIEIRA O Atlântico não é só uma imensa massa de água, polvilhada de ilhas pois está associado a uma larga tradição histórica. Foi na Antiguidade que recebeu o nome de baptismo. As ilhas foram e continuam a ser o principal pilar e o mar o traço de união. Estamos perante um conjunto de ilhas e arqui-pélagos, relevantes no processo histórico, quase sempre como intermediários entre litorais dos continentes europeu, africano e americano. Anicham-se, de um modo geral, junto da costa dos continentes africano e americano. Apenas os Açores, Santa He-lena, Ascensão e o grupo de Tristão da Cunha se distanciam dela. Desde o pioneiro estudo de Fernand Braudel1 que às ilhas foi atribuída uma posição chave na vida do oceano e do litoral dos continentes. Segundo Pierre Chaunu2, foi activa a intervenção dos arquipélagos da Madeira, Canárias e Açores, o Mediterrâneo Atlântico, na economia europeia dos séculos XV e XVII3. 1 O Mediterrâneo e o Mundo Maditerrânico na Época de Filipe II, 2 vols., Lisboa, 1984 (1ª edição em 1949). 2 Sevilla y América. Siglos XVI y XVII, Sevilha, 1983 [Estudo abreviado dos 14 volumes de Séville et l’Atlantique y del Pacifique des Ibériques, 1949, 1955-60]. 3 Confronte-se nossos estudos: Comércio Inter-insular nos séculos XV e XVI. Madeira, Açores e Canárias, Funchal, 1987; Portugal y las Islas del At-lántico, Madrid, 1992. 220 ANUARIO DE ESTUDIOS ATLÁNTICOS 2 ALBERTO VIEIRA O Atlântico pode ser considerado uma invenção europeia dos séculos XV e XVI, articulando-se directamente com as políticas coloniais das potências emergentes. A partir daqui estabeleceu-se, em ambos os lados do oceano, um vínculo directo entre ilhas e áreas costeiras. A História, a Geografia marcaram a vida do oceano nos últimos cinco séculos4. A partir do século XV foi um espaço privilegiado para os impérios europeus onde as ilhas assumem uma função fundamental no cruzamento de rotas, circulação de pessoas e produtos5. Na História do Atlântico o mundo insular é uma realidade sempre presente. A Antiguidade Clássica faz apelo às ilhas míticas, fantásticas e imaginárias, cuja localização acontece sempre no Atlântico6. O fascínio do mundo insular manteve-se nos descobrimentos europeus. Foi uma dominante da cultura Ocidental e Oriental, ganhando papel de relevo na mitologia clássica e na construção de novos mitos7. Daqui resultou certamente a moda de divulgação com os isolarios, em que se destaca o de Beneditto Bordone de 15288. Depois, construíram-se pontes entre ambos os lados do oceano como pilhares assen-tes nas ilhas. As rotas do Atlântico, Índico e Pacífico só se afirmaram por força da presença de ilhas. D. Manuel, monarca português, ciente da importância desta realidade, mandou estabelecer o Livro das Ilhas para tombar toda a documentação mais significativa que a elas se referia9. 4 D. W. MEINIG, The Shaping of América: A Geographical Perspective on 500 years of History, vol. I: Atlantic America 1492-1800, New Haven, 1986. PIETER EMMER, «In Search of a System: The Atlantic Economy, 1500-1800», in HORST PIETSCHMANN, Atlantic History. History of the Atlantic System 1580- 1830, Gottingen, 2002, pp. 169-178; BARBARA L. SOLOW, Slavery and the Rise of the Atlantic System, N. York, 1991. 5 Cf. JOSÉ MANUEL AZEVEDO E SILVA, «A importância dos espaços insula-res no contexto do mundo Atlântico», in História das Ilhas Atlânticas, vol. I, Funchal, 1997, pp. 125-161. 6 W. H. BABCOCK, Legendary Islands of the Atlantic, N. York, 1922; MAR-COS MARTÍNEZ, Canarias en la Mitologia, Santa Cruz de Tenerife, 1992; IDEM, Las Islas Canárias de la Antigüedad al Renacimiento. Nuevos aspectos, Santa Cruz de Tenerife, 1996. 7 ANTÓNIO CARLOS DIEGUES, Ilhas e Mares. Simbolismo e Imaginário, S. Paulo, Editora Hucitec, 1998, pp. 80, 129-193. 8 INÁCIO GUERREIRO, «Tradição e modernidade nos Isolarios ou “livros das Ilhas”, dos séculos XV e XVI», in Oceanos, nº 46 (Lisboa, 2001), pp. 28-40. 9 Cf. JOSÉ PEREIRA DA COSTA, O Livro das Ilhas, Lisboa, 1987. Núm. 50 (2004) 221 AS ILHAS ATLÂNTICAS. PARA UMA VISÃO DINÂMICA DA SUA HISTÓRIA 3 Em síntese podemos afirmar que as ilhas foram espaços de construção das utopias, escalas retemperadoras da navegação, áreas de desusada riqueza para o europeu, como destino de desterro de criminosos e políticos, refúgio de piratas, aven-tureiros, espaços de convalescença e lazer e turismo. No vasto conjunto de ilhas que povoam o oceano devemos salientar pelo menos três grupos: oceânicas (Açores, Madeira...), continentais (Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe, Santa Catarina...) e fluviais (São Luís no Brasil,...). A posição que cada uma assumiu conduziu a diferente protagonismo histórico. As flu-viais e continentais evidenciaram-se pela dependência ao espaço continental vizinho, enquanto as oceânicas ficaram entregues a si próprias. A favor da valorização dos espaços insulares temos, ainda, a tese que vingou no seio da Historiografia americana de que o Atlântico é uma unidade de análise, delimitada cronologica-mente entre os inícios de expansão europeia, a partir do sécu-lo XV e a abolição da escravatura em 188810. A função assumida pelas ilhas no contexto da expansão quatrocentista, quer como terra de navegadores, quer como principal centro que modelou a realidade socio-económico, é a evidência da imprescindível da dimensão atlântica. Se tomarmos em linha de conta alguns dos temas comuns, como o vinho, o açúcar e a escravatura, seremos forçados a concluir que foram eles em boa parte, os responsáveis pela 10 Cf. JACQUES GODECHOT, Histoire de l’Atlantique, Paris, 1947; ALAN L. KARRAS e J. R. MACNEILL, Atlantic American Societies-from Columbus Through Abolition 1492-1886, London, 1992 [nomeadamente a apresen-tação de A. L. Karras, «The Atlantic World as a unit of Study»]; ALFRED W. CROSBY, The Columbian Exchange, Biological and Cultural Consequences of 1492, Westport, 1972; S. MINTZ, Sweetness and Power, N. York, 1985; MICHAEL MEYERR, «The Price of the new Transnational History», The American Historical Review, 96, nº 4, 1991, 1056-1072; D. W. MEINIG, Atlantic America 1492-1800, New Haven, 1980; LAN STELLE, The English Atlantic, 1675-1740 — An Exploration & Communication and Community, N. Y. 1986; DAVID ARMITAGE E MICHAEL J. BRADDICK, The British Atlantic World. 1500-1800, N. York, 2000 (especialmente os textos de Bernard Bailyn e David Armitage); JOHN ELLIOTT, en Búsqueda de la Historia Atlán-tica, Las Palmas, 2001. 222 ANUARIO DE ESTUDIOS ATLÁNTICOS 4 ALBERTO VIEIRA opção atlântica. As rotas comerciais, os mercados, e, acima de tudo, o oceano como mar aberto, são uma permanência. Acontece que a historiografia vem defendendo a vinculação das ilhas ao Velho Mundo, realçando apenas a importância da relação umbilical com a mãe-pátria. Os séculos XV e XVI seriam os momentos áureos, enquanto a conjuntura setecentista a expressão da viragem para o Novo Mundo, em que alguns produtos, como o vinho, assumem o papel de protagonista e de responsáveis pelas trocas comerciais. Estudos recentes confirmam que o relacionamento exterior das ilhas não se resumia apenas a estas situações11. À margem das importantes vias e mercados intercontinentais subsistem outras que activaram a economia insular desde o séc. XV. As conexões entre os arquipélagos próximos (Açores e Canárias) ou afastados (Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe) foram já motivo de aprofundada explanação, que propiciaram a valorização da estrutura comercial12. Aqui ficou demonstrada a importância assumida pelos contactos humanos e comerciais, que no pri-meiro caso, resultou da necessidade de abastecimento de cereais e, no segundo, das possibilidades de intervenção no tráfico negreiro, mercê da vinculação às áreas africanas como a Costa da Guiné, Mina e Angola. Em qualquer das situações o estreitamento dos contactos depende, primeiro, da presença de uma comunidade que preten-de manter o vínculo à terra-mãe e depois as possibilidades de troca favorável. A oferta de vinho e a procura pelos agentes do tráfico negreiro, para enganadoramente oferecerem aos sobas 11 A partir de 1976 a realização de diversos colóquios sobre estas ilhas, nas Canárias, Açores e Madeira tem evidenciado esta realidade. Aqui ape-nas damos conta de alguns dos nossos trabalhos, entre muitos que estão reunidos nas referidas actas: «O comércio de cereais dos Açores para a Madeira no século XVII», in Os Açores e o Atlântico (séculos XIV-XVII), A. HEROÍSMO, 1984; «O Comércio de cereais das Canárias para a Madeira nos séculos XVI e XVII», in VI Coloquio de Historia Canario Americana, Las Palmas, 1984; «Madeira e Lanzarote. Comércio de escravos e cereais no século XVII», in IV Jornadas de História de Lanzarote e Fuerteventura, Arre-cife de Lanzarote, 1989. 12 O Comércio Inter-insular (Madeira, Açores e Canárias) nos séculos XV e XVI, Funchal, 1987. Núm. 50 (2004) 223 AS ILHAS ATLÂNTICAS. PARA UMA VISÃO DINÂMICA DA SUA HISTÓRIA 5 africanos, ou do outro lado do Atlântico saciaram a sede do europeu a troco do açúcar, foi o principal móbil. A situação influenciou decisivamente a estrutura comercial insular a partir da segunda metade do século XVI. No caso do Atlântico português a conjuntura foi particular pois a actuação em três frentes — Costa da Guiné, Brasil e Índico — alargou os enclaves de domínio ao sul do oceano. Neste contexto surgiram cinco vértices insulares de grande rele-vo — Açores, Canárias, Cabo Verde, Madeira e S. Tomé — que foram imprescindíveis para a afirmação da hegemonia e defesa das rotas oceânicas. Aí assentou-se os pilares atlânticos fazendo das ilhas desabitadas, lugares de acolhimento e repouso para os náufragos, ancoradouro seguro e abastecedor para as embar-cações e espaços agrícolas de exportação. No primeiro caso po-demos referenciar a Madeira, Canárias, Cabo Verde, S. Tomé, Santa Helena e Açores, que emergiram em princípios do sécu-lo XVI como os principais eixos das rotas do Atlântico. Algumas foram fundamentais nas rotas intercontinentais, como foi o caso das Canárias, Santa Helena, Açores e as que se filiam nas áreas económicas litorais, como sucedeu com Arguim, Cabo Verde, e o arquipélago do Golfo da Guiné. Todas viveram numa situação de dependência em relação ao litoral que as valorizou. Apenas em S. Tomé, pela importância que aí assumiu a cana-de- açúcar esta subordinação não atingiu a mesma dimen-são no início. O protagonismo dos arquipélagos das Canárias e Açores é muito mais evidente no traçado das rotas oceânicas que se dirigiam ou regressavam das Índias ocidentais e orientais, resul-tado da posição às portas do oceano. Actuaram como via de entrada ou de saída das rotas oceânicas, orientando a pirataria e corso para a região circunvizinha. Mas estas não foram ape-nas áreas de apoio, uma vez que o solo fértil permitiu um aproveitamento agrícola. A última vertente projectou-as para um lugar relevante na História do Atlântico. A valorização sócio-económica dos espaços insulares não foi unilinear, dependendo da confluência de dois factores. Primeiro, os rumos definidos para a expansão atlântica e os níveis da sua expressão em cada um, depois as condições propiciadoras de 224 ANUARIO DE ESTUDIOS ATLÁNTICOS 6 ALBERTO VIEIRA cada ilha ou arquipélago em termos físicos, de habitabilidade ou da existência ou não de uma população autóctone. Quanto ao último aspecto é de salientar que apenas nas Antilhas, Canárias e a pequena ilha de Fernão do Pó, no Golfo da Guiné, já estavam ocupadas quando aí chegaram os marinheiros penin-sulares. As restantes encontravam-se abandonadas — não obs-tante falar-se de visitas esporádicas às ilhas dos arquipélagos de Cabo Verde e S. Tomé por parte das gentes costeiras — o que favoreceu o imediato e rápido povoamento, quando as condições o permitiam. Se na Madeira a tarefa foi fácil, não obstante as condições hostis da orografia, o mesmo não se poderá dizer dos Açores ou de Cabo Verde, onde os primeiros colonos enfren-taram diversas dificuldades. Para as ilhas já ocupadas as circunstâncias foram diferentes, pois enquanto nas Canárias os castelhanos defrontaram-se com os autóctones por largos anos (1402/1496). Já em Fernão do Pó e nas Antilhas foi mais fácil vencer a resistência indígena. Os arquipélagos da Madeira e Canárias afirmam-se pelo pioneirismo da ocupação que fez com que se projectassem no espaço atlântico. É evidente a vinculação económica e institu-cional dos espaços do atlântico português à Madeira, como su-cede em relação às Canárias com as índias de Castela. Daqui resulta a sua importância para o estudo e conhecimento da História do Atlântico a valorização da história de ambos os arquipélagos13. As ilhas jogaram um papel fundamental na estratégia de afirmação colonial no Novo Mundo, pois que foram pilares des-tacados do complexo que começou a construir-se a partir do século XV. Elas são, ainda, a imagem do Paraíso que se afirma como espaço de rica exploração económica, escala retempe- 13 Cf. ALAN L. KARRAS e J. R. MACNEILL, Atlantic American Societies — From Columbus Through Abolition 1492-1886, London, 1992; ALFRED W. CROSBY, The Columbian Exchange, Biological and Cultural Consequences of 1492, Westport, 1972; S. MINTZ, Sweetness and Power, N. York, 1985; MICHAEL MEYERR, «The price of the new transnational history», The Ame-rican Historical Review, 96, nº 4, 1991, 1056-1072; D. W. MEINIG, Atlantic America 1492-1800, New Haven, 1980; LAN STELLE, The English Atlan-tic, 1675-1740 — An Exploration & Communication and Community, N. Y. 1986. Núm. 50 (2004) 225 AS ILHAS ATLÂNTICAS. PARA UMA VISÃO DINÂMICA DA SUA HISTÓRIA 7 radora e de apoio aos intrépidos marinheiros. Paulatinamente ganharam a merecida posição na estratégia colonial, pro-jectando- se nos espaços continentais próximos e longínquos. Abriram as portas do Atlântico e mantiveram-se até a actua-lidade como peças fundamentais. Foram imprescindíveis à descoberta do oceano como para a afirmação e controlo dos mercados continentais vizinhos, como sucedeu em Cabo Verde e S. Tomé. Nos séculos XVIII e XIX não foi menor o protagonismo insu-lar. As ilhas passaram de escalas de navegação e comércio a centros de apoio e abastecimento de carvão aos vapores e laboratórios da ciência. Cientistas cruzam-se com mercadores, funcionários coloniais e militares e seguem as rotas delineadas desde o século XV. A estes juntaram-se os primeiros «turistas», que afluem às ilhas desde o século XVIII na busca de cura para a tísica pulmonar ou à descoberta das belezas. Foi o início do turismo insular que só adquiriu a dimensão actual a partir da década de cinquenta do século XIX. A segunda metade do século XIX confiou ainda outro papel às ilhas. Foram elas pontos estratégicos fundamentais do lançamento dos cabos submarinos intercontinentais. A situação perdurou até à década de setenta do século XX, altura em que os sistemas de telecomunicações começaram a afirmar-se e a dominar em definitivo as trocas de informação interconti-nentais14. Parte da fortuna destas Afortunadas está patente no pa-pel que assumiram no mundo atlântico a partir do século XV. Daqui resultou uma forte vinculação ao mundo europeu que nunca prescindiu da posse na estratégia expansionista e de domínio do espaço atlântico. O progresso das comunicações não lhes retirou protagonismo, antes pelo contrário veio a revalori-za- las. Os portos dos veleiros deram lugar aos vapores e aos cabos submarinos e acabaram cedendo os protagonismos aos aeroportos. Hoje assumem uma nova dimensão no âmbito polí-tico, como espaços independentes ou autónomos, continuam a 14 Cf. FRANCIS M. ROGERS, Atlantic Islanders of the Azores and Madeiras, Massachusetts, 1979, pp. 175-230. 226 ANUARIO DE ESTUDIOS ATLÁNTICOS 8 ALBERTO VIEIRA assumir a vinculação europeia, sendo mais evidente a vocação de estância turística. AS ILHAS E OS DESCOBRIMENTOS No conjunto, os arquipélagos do Atlântico Oriental — Ma-deira, Açores, Canárias, Cabo Verde, S. Tomé — deram um contributo à plena valorização e afirmação do novo espaço que ganhou evidencia na construção dos impérios europeus A Madeira surgiu nos alvores do século XV como a primeira experiência de ocupação em que se ensaiaram produtos, técni-cas e estruturas institucionais, que depois foram utilizados em larga escala noutras ilhas e litoral africano e americano. O arquipélago foi o centro de divergência dos sustentáculos da nova sociedade e economia do mundo atlântico: primeiro tivemos os Açores, depois os demais arquipélagos e regiões costeiras onde os portugueses aportaram. Idêntica função pre-encheu as Canárias em relação ao modelo colonial castelhano, que num primeiro momento se orientou pela experiência ma-deirense15. O sistema institucional madeirense apresentava uma estru-tura peculiar definida pelas capitanias. Foi a 8 de Maio de 1440 que o Infante D. Henrique lançou a base da nova estrutura ao conceder a Tristão Vaz a carta de capitão de Machico. A partir daqui ficou definido o sistema institucional que deu corpo ao governo português no Atlântico insular e brasileiro. Também os castelhanos vieram à ilha receber alguns ensinamentos para a sua acção institucional no Atlântico, como se depreende do desejo manifestado em 1518 pelas autoridades antilhanas em resolver a difícil situação das pequenas ilhas de Curaçau, Aruba e La Margarita com o recurso ao modelo madeirense de po-voamento. As Canárias assumiram idêntico papel para o império de Castela16. Tenha-se em conta que algumas ilhas, nomeadamente 15 Cf. JOSÉ PÉREZ VIDAL, Aportación de Canarias a la población de Amé-rica, Las Palmas de Gran Canaria, 1991. 16 Como o confirmam os textos de A. RUMEU DE ARMAS, Canarias y el Núm. 50 (2004) 227 AS ILHAS ATLÂNTICAS. PARA UMA VISÃO DINÂMICA DA SUA HISTÓRIA 9 a de La Gomera, foram pilares fundamentais no apoio das viagens colombinas e depois de toda a estratégia imperial17. A partir daqui os castelhanos fizeram chegar a cultura da cana sacarina às ilhas da América central18. A Madeira foi ainda o ponto de partida para organização da sociedade no atlântico em torno da escravatura. De acordo com S. Greenfield19 ela serviu de trampolim entre o «Mediterranean Sugar Production» e a «Plantation Slavery» americana. O autor não faz mais do que retomar os argumentos aduzidos por Char-les Verlinden20 desde a década de sessenta, que entretanto mereceram alguns reparos na formulação, mercê de novos estudos21. HOMENS E PRODUTOS Os descobrimentos europeus não podem ser vistos apenas na perspectiva do encontro de novas terras, novas gentes e cultu-ras, devendo associar-se também as migrações humanas, que arrastaram consigo um universo envolvente de fauna, flora, tecnologia, usos e tradições. Estamos perante aquilo a que Atlántico. Piraterías y ataques navales, Madrid, 1991 (reedição); PIERRE CHAUNU, ob. cit.; e FRANCISCO MORALES PADRÓN, El comercio canario-ameri-cano (siglos XVI-XVIII), Sevilla, 1955. 17 ANTONIO TEJERA GASPAR, Los cuatro viajes de Colón y las Islas Cana-rias (1492-1502), La Laguna, Francisco Lemus Editor, 2000. 18 Cf. JUSTO L. DEL RÍO MORENO, Los inicios de la agricultura europea en el Nuevo Mundo, Sevilla, 1991, p. 303. 19 «Madeira and the Beginings of New World Sugar Cane Cultivation and Plantation Slavery: a Study in Constitution Building», in VERA RUBIN e ARTUR TUNDEN (eds.), Comparative Perspectives on Slavery in New World Plantation Societies, N. York, 1977. 20 «Précédents et Paralèlles Européens de l’Esclavage Colonial», in Ins-tituto, vol. 113, Coimbra, 1949; «Les Origines Coloniales de la Civilization Atlantique. Antécédents et Types de Structure», in Journal of World History, 1953, pp. 378-398; Précédents Médiévaux de la Colonie en Amérique, Méxi-co, 1954; Les Origines de la Civilization Atlantique, Neuchâtel, 1966. 21 Confronte-se ALFONSO FRANCO SILVA, «La esclavitud en Andalucía...», in Studia, nº 47, Lisboa, 1989, pp. 165-166; ALBERTO VIEIRA, Os escravos no Arquipélago da Madeira. Séculos XV a XVII, Funchal, 1991. 228 ANUARIO DE ESTUDIOS ATLÁNTICOS 10 ALBERTO VIEIRA Pierre Chaunu22 define como desencravamento planetário, vincu-lado às transformações operadas pela a expansão europeia do século XV. Os Descobrimentos foram também responsáveis pela transformação e revolução ecológica, com impactos positivos ou negativos. Uma das transformações fundamentais ocorreu ao nível alimentar com a descoberta de novos produtos e condimen-tos que enriqueceram a dieta alimentar23. NAVEGANTES, AVENTUREIROS E EMIGRANTES Os Descobrimentos do século XV foram o início de novo processo de transmigração das populações europeias. Portugal, porque pioneiro, assumiu um lugar de destaque. À tradicional movimentação interna das populações, resultan-te da reconquista e ocupação, sucedem-se outros para fora do continente, de acordo com o avanço dos descobrimentos e a necessidade de ocupação de novos espaços. Uma questão, de não menor importância, prende-se com a forma de recrutamento dos colonos. Há os que vão, de livre vontade, à aventura, que cumprem uma missão como funcioná-rios da coroa ou que se dispõem a qualquer serviço na mira de uma compensação24. Junta-se, depois, um grupo com grande destaque em todo o processo, os degredados ou prisioneiros. No momento de organização das armadas de defesa das praças marroquinas25, de ocupação das ilhas ou do Oriente, a coroa 22 A História como Ciência Social, Rio de Janeiro, 1976, 287-326 23 PIERRE CHAUNU, A História como Ciência Social, Rio de Janeiro, 1976, pp. 181-239; JOSÉ E. MENDES FERRÃO, A Influência Portuguesa na Difusão de Plantas no Mundo, Lisboa, 1980; Transplantação de Plantas de Continen-tes para Continentes no século XVI, Lisboa, 1986; IDEM, A Aventura das Plan-tas e os Descobrimentos Portugueses, Lisboa, 1999. 24 Veja-se no caso do Oriente o estudo de LUÍS DE ALBUQUERQUE e JOSÉ PEREIRA DA COSTA, «Cartas de Serviço da Índia (1500-1550)», in Mare Liberum, nº 1, 1990, 309-396. 25 Confronte-se LUÍS MIGUEL DUARTE e JOSÉ AUGUSTO P. DE SOTTO MA-YOR PIZARRO, «Os Forçados das Galés (os Barcos de João da Silva e Gonçalo Falcão na Conquista de Arzila em 1471)», in Congresso Internacional. Bartolomeu Dias e a sua Época. Actas, vol. II, Porto, 1989, pp. 313-328. Núm. 50 (2004) 229 AS ILHAS ATLÂNTICAS. PARA UMA VISÃO DINÂMICA DA SUA HISTÓRIA 11 permitia aos organizadores o recrutamento de homens entre os condenados de diversos delitos e penas de degredo. A política moderna de degredo como forma de incentivo ao povoamento dos lugares ermos não era novidade, pois vinha sendo utilizada para o povoamento do litoral algarvio e zonas fronteiriças com Castela. Era a coroa portuguesa quem orde-nava aos corregedores o destino dos degredados. Depois do Algarve, tivemos Ceuta e demais praças marroquinas, as ilhas atlânticas. A presença em Marrocos é mais insistente a partir de 143126. Para as ilhas as orientações de envio dos degredados sucedem-se conforme a evolução do povoamento do espaço atlântico: primeiro a Madeira, depois, os Açores, Cabo Verde e S. Tomé. A partir de 145427 D. Afonso V determinou, a pedido do Infante D. Henrique, que todos os homens condenados a degredo iam «povoarem as ditas ilhas que então começava de povoar...». Não será isto uma válvula de escape para os conflitos sociais28? A coroa castelhana estabeleceu a partir de 1678 como condição para o comércio das Canárias com o Novo Mundo o 26 A mudança é justificada da seguinte forma por Zurara: «muitos de meus naturaes que per alguuns negocios ssam desterrados de meus regnos, melhor estaram aqui fazendo serviço a Deos, conprindo sua justiça, que sse hirem pollas terras estranhas e desnaturarem-se pera todo o sempre de sua terra» [citado por PEDRO DE AZEVEDO, Documentos das Chancelarias Reais Anteriores a 1531 Relativos a Marrocos, t. I, Lisboa, 1915, p. XIII]. Mais tarde, Luís Mendes de Vasconcelos [«Diálogos do Sítio de Lisboa», in Antologia dos Descobrimentos Portugueses (século XVII), Lisboa, 1974], refere que «o Brasil povoou-se com degredados, gente que se tirava do reino por benefício dele». Recorde-se que Martim Afonso de Sousa fez-se acompanhar de 600 degredados. 27 Carta régia de 18 de Maio, ANTT, Chanc. de D. Afonso V, lº 10, fl. 44vº, publ. V. M. GODINHO, Documentos sobre a Expansão, t. I, pp. 215- 216. No caso da Costa da Guiné, incluídos os arquipélagos de Cabo Verde e S. Tomé, temos para o período de 1463 a 1500, 19 casos em que foi solicitada a carta de perdão à coroa [veja-se VITOR RODRIGUES, «A Guiné nas Cartas de Perdão (1463-1500)», in Congresso Internacional. Bartolomeu Dias e a sua Época. Actas, vol. IV, Porto, 1989, pp. 397-412]. 28 Veja-se o que aduz, ainda que para uma situação distinta, MANUEL HERNÁNDEZ GONZÁLEZ, «La emigración a América como válvula de escape de las tensiones sociales en Canarias durante el siglo XVIII. Las actitudes sociales ante la delincuencia», in ANTONIO EIRAS ROEL (ed.), La emigración española a Ultramar, 1492-1914, Madrid, 1991, pp. 311-316. 230 ANUARIO DE ESTUDIOS ATLÁNTICOS 12 ALBERTO VIEIRA embarque de cinco famílias por cada cem toneladas de mer-cadoria29. O processo migratório provocado pelos Descobrimentos foi também materializado por estrangeiros residentes ou que acudiram ao apelo dos descobrimentos. Foram os genoveses, venezianos e florentinos quem mais usufruíram da abertura da coroa à participação estrangeira nos descobrimentos. Estes, mediante solicitação da coroa, ou através da naturalização por carta régia ou casamento, integraram-se facilmente nas viagens de descobrimento, povoamento e comércio30. Em qualquer dos arquipélagos a presença foi evidente, assumindo um papel sig-nificativo nas trocas com os mercados europeus. OS INSULARES E O BRASIL O Brasil exerceu ao longo da História um fascínio especial sobre os insulares que estão ligados desde o início ao seu processo de construção. A História dos arquipélagos da Madeira, Açores, Cabo Verde e Canárias têm relevado nos últimos anos a sua presença como lavradores, mercadores, funcionários e mili-tares. Para os séculos XVI e XVII valorizou-se a presença de madeirenses, de Norte a Sul, como lavradores e mestres de engenho, pioneiros na definição da agricultura de exportação baseada na cana-de-açúcar, funcionários que consolidaram as instituições locais e régias, ou militares que se bateram em di-versos momentos pela soberania portuguesa. O forte impacto madeirense nos primórdios da sociedade brasileira levou Evaldo Cabral de Mello a definir a capitania de S. Vicente como a Nova Madeira31. 29 JOSÉ PÉREZ VIDAL, Aportación de Canárias a la población de América, Las Palmas, 1991, p. 87. 30 PROSPERO PERAGALLO, Cenni in torno alla Colonia Italiana in Portogallo nei secoli XIV, XV e XVI, Torino, 1904; CHARLES VERLINDEN, «L’influenza italia-na nela colonizzazione iberica. Uomini e metodi», in Nuova Rivista Storica, XXXVI, 1952, 254-270; ISABEL CASTRO HENRIQUES, «Os italianos como re-velador do Projecto Político Português nas Ilhas Atlânticas (séculos XV e XVI)», in Ler História, nº 16, 1981. 31 Conferência, in As Ilhas e o Brasil, Funchal, CEHA, 2000, p. 13. Núm. 50 (2004) 231 AS ILHAS ATLÂNTICAS. PARA UMA VISÃO DINÂMICA DA SUA HISTÓRIA 13 Evaldo Cabral de Mello Neto, como José António Gonsalves de Mello, são raros exemplos na historiografia brasileira de valorização da presença madeirense32. Aos agricultores e técnicos de engenho seguiram-se aventureiros, perseguidos pela religião (= os judeus), politica e alguns foragidos da justiça. Deste modo a presença de madeirenses, ainda que mais evidente nas terras de canaviais de Pernambuco, espalhou-se a todo o espaço com focos de maior influência em S. Vicente, Baía, Caraíbas e Ilhéus. A libertação do Maranhão em 1642 foi obra de António Teixeira Mello, enquanto em Pernambuco a resistência e ex-pulsão do holandês foi organizada desde 1645 por João Fer-nandes Vieira. Ainda, a defesa da soberania lusíada foi conse-guida com o envio de companhias de soldados da ilha. Assim temos em 1631 de João de Freitas da Silva, 1632 de Francisco de Bettencourt e Sá e em 1646 de Francisco Figueiroa. No últi-mo quartel do século XVII com o envio de soldados para o Maranhão e Rio de Janeiro e Santa Catarina. O processo ganhou nova dimensão no século XVIII com a emigração de casais madeirenses e açorianos. Esta foi a solução encontrada para resolver os problemas sociais nas ilhas e garan-tir a soberania das terras do Sul brasileiro. Em 1746 temos o envio de casais açorianos e madeirenses para o sul como garantia de defesa das fronteiras do Tratado de Madrid. A fundação da cidade de Portalegre é feita por um madeirense, sendo aqui a presença de colonos, fundamentalmente, açoriana. As evidências da situação estão ainda hoje presente no estado de Santa Catarina através de diversas manifestações como as festas do Espírito Santo. Nos séculos XIX e XX o Brasil continuou a ser um destino cobiçado dos insulares. A História e o quo-tidiano registam de forma evidente o movimento. Cabo Verde e as Canárias33 afirmaram-se no relacionamento com o Brasil por força do comércio de escravos, ficando ainda 32 José Pereira da Costa [«O Brasil...», in As Ilhas e o Brasil, Funchal, 2000, pp. 22-23] refere que a Historiografia brasileira dedica pouca atenção às ilhas. 33 ROSELLI SANTAELLA STELLA, «As Ilhas Canárias nos Registos do Brasil de Quinhentos», in XI Coloquio de Historia Canario Americana, t. III (1996), 57-73; IDEM, «As Canárias como eixo na conexão comercial do Brasil ao Prata», in X Coloquio de Historia Canario Americana, t. I, 1994, 89-305. 232 ANUARIO DE ESTUDIOS ATLÁNTICOS 14 ALBERTO VIEIRA reservado às ilhas de Tenerife e La Palma o contrabando de açúcar no século XVII. O período de união das coroas peninsu-lares favoreceu esta via. Não obstante a presença de gentes das Canárias no Brasil, foi nas colónias espanholas que os mesmos adquiriram uma posição desusada, mercê do posicionamento do arquipélago em face da rota de ida. As viagens de Colombo abriram-lhes as portas, que nunca mais se fecharam. Nos séculos XVIII e XIX as ligações comerciais das ilhas no Atlântico mantêm-se pela oferta de vinho, vinagre, de açúcar e aguardente. A relação alargou-se a partir de 1746 à presença de casais insulares (madeirenses e açorianos) no Sul e à forte emigração da segunda metade do século XIX. No século XX o Brasil continuou a ser ainda o El Dourado para os insulares, nomeadamente os madeirenses, que encontram no Rio e San-tos, a fuga às dificuldades da guerra ou às difíceis condições de sobrevivência. OS ESCRAVOS A expansão europeia abriu aos europeus as portas do Atlân-tico propiciando a migração das mais importantes rotas comer-ciais para novo palco. As viagens de reconhecimento da costa africana tornaram possível o acesso fácil ao mercado de escravos através das razias. Não foram os portugueses que estiveram na origem da escravização do negro e na criação do mercado negreiro, pois já existia há muito tempo no mundo mediterrânico e africano. O seu papel resume-se a estabelecer as rotas atlânticas e a ini-ciar a colonização assente nesta mão-de-obra. A Madeira assu-miu mais uma vez uma posição relevante por ter sido o primeiro espaço. Todavia o escravo nunca teve uma posição dominante na sociedade e processo produtivo, situação que só sucederá em Cabo Verde e S. Tomé. Nestes últimos arquipélagos um dos principais incentivos à fixação de colonos europeus foi o privilégio do resgate de escravos na costa africana vizinha. O comércio de escravos, a exemplo das demais transacções comerciais no espaço atlântico alem do Bojador, esteve sujeito a Núm. 50 (2004) 233 AS ILHAS ATLÂNTICAS. PARA UMA VISÃO DINÂMICA DA SUA HISTÓRIA 15 apertada regulamentação. Primeiro foi a reserva de espaço no litoral africano para intervenção exclusiva dos vizinhos de Cabo Verde e S. Tomé. Ambos os arquipélagos funcionaram como placas giratórias do trato negreiro para o novo continente. Depois com a união das duas coroas, a partir de 1595, manteve-se o controlo régio, sendo o comércio sujeito a um sistema de contratos e assentos. A situação só persistiu até 1650, altura em que o mercado de escravos africanos abriu as portas a todos os intervenientes34. Isto aconteceu num momento de retracção do mercado brasileiro que só recuperará trinta e nove anos mais tarde com a necessidade da mão-de-obra para a mineração. O processo de formação das sociedades insulares na Guiné foi diferente daquilo que aconteceu na Madeira, Açores e Canárias. Aqui, a distância do reino e as dificuldades de re-crutamento de colonos europeus devido à insalubridade do cli-ma condicionaram de modo evidente a expressão étnica. A par de um reduzido número de europeus, restrito em alguns casos aos familiares dos capitães e funcionários régios, juntaram-se os africanos, que corporizaram o grupo activo da sociedade. Quer em Cabo Verde, quer em S. Tomé o trabalho dos escravos era a força motriz da economia agrícola. Em todas as ilhas a presença do escravo negro não foi pací-fica, sendo considerada em muitos momentos como um factor de forte instabilidade social. Os fugitivos, num e noutro lado, geravam a habitual apreensão das autoridades, que tudo faziam para sanar os aspectos nocivos que a sua presença poderia cau-sar. Mas enquanto na Madeira, Açores ou Canárias a confli-tuosidade era sazonal, não assumindo proporções graves, o mesmo não se podendo dizer das ilhas da Guiné. Em S. Tomé, os fugitivos reuniam-se nas montanhas em quadrilhas e assalta-vam esporadicamente as vilas. 34 Cf. ENRIQUETA VILA VILAR, Hispano-América y el comercio de esclavos. Los asientos portugueses, Sevilla, 1977. 234 ANUARIO DE ESTUDIOS ATLÁNTICOS 16 ALBERTO VIEIRA OS JUDEUS A comunidade judaica assumiu um papel de destaque no processo dos descobrimentos. A presença é notória desde o início. Aos judeus foram atribuídas responsabilidades na definição das rotas comerciais que ligavam o atlântico descoberto com os mercados do norte da Europa. A teia familiar de negócios foi um dos principais suportes da rede comercial35. Desde a Ma-deira, com o incremento do açúcar, a sua presença é evidente. Tão pouco a criação do tribunal da Inquisição os impediu de manter uma posição de destaque. A intervenção do tribunal da Inquisição de Lisboa nos novos espaços atlânticos, apenas os fazia avançar para novos destinos ou refúgios nas praças do norte da Europa, mas sem perderem o vínculo aos mercados e espaços de origem. A presença de judeus portugueses nas Canárias com vínculos às ilhas portuguesas é evidente36. A criação de colégios dos Jesuítas em Ponta Delgada, Angra e Funchal, bem como as visitas realizadas nos anos de 1575, 1591 e 1618-21 contribuíram para aumentar e reforçar a presença da comunidade, que se alarga a Cabo Verde e ao Brasil37. A FLORA E FAUNA A expansão atlântica revelou ao europeu um novo mundo, onde a flora e a fauna dominaram. A descoberta da nova realidade fez-se não só pelo valor alimentar e económico, mas 35 P. SALAMON, «Os primeiros portugueses de Amesterdão», in Cami-niana, V, nº 8, 1983, pp. 22-104. 36 LUCIEN WOLF, Jews in the Canary Islands..., Londres, s.d.; LUIS ALBER-TO ANAYA HERNÁNDEZ, «Una comunidad judeoconversa de origen portugués a comienzos del siglo XVI en la isla de La Palma», II Colóquio Internacio-nal de História da Madeira, 1989, 685-700; IDEM, «Relaciones de los archi-piélagos de Azores y de la Madera con Canarias, según fuentes inqui-sitoriales (siglos XVI y XVII)», I Colóquio Internacional de História da Madeira, Funchal, 1989, 846-877. 37 ARNOLD WIZNITZER, Os judeus no Brasil colonial, S. Paulo, 1966; JOSÉ ANTÓNIO GONÇALVES SALVADOR, Os cristãos novos e o comércio no Atlântico Meridional, S. Paulo, 1978. Núm. 50 (2004) 235 AS ILHAS ATLÂNTICAS. PARA UMA VISÃO DINÂMICA DA SUA HISTÓRIA 17 também científico. O processo de povoamento implicava obriga-toriamente a migração de plantas, animais e técnicas de re-colecção, cultivo e transformação. O retorno foi igualmente rico e conduziu paulatinamente à revolução do quotidiano europeu. Algumas das novas plantas entraram rapidamente nos hábitos das populações e cedo se perdeu o rastro da origem. Portugueses e espanhóis foram importantes na troca de plantas entre o Novo e o Velho Mundo. No Oriente foram as especiarias que dinamizadora as rotas comerciais e cobiça dos europeus. A América revelou-se pela variedade e exoticidade das plantas e frutos, com valor alimentar, que contribuíram em Áfri-ca para colmatar a deficiência alimentar. O processo não foi pacífico, pois em muitos casos provocou alterações catastróficas no quadro natural. Isto aconteceu em regiões sujeitas à violên-cia de uma monocultura solicitada pelos mercados internacio-nais. Estão neste caso a cana sacarina, o cacau, o café e o al-godão. As ilhas voltaram a assumir de novo um papel fundamental como de viveiros de aclimatação das plantas e culturas em movimento. A Madeira funcionou nos dois sentidos. Da Europa propiciou a transmigração da fauna e flora identificada com a cultura ocidental. No retorno foram as plantas do Novo Mundo que tiveram de novo passagem obrigatória pela ilha. A riqueza botânica do Funchal resulta disso. O processo de imposição da chamada biota europeia, no dizer de Alfred Crosby38, foi respon-sável por alguns dos primeiros e mais importantes problemas ecológicos. Nos séculos XV e XVI tivemos as viagens de descobrimento, enquanto no século XVIII sucederam as de exploração e desco-berta da natureza, comandadas por ingleses e franceses. Final-mente desvendou-se uma nova vocação, sendo as ilhas campo de observação directa da natureza. A afirmação da Ciência na Europa fez delas escala para as expedições científicas que se organizaram desde o século XVII. O enciclopedismo e as classifi-cações de Linneo (1735) tiveram nas ilhas um campo ideal de experimentação. Tenha-se em conta as campanhas da Linnean 38 Imperialismo ecológico. A expansão biológica da Europa: 900-1900, S. Paulo, 1993. 236 ANUARIO DE ESTUDIOS ATLÁNTICOS 18 ALBERTO VIEIRA Society e o facto de o próprio presidente da sociedade, Charles Lyall, ter-se deslocado em 1838, de propósito, às Canárias. O VINHO O ritual cristão valorizou o pão e o vinho. Em ambos os casos foi fácil a adaptação às ilhas aquém do Bojador o mesmo não sucedendo com as da Guiné. A viticultura ficou reservada ao Mediterrâneo Atlântico, onde o vinho adquiriu um lugar im-portante nas exportações. A partir da Madeira as cepas chega-ram a todos os recantos do Novo mundo. As primeiras cepas foram conduzidas à ilha do Pico donde se expandiram às demais ilhas. Também terão chegado às Canárias. A evolução da safra vitivinícola madeirense dos séculos quinze e dezasseis só pode ser conhecida através do testemunho de visitantes estrangeiros, uma vez que é escassa a informação das fontes diplomáticas. A documentação e os visitantes nos sécs. XVIII/XIX, foram unânimes em considerar o vinho como a principal riqueza da ilha e a única moeda de troca. Desde o século XVII que o ilhéu traçou a rota no mercado internacional, acompanhando o colonialista nas expedições e fixação na Ásia e América. O comerciante inglês soube tirar partido do produto fazendo-o chegar em quantidades volumosas às mãos dos compatriotas que se haviam espalhado pelos quatro cantos do mundo colonial europeu. O movimento do comércio do vinho ao longo dos sécs. XVIII e XIX imbrica-se de modo di-recto no traçado das rotas marítimas coloniais que tinham passagem obrigatória na ilha. A estas juntavam-se outras subsidiárias, quase todas sob controlo inglês. São as rotas da Inglaterra colonial que fazem do Funchal porto de refresco e carga de vinho no rumo aos mercados das Índias Ocidentais e Orientais, donde regressavam, via Açores, com o recheio colo-nial. Depois temos os navios portugueses da rota das Índias, ou do Brasil que escalavam a ilha onde recebem o vinho que conduzem às praças lusas. Juntam-se ainda os navios ingleses que se dirigiam à Madeira com manufacturas e fazem o retor-no tocando Gibraltar, Lisboa, Porto e, finalmente, os norte- Núm. 50 (2004) 237 AS ILHAS ATLÂNTICAS. PARA UMA VISÃO DINÂMICA DA SUA HISTÓRIA 19 americanos que traziam as farinhas para madeirense e re-gressam carregados de vinho. O vinho ilhéu conquistou desde o séc. XVI o mercado colonial em África, Ásia e América afirman-do- se até meados do séc. XIX como a bebida por excelência do colonialista e das tropas coloniais em acção. Regressado o colo-nialista à terra de origem, com o surto do movimento inde-pendentista, trouxe na bagagem o vinho da ilha. Aqui releva-se a posição do mercado americano, dominado pelas colónias das Índias Ocidentais e portos norte-americanos. O último destino sedimentou-se, a partir da segunda metade do século XVII, mercê de um activo relacionamento. O vinho foi uma presença assídua nos portos atlânticos — Boston, Char-leston, N. York e Filadélfia, Baltimore, Virgínia — onde era trocado por farinhas39. Esta contrapartida reforçou o relaciona-mento comercial e actuou como circunstância favorecedora do progresso da economia vitivinícola. Apenas nas Canárias e Açores a cultura da vinha e o co-mércio do vinho atingiram posição similar à Madeira40. Os mer-cados foram os mesmos sendo disputados com extrema con-corrência. Note-se que os arquipélagos dos Açores, Canárias e Madeira, ficaram conhecidos na documentação oficial norte-americana como as ilhas do vinho41. A Madeira e os Açores, face aos privilégios concedidos pela coroa britânica no período após a Restauração — as actas de navegação de 1660 e 1665 e o tra-tado de Methuen em 1703 — conseguiram firmar uma posição de destaque. Mas nos séculos seguintes apagaram-se as dife-renças e o vinho das ilhas entrava em pé de igualdade nos portos e mesa dos norte-americanos. 39 Cf. JORGE MARTINS RIBEIRO, «Alguns aspectos do comércio da Ma-deira com a América na segunda metade XVIII», in Actas III Colóquio Inter-nacional de História da Madeira, Funchal, 1993, pp. 389-401. 40 ANTONIO BÉTHENCOURT MASSIEU, Canarias e Inglaterra: el comercio de vinos (1650-1800), Las Palmas, 1991; MANUEL LOBO CABRERA, El comercio del vino entre Gran Canaria y las Indias en el siglo XVI, Las Palmas,1993; AGUSTÍN GUIMERÁ RAVINA, Burguesía extranjera y comercio atlántico. La empresa comercial irlandesa en Canarias (1703-1771), Madrid, 1985. 41 Veja-se A. GUIMERÁ RAVINA, «Las islas del vino (Madeira, Açores e Canarias) y la América inglesa durante el siglo XVIII. Una aproximación a su estudio», in II C.I.H.M. Actas, Funchal, 1990, pp. 900-934, confronte-se ALBERT SILBERT, art. cit., pp. 420-428. 238 ANUARIO DE ESTUDIOS ATLÁNTICOS 20 ALBERTO VIEIRA A ROTA DO AÇÚCAR A cana-de-açúcar, pelo alto valor económico no mercado nórdico e mediterrâneo, foi um dos primeiros e principais produtos que a Europa legou e definiu para as novas áreas de ocupação no Atlântico. O percurso iniciou-se na Madeira, alar-gando- se depois às restantes ilhas e continente americano. A primeira metade do século dezasseis é definida como o momento de apogeu da cultura açucareira insular e pelo avolu-mar das dificuldades que entravaram a promoção em algumas áreas como a Madeira onde o cultivo era oneroso e os níveis de produtividade desciam em flecha. As ilhas de Gran Canária, La Palma, Tenerife e S. Tomé estavam melhor posicionadas para produzir açúcar a preços mais competitivos. Isto sucedeu na década de vinte do século dezasseis e avançou à medida que os novos mercados produtores de açúcar atingiam o máximo de produção. As socas de cana foram levadas para os Açores pelos primi-tivos cabouqueiros, promovendo-se o cultivo em Santa Maria, S. Miguel, Terceira e Faial. Aqui a cultura foi tentada várias vezes, mas sem surtir os efeitos desejados. As condições geofísicas alia-das à inexistência ou reduzida dimensão dos capitais estrangeiros travaram o desenvolvimento. O açúcar açoriano só ganhou importância a partir do século XX, mas apenas com a transfor-mação da beterraba. Aos arquipélagos de Cabo Verde e S. Tomé os canaviais chegaram muito mais tarde e como noutras áreas a experiência madeirense foi importante. Apenas nas ilhas de Santiago e S. Nicolau nunca foi concorrencial do açúcar madeirense. As condições morfológicas e orográficas foram-lhe adversas. A introdução deverá ter sido feita, no início do povoamento na década de sessenta, não obstante a primeira referência datar de 1490. No século XIX os canaviais expan-diram- se nas ilhas de Santiago, Santo Antão, Brava, S. Nicolau e Maio. A valorização tem a ver com a solicitação de aguardente para o trato de escravos na Costa da Guiné42. 42 ANTÓNIO CARREIRA, Estudos de economia caboverdiana, Lisboa, 1982. Núm. 50 (2004) 239 AS ILHAS ATLÂNTICAS. PARA UMA VISÃO DINÂMICA DA SUA HISTÓRIA 21 Em S. Tomé os canaviais estendiam-se pelo norte e nordeste da ilha, fazendo lembrar, segundo um testemunho de 1580, os campos alentejanos43. Um dos factos que contribuiu para que se tornasse concorrencial do madeirense foi a elevada produ-tividade. Segundo Jerónimo Munzer44 seria três vezes superior à madeirense. A partir do último quartel do século dezasseis a concorrência desenfreada do açúcar brasileiro definiu uma acentuada quebra no período de 1595 a 1600. A isto deverá jun-tar- se a revolta dos escravos (1595), agravada pela destruição dos engenhos provocada pelo saque holandês. A partir daí o arquipélago de São Tomé ficou a depender apenas do comércio de escravos e da pouca colheita de mandioca e milho. A crise do comércio de escravos a partir de princípios do século deza-nove fez com que se operasse uma mudança radical na econo-mia. Surgiram, então, novas culturas (cacau, café, gengibre coconote, copra e óleo de palma) que proporcionaram uma nova aposta agrícola e de dependência. O PASTEL E PLANTAS TINTUREIRAS Até ao século XVII com a introdução do anil na Europa o pastel foi a principal planta da tinturaria europeia, donde se ia buscar as cores preta e azul. A par disso a disponibilidade de outras plantas tintureiras, como a urzela (donde se conseguia um tom castanho avermelhado) e o sangue-de-drago, levaram ao aparecimento de italianos e flamengos, interessados no comércio, que por sua vez nos legaram a nova planta tintureira: o pastel. Nos Açores, a exemplo do sucedido com o açúcar na Madeira, a coroa concedeu vários incentivos para a promoção da cultura, que com a incessante procura por parte dos merca-dos nórdicos, fizeram avançar rapidamente o cultivo. Em 1589 Linschoten referia que «o negócio mais frequente destas ilhas é o pastel» de que os camponeses faziam o «principal mister», sendo o comércio «o principal proveito dos insulares»45, enquanto em 43 ISABEL CASTRO HENRIQUES, «O ciclo do açúcar em S. Tomé nos sécu-los XV e XVI», in Portugal no Mundo, I, Lisboa, 1989, 271. 44 Monumenta Missionária Africana, IV, 1954, nº 6, 16-20. 45 Ob. cit., 152-154. 240 ANUARIO DE ESTUDIOS ATLÁNTICOS 22 ALBERTO VIEIRA 1592 o Governador de S. Miguel atribuía a falta de pão ao domínio quase exclusivo do solo pelo cultivo do pastel46. Foi ainda um tradicional mercado produtor de linho com expor-tação para o mercado europeu, situação que perdurou até princípios do século XIX. Nos arquipélagos além do Bojador ignora-se a presença do pastel, não obstante a importância que aí assumiu a cultura do algodão e o consequente fabrico de panos. O clima e o des-conhecimento das técnicas de tinturaria, demonstrados na en-trega da exploração da urzela aos castelhanos João e Pêro de Lugo, favoreceram a conjuntura. Mas aqui a cultura do algodão foi imposta pelos mercados costeiros africanos, carentes de fio para a indústria têxtil. No decurso dos séculos XVI e XVII o algodão apresentou-se como primordial para a economia cabo-verdiana, sendo o principal incentivo, ao lado do sal, para as trocas comerciais com a costa africana, nomeadamente Ca-samansa e o rio de S. Domingos. No início apenas se produzia algodão para a Europa, mas depois passou a desenvolver-se a indústria de panos, face à grande procura que havia na costa africana a troco de escravos47. No séculos XVIII e XIX a exploração da urzela manteve-se activa em algumas das ilhas, sendo de destacar o caso das ilhas de Cabo Verde. A exploração do recur-so segue lado a lado da do azeite de purgueira para a ilu-minação48. A ROTA DA TECNOLOGIA O processo de expansão europeia não se ficou apenas pelo processo de descobrimento de novos mundos, da abertura de novos mercados e o encontro de novas gentes e produtos. A história tecnológica evidencia que a expansão europeia con-dicionou também a divulgação de técnicas e permitiu a invenção de novas que revolucionaram o processo de transição. Os homens que circulam no espaço atlântico, e de forma especial 46 Arquivo dos Açores, II, 130. 47 ANTÓNIO CARREIRA, Panaria cabo-verdeano-guineense, Cabo Verde, 1983. 48 ANTÓNIO CARREIRA, Estudos de economia caboverdiana, Lisboa, 1982. Núm. 50 (2004) 241 AS ILHAS ATLÂNTICAS. PARA UMA VISÃO DINÂMICA DA SUA HISTÓRIA 23 os colonos, suo portadores de uma cultura tecnológica que divulgam nos quatro cantos e procuram adaptar às condições de cada espaço. Á agricultura prende-se um indispensável su-porte tecnológico auxiliador do homem nas culturas do vinho e da cana sacarina. A moenda e o consequente processo de transformação da guarapa em açúcar, mel, álcool ou aguardente projectaram as áreas produtoras de canaviais para a linha da frente das ino-vações técnicas, no sentido de corresponderem às cada vez maiores exigências do mercado e da concorrência. A madeira e o metal foram a matéria-prima que deram forma a capacidade inventiva dos senhores de engenho. Na moenda da cana utili-zaram- se vários meios técnicos comuns ao mundo mediterrâ-nico. A disponibilidade de recursos hídricos conduziu à genera-lização do engenho de água. Foi a partir da Madeira que se generalizou o consumo do açúcar, sendo necessário para isso uma produção em larga es-cala. A pressão do mercado europeu conduziu a uma rápida afirmação da cultura na segunda metade do século XVI, situação que só seria possível de alimentar com o recurso a inovações tecnológicas capazes de atenderem a tais solicitações. A evo-lução para o sistema de cilindros não reverte no melhor apro-veitamento do suco da cana, mas sim vantagens acrescentadas para a rapidez no processo de esmagamento. A situação da Madeira a partir de meados do século XV foi de incremento da cultura que se aliou a inovações tecnológicas, que certamente o engenho de Diogo de Teive foi o primeiro exemplo. Os ma-deirenses estiveram ligados à promoção da cultura e construção dos primeiros engenhos açucareiros nas ilhas Canárias, Açores, S. Tomé, e Brasil, chegando mesmo ao norte de África, situação que não mereceu o agrado da coroa e foi interditado pela coroa em 153749. 49 ARM., RGCMF, t. I, fl. 372v, publ. in Arquivo Histórico da Madeira, vol. XIX (1990), pp. 79-80. 242 ANUARIO DE ESTUDIOS ATLÁNTICOS 24 ALBERTO VIEIRA AS ROTAS OCEÂNICAS E DA CIÊNCIA O Atlântico surge, a partir do século XV, como o principal espaço de circulação de veleiros, pelo que se definiu um intricado liame de rotas de navegação e comércio que ligavam o velho continente às costas africana e americana e as ilhas. Esta multiplicidade de rotas, que resultou da complemen-taridade económica das áreas insulares e continentais, surge como consequência das formas de aproveitamento económico aí adoptadas. Tudo isto completa-se com as condições geofísicas do oceano, definidas pelas correntes e ventos que delinearam o traçado das rotas e os rumos das viagens. A mais importante e duradoura de todas as rotas foi sem dúvida aquela que ligava as Índias (ocidentais e orientais) ao velho continente. Foi ela que galvanizou o empenho dos monar-cas, populações ribeirinhas e acima de tudo os piratas e cor-sários, sendo expressa por múltiplas escalas apoiadas nas ilhas que polvilhavam as costas ocidentais e orientais do mar: primeiro as Canárias e raramente a Madeira, depois Cabo Ver-de, Santa Helena e os Açores. Nos três arquipélagos, definidos como Mediterrâneo Atlântico, a intervenção nas grandes rotas faz-se a partir de algumas ilhas, sendo de referir a Madeira, Gran Canaria, La Palma, La Gomera, Tenerife, Lanzarote e Hierro, Santiago, Flores e Corvo, Terceira e S. Miguel. Para cada arquipélago afirmou-se uma ilha, servida por um bom porto de mar como o principal eixo de actividade. No mundo insular português, por exemplo, evidenciaram-se, de forma diversa, as ilhas da Madeira, Santiago e Terceira como os principais eixos. As rotas portuguesas e castelhanas apresentavam um tra-çado diferente. Enquanto as primeiras divergiam de Lisboa, as castelhanas partiam de Sevilha com destino às Antilhas, tendo como pontos importantes do raio de acção os arquipélagos das Canárias e Açores. Ambos os centros de apoio estavam sob soberania distinta: o primeiro era castelhano desde o século XV, o segundo português, o que não facilitou muito o imprescindível apoio. Mas por um lapso tempo (1585-1642) o território entrou na esfera de domínio castelhano, sem que isso tivesse significa- Núm. 50 (2004) 243 AS ILHAS ATLÂNTICAS. PARA UMA VISÃO DINÂMICA DA SUA HISTÓRIA 25 do maior segurança para as armadas. Apenas se intensificaram as operações de represália de franceses, ingleses e holandeses. As expedições organizadas pela coroa espanhola na década de oitenta com destino à Terceira tinham uma dupla missão: de-fender e comboiar as armadas das Índias até porto seguro, em Lisboa ou Sevilha, e ocupar a ilha para aí instalar uma base de apoio e de defesa das rotas oceânicas. A escala açoriana justi-ficava- se mais por necessidade de protecção das armadas do que por necessidade de reabastecimento ou reparo das embarcações. Era à entrada dos mares açorianos, junto da ilha das Flores, que se reuniam os navios das armadas e se procedia ao comboia-mento até o porto seguro na península, furtando-os à cobiça dos corsários, que infestavam os mares. Desde o início que a segurança das frotas foi uma das mais evidentes preocupações para a navegação atlântica pelo que as coroas peninsulares delinearam, em separado, um plano de defesa e apoio. Em Portugal tivemos o regimento para as naus da Índia nos Açores, promulgado em 1520, em que foram estabelecidas normas para impedir que as mercadorias caíssem nas mãos da cobiça por meio do contrabando e corso. A necessidade de garantir com eficácia tal apoio e defesa das ar-madas levou a coroa portuguesa a criar, em data anterior a 1527, a Provedoria das Armadas, com sede na cidade de Angra50. A nomeação em 1527 de Pero Anes do Canto para provedor das armadas da Índia, Brasil e Guiné, marca o início da viragem. Ao provedor competia a superintendência de toda a defesa, abastecimento e apoio às embarcações em escala ou de passa-gem pelos mares açorianos. Além disso estava sob as suas ordens a armada das ilhas, criada expressamente para comboiar, desde as Flores até Lisboa, todas aquelas provenientes do Bra-sil, Índia e Mina. Esta estrutura de apoio fazia falta aos castelhanos na área considerada crucial para a navegação atlântica, e por isso por diversas vezes solicitaram o apoio das autoridades açorianas. Mas a ineficácia ou a necessidade de uma guarda e defesa mais actuante obrigou-os a reorganizar a carreira, criando o sistema de frotas. Desde 1521 as frotas 50 Confronte-se o nosso estudo sobre O comércio inter-insular nos séculos XV e XVI, Funchal, 1987, 17-24. 244 ANUARIO DE ESTUDIOS ATLÁNTICOS 26 ALBERTO VIEIRA passaram a usufruir de uma nova estrutura organizativa e de-fensiva. No começo foi o sistema de frotas anuais artilhadas ou escoltadas por uma armada. Depois a partir de 1555 o estabele-cimento de duas frotas para o tráfico americano: Nueva Espana e Tierra Firme. O activo protagonismo do arquipélago açoriano e, em espe-cial, da ilha Terceira é referenciado com frequência por ro-teiristas e marinheiros que nos deram conta das viagens ou os literatos açorianos que presenciaram a realidade. Todos falam da importância do porto de Angra que, no dizer de Gaspar Frutuoso, era «universal escala do mar do poente»51. A participação do arquipélago madeirense nas grandes rotas oceânicas foi esporádica, justificando-se a ausência pelo posi-cionamento marginal em relação ao traçado ideal. A proxi-midade da Madeira em relação aos portos do litoral peninsular e as condições dos ventos e correntes marítimas foram o princi-pal obstáculo à valorização da ilha no contexto das navegações atlânticas. As Canárias, porque melhor posicionadas e distri-buídas por sete ilhas em latitudes diferentes, estavam em condições de oferecer o adequado serviço de apoio. Todavia a situação conturbada que aí se viveu, resultado da disputa pela posse entre as coroas peninsulares e a demorada pacificação da população indígena, fizeram com que a Madeira surgisse no século XV como um dos principais eixos do domínio e navegação portuguesa no Atlântico. Já a partir de princípios do século XVI a Madeira surgirá apenas como um ponto de referência para a navegação atlântica, uma escala ocasional para reparo e aprovisionamento de vinho. Apenas o surto económico da ilha conseguirá atrair as atenções das armadas, navegantes e aven-tureiros. As ilhas foram as portas de entrada e saída e por isso mesmo assumiram um papel importante nas rotas atlânticas. Mas para sulcar longas distâncias rumo ao Brasil, à costa africana ou ao Indico, era necessário dispor de mais portos de escala, pois a viagem era longa e difícil. As áreas comerciais da costa da Guiné e, depois, com a ultrapassagem do cabo da Boa Esperança, as indicas tornaram 51 Livro Sexto das Saudades da Terra, Cap. II. Núm. 50 (2004) 245 AS ILHAS ATLÂNTICAS. PARA UMA VISÃO DINÂMICA DA SUA HISTÓRIA 27 indispensável a existência de escalas intermédias. Primeiro Arguim que serviu de feitoria e escala para a zona da Costa da Guiné, depois, com a revelação de Cabo Verde, foi a ilha de Santiago que se afirmou como a principal escala da rota de ida para os portugueses e podia muito bem substituir as Canárias ou a Madeira, o que realmente aconteceu. Outras mais ilhas assumiram um lugar proeminente no traçado das rotas. É o caso de S. Tomé para a área de navegação do golfo da Guiné e de Santa Helena para as caravelas da rota do Cabo. Também a projecção dos arquipélagos de S. Tomé e Cabo Verde sobre os espaços vizinhas da costa africana levou a coroa a criar duas feitorias (Santiago e S. Tomé) como objectivo de controlar to-das as transacções comerciais da costa africana. No Atlântico sul as principais escalas das rotas do Índico assentavam nos portos das ilhas de Santiago, Santa Helena e Ascensão. Aí as armadas reabasteciam-se de água, lenha, mantimentos ou procediam a ligeiras reparações. A par disso releva-se, ainda, a de Santa Helena como escala de reagrupamento das frotas vindas da Índia depois de ultrapassado o cabo, isto é, missão idêntica à dos Açores no final da travessia oceânica. A função da ilha de San-tiago com escala do mar oceano foi efémera. A partir da déca-da de trinta do século XVI as escalas são menos assíduas. O mar era já conhecido e as embarcações de maior calado permitiam viagens mais prolongadas. Apenas os náufragos dos temporais aí aparecem à procura de refúgio. O século dezanove foi marcado por uma mudança total no sistema de rotas do Atlântico. Os progressos no desenvolvimento da máquina a vapor fizeram com que se elaborasse um novo plano de portos de escala, capazes de servirem de apoio à navegação como fornecedores dos produtos em troca e do carvão para a laboração das máquinas. Nos Açores o porto de Angra cedeu o lugar aos da Horta e Ponta Delgada, enquanto em Cabo Verde a ilha de Santiago foi substituída pela de S. Vicente, lugar que disputava com as Canárias. Entretanto o Funchal viu reforçada a posição pela dupla oferta como porto carvoeiro e do vinho, atraindo inúmeras embarcações inglesas e americanas. A par disso a posição privilegiada que os ingleses gozavam levou a que se servissem do porto como base para as 246 ANUARIO DE ESTUDIOS ATLÁNTICOS 28 ALBERTO VIEIRA actividades de corso contra os franceses e castelhanos. Esta nova aposta no sector de serviços de apoio à navegação comercial e de passageiros vai depender de uma outra política, a dos portos francos, que apenas o arquipélago das Canárias conseguiu le-var por diante. As ilhas foram no século XVIII um centro chave das trans-formações sócio-políticas então operadas, de ambos os lados do oceano, fruto da forte presença da comunidade inglesa. Esta vinculação ao império britânico é bastante evidente no quoti-diano e devir histórico nos séculos XVIII e XIX52. A Madeira, no decurso do século XVIII, firmou a vocação atlântica, contribuindo para isso o facto de os ingleses não dispensarem o porto do Funchal e o vinho na sua estratégia colonial. As diversas actas de navegação (1660, 1665), corroboradas pelos tratados de amizade, de que merece relevo o de Methuen (1703)53, foram os meios que abriram o caminho para que a Madeira entrasse na área de influência do mundo inglês54. Aos poucos, esta comu-nidade ganhou uma posição de respeito que, por vezes, se tornava incomodativa55. A presença e importância da feitoria inglesa, no decurso do século XVIII, é uma realidade insofismável. A presença de armadas inglesas no Funchal era constante sendo o relacionamento com as autoridades locais amistoso, recebidos pelo Governador com toda a hospitalidade56. Destas relevam-se as de 1799 e 1805, compostas, respectivamente de 108 e 112 embarcações57. Para além disto era assídua a presença de uma 52 DESMOND GREGORY, The Beneficent Usurpers. A History of the British in Madeira, London, 1988. 53 Public Record Office, FO 811/1, cartas dos privilégios da nação britânica com Portugal desde 1401 a 1805. 54 J. H. FISHER, The Methuen a Pombal. O comércio anglo-português de 1700 a 1770, Lisboa, 1984, p. 29. 55 Em 1754 o Governador Manuel Saldanha Albuquerque lamenta o exclusivo do comércio inglês na ilha (AHU, Madeira e Porto Santo, nº 48-49). 56 Public Record Office, FO 63/7, sabe-se que por ordem de 14 de Junho de 1722 as embarcações com destino às colónias permaneciam alguns dias no Funchal. A 20 de Janeiro de 1786 são 20 barcos em tal situação, coor-denada pelo cônsul. 57 AHU, Madeira e Porto Santo, nº 1125, 1620, 22 de Outubro de 1799 e 7 de Outubro de 1805. Núm. 50 (2004) 247 AS ILHAS ATLÂNTICAS. PARA UMA VISÃO DINÂMICA DA SUA HISTÓRIA 29 esquadra inglesa a patrulhar o mar madeirense, sendo a de 1780 comandada por Jonhstone58. A ilha de Santa Catarina do litoral sul do Brasil, funcionou para os portugueses a partir de finais do século XVII como uma fortaleza de apoio e defesa à navegação rumo ao Rio da Prata. Ao mesmo tempo jogou um papel fundamental na penetração e afirmação da soberania portuguesa no Sul. Esta posição favo-receu o estabelecimento de assíduos contactos com outros portos do litoral brasileiro, como Santos, Baía e Recife59. A partir de meados do século XIX a Madeira e as Canárias especializam-se como portos de escala de navios de passageiros, com especial destaque para os ingleses. Para isso contribuiu a tradicional presença britânica e a afirmação da ilha com estân-cia turística. Nos Açores assiste-se no decurso do século XVII a uma clara mudança dos espaços portuários de dimensão intercontinental. A Horta pela posição charneira no grupo central e pelo desta-que que assumiu no apoio à baleação dos americanos acabou por ser o porto oceânico de apoio às pescarias, ao comércio americano e fornecimento de carvão, retirando importância ao de Angra. A posição foi reforçada na segunda metade do sécu-lo XIX com a amarração dos cabos submarinos. Por outro lado o centro económico do arquipélago situava-se na ilha de S. Mi-guel, o que implicava a valorização do porto de mar. Em Cabo Verde ocorreram idênticas mudanças que levaram à desvalorização de Santiago em favor de S. Vicente. O porto oceânico transformou-se num oásis oceânico das embarcações conduzidas a vapor que aí demandavam à procura do necessário abastecimento de carvão e um eixo de amarração de cabos sub-marinos. O processo foi evidente a partir 1838 com a criação da vila nas proximidades do Porto Grande e a instalação do primeiro depósito de carvão pelo cônsul inglês John Rendall. A situação muda a partir de 1883, pois a agressividade espanho-la através dos portos francos de Las Palmas e Santa Cruz de Tenerife associada à modernização do porto francês de Da- 58 Ibidem, nº 545, 22 de Janeiro de 1780. 59 Cf. FERNANDO HENRIQUES CARDOSO, Negros em Florianópolis. Relações Sociais e Económicas, Florianópolis, 2000, pp. 41-42, 50, 79, 93. 248 ANUARIO DE ESTUDIOS ATLÁNTICOS 30 ALBERTO VIEIRA kar conduziram à desvalorização dos portos portugueses nas ilhas. Já a presente centúria atribui uma dimensão distinta às ilhas. Assim, o jogo de interesses entre o continente europeu e ameri-cano fez com que algumas se transformassem em peças chave da hegemonia económica. Daqui resultou a disputa entre Alemanha e Inglaterra por conseguir traze-las à sua esfera de influência. A política dos sanatórios foi o subterfúgio usado pe-los alemães para iludir as pretensões expansionistas no Atlântico. Na base disto está o conflito gerado pela questão dos sanatórios na Madeira, que teve como instigador a Inglaterra60. Aqui, mais uma vez a Inglaterra usufruiu de uma posição favorável ao rei-vindicar a tradição histórica da aliança61. A percepção da importância das ilhas na afirmação da hegemonia marítima britânica levou Thomas Ashe (1813)62 a reivindicar para os Açores a transformação num protectorado britânico. Nos anos vinte os vapores começaram a ceder o lugar às «máquinas voadoras», paulatinamente a aviação civil foi con-quistando o mercado de transporte de passageiros. Mesmo assim as ilhas continuaram a manter o papel de apoio às rotas transatlânticas. Nos Açores tivemos a ilha de Santa Maria, enquanto em Cabo Verde idêntico papel foi atribuído à ilha do Sal desde 193963. Até ao aparecimento e vulgarização da telegrafia sem fios a estratégia de circulação da informação assentava nas ilhas. As ilhas da Madeira, Faial e São Vicente foram de novo motivo de 60 GISELA MEDINA GUEVARA, As relações luso-alemãs antes da Primeira Guerra Mundial. A questão da concessão dos sanatórios da Ilha da Madeira, Lisboa, 1997. 61 Cf. ANTÓNIO JOSÉ TELO, Os Açores e o controlo do Atlântico, Lis-boa, 1993. 62 ASHE, T(HOMAS), History of the Azores on Western Islands; Containing an Account of the Government, Laws and Religion, the Martners, Ceremonies and Character of the Inhabitants and demonstrating the Importance of these Valuable Islands to the British Empire, Ed. Sherwood, Neely, and Jones, Londres, 1813. 63 FRANCIS M. ROGERS, Atlantic Islanders of the Azores and Madeiras, Massachusetts, 1979, pp. 191-208; R. E. G. DAVIES, A History of the World’s Airlines, London, 1964. Núm. 50 (2004) 249 AS ILHAS ATLÂNTICAS. PARA UMA VISÃO DINÂMICA DA SUA HISTÓRIA 31 disputa e interesses por ingleses e alemães64. A cidade da Horta rapidamente se transformou num nó de amarração de cabos submarinos que ligavam a Europa, América, África do Sul e Brasil, assinalando-se em 1926 a existência de quinze cabos65. O mesmo acontecia na ilha de S. Vicente onde amarrou o cabo submarino inglês em 1874. ESCALAS DA CIÊNCIA Desde o século dezoito que a literatura científica e de viagens definiu este conjunto de ilhas como uma unidade de análise. São as Western Islands que encabeçam os títulos das publicações66. Aqui entendia-se quase sempre os Açores, mas muitas vezes associava-se as Canárias, a Madeira e, raramente Cabo Verde. As ilhas entraram rapidamente no universo da ciência euro-peia dos séculos XVIII e XIX. Ambas as centúrias foram momen-tos de assinaláveis descobertas do mundo com um estudo siste-mático da fauna e flora67. As técnicas de classificação das espécies da fauna e flora têm aqui um espaço ideal de trabalho. Algumas colecções foram feitas para deleite dos apreciadores, que figuram em lista que antecede a publicação68. O homem do século XVIII perdeu o medo ao meio circundan-te e passou a olhá-lo com maior curiosidade e, como dono da 64 PAUL KENNEDY, «Imperial Cable Comunications and Strategy, 1870- 1914», in The English Historical Review, vol. LXXXVI, 1971; FRANCIS M. ROGERS, ob. cit., pp. 175-190, 209-230; CHARLES BRIGHT, Submarine Tele-graphs: Their History, Construction and Working, London, 1898; K. C. BAGHAHOLE, A Century of Service. A Brief History of Cable and Wireless Ltd 1868-1968, London, 1970; K. R. HAIGH, Cableships and Submarine Cables, London, 1968; H. H. SCHENCK (org.), The World’s Submarine Telephone Ca-ble Systems, Washington DC, 1975. 65 F. S. WESTON, «Os cabos submarinos nos Açores», in Boletim do Núcleo Cultural da Horta, vol. III, nº 2, 1963. 66 VÍCTOR MORALES LEZCANO, Los ingleses en Canarias. Libro de viajes e historias de vida, Las Palmas de Gran Canaria, 1986, p. 124 67 MARY L. PRATT, Imperial Eye.Travel Writing and Transculturation, N.Y., 1993; B. M. STAFFORD, Voyage into Substance — Science, Nature and the Illustrated Travel Account 1770-1840, Cambridge, Mass., 1984, pp. 565-634. 68 Estampas, aguarelas e desenhos da Madeira Romântica, Funchal, 1988. 250 ANUARIO DE ESTUDIOS ATLÁNTICOS 32 ALBERTO VIEIRA criação, estava-lhe atribuída a missão de perscrutar os segredos ocultos. Este impulso justifica o afã científico. A ciência está baseada na observação directa e experimentação. A insaciável procura e descoberta da natureza circundante cativou toda a Europa, mas foram os ingleses quem entre nós marcaram presença, sendo menor a de franceses e alemães69. Aqui são pro-tagonistas as Canárias e a Madeira. Tudo isto foi resultado da função de escala à navegação e comércio no Atlântico. Se as embarcações de comércio, as expedições militares tinham esca-la obrigatória, mais razões assistiam às científicas. As ilhas, pelo endemismo que as caracteriza, história geo-botânica, permitiram o primeiro ensaio das técnicas de pesquisa. Foram também um meio revelador da incessante busca do conhecimento da Geo-logia e Botânica. Instituições seculares, como o British Museum, Linean So-ciety, e Kew Gardens, enviaram especialistas para a recolha de espécies botânicas. Os estudos no domínio da Geologia, botânica e flora são resultado da presença fortuita ou intencional dos cientistas europeus. Esta moda levou a que as instituições cien-tíficas europeias ficassem depositárias das mais importantes colecções de fauna e flora das ilhas: o Museu Britânico, Linnean Society, Kew Gardens, a Universidade de Kiel, Universidade de Cambridge, Museu de História Natural de Paris. E por cá passaram destacados especialistas da época, sendo de realçar John Byron, James Cook, Humbolt, John Forster. Darwin esteve nas Canárias e Açores (1836) e mandou um discípulo à Madeira. No arquipélago açoriano o cientista mais ilustre terá sido o Prín-cipe Alberto I do Mónaco que aí aportou em 1885. James Cook escalou a Madeira por duas vezes em 1768 e 1772, numa répli-ca da viagem de circum-navegação apenas com interesse cientí-fico. Os cientistas que o acompanharam intrometeram-se no interior da ilha à busca das raridades botânicas para a classi-ficação e revelação à comunidade científica. Em 1775 o na-vegador estava no Faial e no ano imediato em Tenerife. 69 Cf. «Algumas das Figuras Ilustres Estrangeiras que Visitaram a Madeira», in Revista Portuguesa, 72, 1953; A. LOPES DE OLIVEIRA, Arqui-pélago da Madeira. Epopeia Humana, Braga, 1969, pp. 132-134. Núm. 50 (2004) 251 AS ILHAS ATLÂNTICAS. PARA UMA VISÃO DINÂMICA DA SUA HISTÓRIA 33 Os Arquipélagos da Madeira e Canárias, devido à posição estratégica na rota que ligava a Europa ao mundo colonial, foram activos protagonistas nos rumos da Ciência dos séculos XVIII e XIX. Já aos Açores estava reservado o papel de anco-radouro seguro antes de se avistar a Europa. Foi isto que o catapultou para uma posição privilegiada na história de nave-gação e comércio do Atlântico. Nas Canárias a primeira e mais antiga à presença de naturalistas ingleses é de 1697, ano em que James Cuningham esteve em La Palma. O século XVIII anunciou-se como de forte presença, nomeadamente dos fran-ceses. O contacto do cientista com o arquipélago açoriano fazia-se quase sempre na rota de regresso de Africa ou América. Para os americanos as ilhas eram a primeira escala de descoberta do velho mundo. Por outro lado os Açores despertaram a curiosi-dade das instituições e cientistas europeus. Os aspectos geoló-gicos, nomeadamente os fenómenos vulcânicos foram o princi-pal alvo. Mesmo assim o volume de estudos não atingiu a dimensão dos referentes à Madeira e Canárias pelo que Mau-rício Senbert em 1838 foi levado a afirmar que a «flora destas ilhas [fora]por tanto tempo despresada», o que levou a dedicar-se ao estudo70. As ilhas são o principal alvo de atenção de botânicos, ictió-logos, geólogos. A situação é descrita por Alfredo Herrera Piqué a considerar como «a escala científica do Atlântico»71. Os ingle-ses foram os primeiros a descobrir as qualidades do clima e paisagem e a divulga-los junto dos compatriotas. É esta a dimensão quase esquecida como motivo despertador da ciência e cultura europeia desde o século XVIII que importa realçar A aclimatação das plantas com valor económico, medicinal ou ornamental adquiriu cada vez mais importância. Aliás, foi o interesse medicinal que provocou desde o século XVII o estudo72. Em qualquer dos momentos assinalados as ilhas cumpriram o papel de ponte e espaço de adaptação da flora colonial. Os 70 «Flora Azorica», in Archivo dos Açores, XIV (1983), pp. 326-339. 71 Las Islas Canarias. Escala científica en el Atlántico. Viajeros y natura-listas en el siglo XVIII, Madrid, 1987. 72 K. THOMAS, Man and the Natural World. Changing Attitudes in England. 1500-1800, Oxford, 1983, p. 27, 65-67. 252 ANUARIO DE ESTUDIOS ATLÁNTICOS 34 ALBERTO VIEIRA jardins de aclimatação foram a moda que na Madeira e Açores tiveram por palco as amplas e paradisíacas quintas. A Inglate-rra do século XIX popularizou os jardins e as flores73. A am-biência chegou à ilha através dos mesmos súbditos de Sua Majestade. As ilhas exerceram um fascínio especial em todos os visitantes e parece que nunca perderam a imortal característica de jardins à beira do oceano. As ilhas foram jardins e como tal continuam a ser o encanto dos que a procuram, sejam turistas ou cientistas. No século XVIII as ilhas assumiram um novo papel no mun-do europeu. Assim, de espaços económicos passaram a contri-buir para alívio e cura de doenças. O mundo rural perdeu importância em favor da área em torno do Funchal, que se transforma num hospital para a cura da tísica pulmonar ou de quarentena na passagem do calor tórrido das colónias para os dias frios e nebulosos de Londres. A função catapultou as ilhas da Madeira e Canárias para uma afirmação evidente. O debate das potencialidades terapêuticas da climatologia propiciou um grupo numeroso de estudos e gerou a escala frequente de estudiosos74. As estâncias de cura surgiram pri-meiro na bacia mediterrânica e depois expandiram-se no sécu-lo XVIII até à Madeira e só na centúria seguinte chegaram às Canárias75. Daqui resultou uma prolixa literatura de viagens fonte fun-damental para o conhecimento da sociedade oitocentista das ilhas. Ao historiador está atribuída a tarefa de interpretar estas impressões76. Aqui são merecedoras de destaque duas mulheres: 73 Cf. K. THOMAS, ibidem, pp. 207-209, 210-260. 74 JAMES CLARK, The Sanative Influence of Climate, Londres, 1840; W. HUGGARD, A Handbook of Climatic Treatment, Londres, 1906; NICOLÁS GONZÁLEZ LEMUS, Las Islas de la Ilusión. Británicos en Tenerife, 1850-1900, Las Palmas, 1995; TOMÁS ZEROLO, Climatoterapia de la tuberculosis pul-monar en la Península española, Islas Baleares y Canarias, Santa Cruz de Tenerife, 1889. 75 M. J. BÁGUERRA CERVELLERA, La tuberculosis y su história, Barcelo-na, 1992. 76 ANTÓNIO RIBEIRO MARQUES DA SILVA, Apontamentos sobre o quotidiano madeirense (1750-1900), Lisboa, 1994; N. GONZÁLEZ LEMUS, Viajeros victorianos en Canarias, Las Palmas, 1998. Núm. 50 (2004) 253 AS ILHAS ATLÂNTICAS. PARA UMA VISÃO DINÂMICA DA SUA HISTÓRIA 35 Isabella de França77 para a Madeira e Olívia Stone78 para as Canárias. A presença de viajantes e «invalids» nas ilhas conduziu à necessidade de criação de infra-estruturas de apoio. Se num primeiro estes se socorriam da hospitalidade dos insulares, num segundo momento a cada vez mais maior afluência de foras-teiros obrigou à montagem de uma estrutura hoteleira de apoio. Aos primeiros as portas eram franqueadas por carta de recomen-dação. A isto juntou-se a publicidade através da literatura de viagens e guias. Os guias forneciam as informações indispen-sáveis para a instalação no Funchal e viagem no interior da ilha, acompanhados de breves apontamentos sobre a História, costumes, fauna e flora79. O primeiro guia de conjunto dos arquipélagos é de William W. Cooper80 e A Samler Brown81. O último tornou-se num best-seller atingindo 14 edições. Tenha-se em conta os destinatários dos guias. Assim em 1851 James Yate Johnson e Robert White82 fazem apelo aos «invalid and other visitors», enquanto em 1887 Harold Lee83 dirige-se aos «tourists» e em 1914 temos o primeiro guia turístico de C. A. Power84. Este 77 Journal of a visit to Madeira and Portugal (1853-1954), Funchal, 1970. Todavia, a primeira viajante na ilha foi Maria Riddel que em 1788 visitou a ilha durante 11 dias: A Voyage to The Madeira..., Edinburgh, 1792. 78 Teneriffe and its Six Satellites (1887). 79 Para a Madeira, um dos mais antigos guias que se conhece é anóni-mo, seguindo-se os de Robert White [Madeira its Climate and Scenery containing Medical and General Information for Invalids and Visitors; a Tour of the Island, Londres, 1825], E. V. Harcourt [A Sketch of Madeira Containing Information for the Traveller or Invalid Visitor, Londres, 1851], J. Y. Johnson [Madeira its Climate and Scenery. A Handbook for Invalids and other Visitors, Edinburg, 2ª ed., 1857, 3ª ed., 1860] e E. M. Taylor [Madeira its Scenery and How to See it with Letters of a Year’s Residence and Lists of the Trees, Flowers, Ferns, and Seaweeds, Londres, 1ª ed., 1882, 2ª ed., 1889]. 80 The Invalid’s Guide To Madeira With a Description of Tenerife..., Lon-dres, 1840. 81 Madeira and the Canary Islands. 82 Madeira Its Climate and Scenery. A Handbook for Invalid and Other Visitors, Edimburgo, 1851. 83 Madeira and the Canary islands. A Handbook for Tourists, Liver-pool, 1887. 84 Tourist’s Guide to the Island of Madeira, Londres, 1914. 254 ANUARIO DE ESTUDIOS ATLÁNTICOS 36 ALBERTO VIEIRA deverá marcar nas ilhas o fim do chamado turismo terapêutico e o início do actual. Não temos dados seguros quanto ao desenvolvimento da hotelaria nas ilhas, pois apenas dispomos de informação avulsa85. Os Hotéis são referenciados em meados do século XIX mas desde os inícios do século XV que as cidades portuárias de activo movimento de forasteiro deveriam possuir estalagens. A documentação oficial faz eco disso como se poderá provar pelas posturas e actas da vereação dos municípios servidos de portos. No caso da Madeira assinala-se em 1850 a existência de dois hotéis (the London Hotel e Yate’s Hotel Family) a que se juntaram outros dez em 188986. Em princípios do século XX a capacidade hoteleira havia aumentado, sendo doze os hotéis em funcionamento que poderiam hospedar cerca de oitocentos visi-tantes87. As Canárias, nomeadamente Tenerife e Furteventura, jun-taram- se à Madeira no turismo terapêutico desde meados do século XIX88. Note-se que em 1865 Nicolás Benitez de Lugo construiu em La Orotava (Tenerife) «un estabelecimiento para extranjeros enfermos». Deverá ter sido nesta época que Tenerife se estreou como health resort, concorrendo com a Madeira89. O Vale de La Orotava, através do seu porto (hoje Puerto de La Cruz), afirma-se como a principal estância. Isto provocou o 85 Apenas a partir de 1891 temos o Registo de Licenças de Botequins, tabernas, Hoteis, Estalagens, Clubes e Lotaria (1891-1901). Cf. FÁTIMA FREI-TAS GOMES, «Hotéis e Hospedarias (1891-1901)», in Atlântico, nº 19, 1989, 170-177. 86 Isto de acordo com as informações de J. Driver (Guide to Visitors, Londres, 1850) e C. A. Mourão Pita (Madère, Station Mèdicale Fixe, Pa-ris, 1889). 87 MARQUÊS DE JÁCOME CORREIA, A Ilha da Madeira, Coimbra, 1927, p. 232. 88 W. COOPER, The Invalid’s Guide to Madeira with a Description of Tenerife, Londres, 1840; M. DOUGLAS, Grand Canary as a Heatlth Resort for Consummptives and Others, London, 1887; JOHN WHITEFORD, The Canary Islands as a Winter Resort, Londres, 1890; GEORGE VICTOR PÉREZ, Orotava as a Health Resort, Londres, 1893. 89 Note-se que em 1861 Richard F. Burton (Viajes a las Islas Canarias, I, 1861, Puerto de la Cruz, 1999, p. 26) que na sua viagem todos os tuberculosos ficaram na Madeira. Núm. 50 (2004) 255 AS ILHAS ATLÂNTICAS. PARA UMA VISÃO DINÂMICA DA SUA HISTÓRIA 37 desenvolvimento da indústria hoteleira, que depois alastrou à cidade de Santa Cruz de Tenerife90. Vários factores permitiram a rápida ascensão de Tenerife e Gran Canária na segunda metade do século XIX que assumissem rapidamente a dianteira face à Madeira. A afirmação de Santa Cruz de Tenerife como porto abastecedor de carvão, a declaração dos portos francos em 1852 fizeram atrair para aqui todas as linhas francesas e ingle-sas de navegação e comércio. A aposta no turismo e serviços portuários permitiu a saída da crise económica e uma posição privilegiada face à concorrência da Madeira ou Açores91. Nos Açores o turismo é mais recente. Bullar (1841) refere a presença de doentes americanos na Horta, o que conduziu ao aparecimento do primeiro hotel conhecido no Faial, em 1842. Em 1860 chegou o primeiro grupo de visitantes norte-america-nos, mas só em 1894 eram conhecidos como tourists92. Já na ilha de Santa Catarina a vocação turística foi descoberta nas duas últimas décadas do século XX. AS ILHAS E O NOVO MUNDO A definição dos espaços económicos não resultou apenas dos interesses políticos e económicos resultante da conjuntura 90 A. HERNÁNDEZ GUTIÉRREZ, De la Quinta Roja al Hotel Taoro, Puerto de la Cruz, 1983; IDEM, Cuando los hoteles eran palacios, Islas Canarias, 1990; A. GUIMERÁ RAVINA, El Hotel Marquesa, Puerto de la Cruz, 1988; IDEM, El Hotel Taoro, 1890-1990. Cien años de turismo en Tenerife, Santa Cruz de Tenerife, 1991. 91 Madeirenses e açorianos cedo se aperceberam desta realidade culpan-do as autoridades de Lisboa. Vide: JOÃO AUGUSTO D’ORNELLAS, A Madeira e as Canárias, Funchal, 1884; JOÃO SAUVAIRE DE VASCONCELOS, Representação da Câmara Municipal da Cidade do Funchal ao Governo de S. M. sobre Diversas Medidas Tendentes a Conservar e Arruinar a Navegação de passagem neste Porto dos Paquetes Transatlânticos, Funchal, 1884; VISCONDE VALLE PARAIZO, Propostas Apresentadas pela Commissão Nomeada em Assembleia da Associação Commercial do Funchal de 14 de Novembro de 1894 para Estudar as Causas do Desvio da Navegação do Nosso Porto e do Afastamento de Forasteiros, Funchal, 1895; MARIA ISABEL JOÃO, Os Açores no século XIX. Economia, Sociedade e Movimento Autonomista, Lisboa, 1991. 92 RICARDO MANUEL MADRUGA DA COSTA, Açores, Western Islands. Um Contributo para o Estudo do Turismo nos Açores, Horta, 1989. 256 ANUARIO DE ESTUDIOS ATLÁNTICOS 38 ALBERTO VIEIRA expansionista europeia mas também das condições internas, oferecidas pelo meio. São ilhas com a mesma origem geológica, sem quaisquer vestígios de ocupação humana, mas com dife-renças ao nível climático. Daqui resultou a diversidade de for-mas de valorização económica e social. As condições morfo-ló-gicas estabeleceram as especificidades de cada ilha e tornam possível a delimitação do espaço e a forma de aproveitamento económico. A possibilidade de acesso ao exterior através de bons ancoradouros era um factor importante. A mudança de centros de influência foi responsável de os arquipélagos atlânticos assumirem uma função importante. A isso poderá juntar-se a constante presença de gentes ribeirinhas do Mediterrâneo, interessadas em estabelecer os produtos e o necessário suporte financeiro. A constante premência do Me-diterrâneo nos primórdios da expansão atlântica poderá ser responsabilizada pela dominante mercantil das novas experiên-cias de arroteamento. Certamente que os povos peninsulares e mediterrânicos, ao comprometerem-se com o processo atlântico, não puseram de parte a tradição agrícola e incentivos co-merciais dos mercados de origem. Por isso na bagagem dos primeiros cabouqueiros insulares foram imprescindíveis as cepas, as socas de cana, alguns grãos do precioso cereal, de mistura com artefactos e ferramentas. A afirmação das áreas atlânticas resultou do transplante material e humana de que os peninsu-lares foram os principais obreiros. Foi a primeira experiência de ajustamento das arroteias às directrizes da nova economia de mercado. Ao nível do sector produtivo deverá ter-se em conta a importância assumida pelas condições geofísicas e a política distributiva das culturas. É da conjugação de ambas que se estabelece a necessária hierarquia. Os solos mais ricos eram reservados às culturas de maior rentabilidade económica (o tri-go, a cana de açúcar, o pastel), enquanto os medianos ficavam para os produtos hortícolas e frutícolas e os mais pobres eram pasto e área florestal. A Madeira, que se encontrava a pouco mais de meio século de existência como sociedade insular, estava em condições de oferecer os contingentes de colonos habilitados para a abertura Núm. 50 (2004) 257 AS ILHAS ATLÂNTICAS. PARA UMA VISÃO DINÂMICA DA SUA HISTÓRIA 39 de novas arroteias e lançamento de culturas. Assim terá sucedi-do com o transplante da cana-de-açúcar para Santa Maria, S. Miguel, Terceira, Gran Canária, Tenerife, Santiago, S. Tomé e Brasil. A tendência uniformizadora da economia agrícola do espaço insular esbarrou com vários obstáculos que, depois, conduziram ao reajustamento da política económica e à definição da com-plementaridade entre arquipélagos e ilhas. As ilhas criaram os meios necessários para solucionar os problemas quotidianos — assentes quase sempre no assegurar os componentes da die-ta alimentar —, à afirmação nos mercados europeu e atlântico. Assim sucedeu com os cereais que, produzidos apenas em algumas, foram suficientes para satisfazer as necessidades da dieta insular, sobrando um grande excedente para suprir as carências do reino. O cereal conduziu a uma ligação harmo-niosa dos espaços insulares, o mesmo não sucedendo com o açúcar, o pastel e o vinho, responsáveis pelo afrontamento e crítica desarticulação. Todos os produtos foram o suporte do domínio europeu na economia insular. Primeiro o açúcar, depois o pastel e o vinho exerceram uma acção devastadora no equilíbrio latente na economia. A incessante procura e rendoso negócio conduziram à plena afirmação, quase que exclusiva dos produtos, gerando a dependência ao mercado externo. Para além de consumidor exclusivo das culturas é o principal fornecedor dos produtos ou artefactos que os insulares carecem. A estrutura do sector produtivo de cada ilha moldou-se de acordo com isto, podendo definir-se em componentes da dieta alimentar (cereais, vinha, hortas, fruteiras, gado) e troca comercial (pastel, açúcar). Em consonância com a actividade agrícola verificou-se a valorização dos recursos disponibilizados por cada ilha, que integravam a dieta alimentar (pesca e silvicultura) ou as trocas comerciais (urzela, sumagre, madeiras). 258 ANUARIO DE ESTUDIOS ATLÁNTICOS 40 ALBERTO VIEIRA PIRATAS E CORSÁRIOS O século quinze foi marcado pela afirmação do Atlântico, novo espaço oceânico revelado pelos peninsulares. O mar, que até meados do século catorze se mantivera alheio à vida do mundo europeu, atraiu as atenções e em pouco tempo substituiu o mercado e via mediterrâneos. Franceses, ingleses e holande-ses que, num primeiro momento, foram apenas espectadores atentos, entraram n disputa a reivindicar um mare liberum e o usufruto das novas rotas e mercados. O Atlântico não foi ape-nas o mercado e via comercial, por excelência, da Europa, mas também um dos palcos dos conflitos que definiam as opções políticas, expressas muitas vezes na guerra de corso. Em 1434, ultrapassado o Bojador, o principal problema não estava no avanço das viagens, mas na forma de assegurar a exclusividade, o que na área aquém deste limite não fora conseguido. Primeiro foi a concessão em 1443 ao infante D. Henrique do controlo exclusivo das navegações e o direito de fazer guerra a sul do mesmo cabo. Depois a procura do beneplácito papal, na qualidade de autoridade suprema estabelecida pela «res publica christiana»93. A presença de estrangeiros foi considerada serviço ao Infan-te, como sucedeu com Cadamosto, António da Noli, Usodimare, Valarte e Martim Behaim, ou uma forma de usurpar o domínio e afronta ao papado. Os castelhanos, a partir da década de se-tenta, intervieram na Costa da Guiné como forma de represália às pretensões portuguesas à posse das Canárias. Não obstante as medidas repressivas, definidas em 1474 aos intrusos no comércio da Guiné, a presença castelhana continuará a ser um problema de difícil solução, alcançada apenas com cedências mútuas exaradas em 1479 em Alcáçovas e depois confirmado a 93 As bulas de Eugénio IV (1445), Nicolau V (1450 e 1452) preludiaram o que veio a ser definido pela célebre bula «Romanus Pontifex» de 8 de Janeiro de 1454 e «inter coetera» de 13 de Março de 1456. Nela se legitimava a posse exclusiva aos portugueses dos mares além do Bojador pelo que a sua ultrapassagem para nacionais e estrangeiros só seria possível com a anuência do infante D. Henrique. Núm. 50 (2004) 259 AS ILHAS ATLÂNTICAS. PARA UMA VISÃO DINÂMICA DA SUA HISTÓRIA 41 6 de Março do ano seguinte em Toledo. À partilha do oceano, de acordo com os paralelos, sucedeu mais tarde no sentido dos meridianos, provocado pela viagem de Colombo. O encontro do navegador em Lisboa com D. João II, no regresso da primeira viagem, despoletou, de imediato, o litígio diplomático, uma vez que o monarca português entendia estarem as terras descobertas na área de domínio. O conflito só encontrou solução com novo tratado, assinado em 7 de Julho de 1494 em Tordesilhas e rati-ficado pelo papa Júlio II em 24 de Janeiro de 1505. A partir de então ficou estabelecida uma nova linha divisória do oceano, a trezentos e setenta léguas de Cabo Verde. Estavam definidos os limites do mar ibérico em que as ilhas jogavam um papel des-tacado. Para os demais povos europeus só lhes restava uma re-duzida franja do Atlântico, a Norte, e o Mediterrâneo. Mas tudo isto seria verdade se fosse atribuída força de lei internacional às bulas papais e às opções das coroas peninsulares, o que na realidade não sucedia. O cisma do Ocidente, por um lado, e a desvinculação de algumas comunidades da alçada papal, por outro, retiraram aos actos jurídicos a medieval plenitude «potestatis». Em oposição à doutrina definidora do mare clau-sum antepõe-se a do mare liberum, que teve em Grócio o prin-cipal teorizador. A última visão norteou a intervenção dos fran-ceses, holandeses e ingleses94. A guerra de corso foi a resposta e teve uma incidência prefe-rencial nos mares circunvizinhos do Estreito de Gibraltar e ilhas, levando ao domínio de múltiplos espaços de ambas as margens do Atlântico. Podemos definir dois espaços de permanente inter-venção: os Açores e a Costa da Guiné e da Malagueta. Os ingleses iniciaram em 1497 as incursões no oceano, ficando célebres as viagens de W. Hawkins (1530), John Hawkins (1562-1568) e Francis Drake (1578, 1581-1588). Entretanto os franceses fixaram-se na América, primeiro no Brasil (1530, 1555-1558), depois em San Lorenzo (1541) e Florida (1562-1565). Os huguenotes de La Rochelle afirmaram-se como o terror dos ma-res, ficando célebres pelo assalto à cidade do Funchal em 1566. 94 Frei SERAFIM DE FREITAS, Do Justo Império Asiático dos Portugueses, vol. I, Lisboa, 1960. 260 ANUARIO DE ESTUDIOS ATLÁNTICOS 42 ALBERTO VIEIRA A última forma de combate ao exclusivismo do atlântico ganhou maior adesão dos estados europeus no século XVI. A partir de princípios da centúria o perigo das caravelas não resultou das condições geo-climáticas, mas sim da presença de intrusos, sempre disponíveis para assalta-las. A navegação foi dificultada e as rotas comerciais tiveram de ser adequadas à nova realidade. Surgiu a necessidade de artilhar as embarcações e uma armada para comboiar até porto seguro. As insistentes reclamações, nomeadamente dos vizinhos de Santiago em Cabo Verde, levaram a coroa a estabelecer armadas para protecção e defesa das áreas e rotas de comércio: armada da costa ocidental do reino, do litoral algarvio, dos Açores, da costa e golfo da Guiné, do Brasil95. Cedo os franceses começaram a infestar os mares próximos da Madeira (1550, 1566), Açores (1543, 1552-53, 1572) e Cabo Verde, e depois os ingleses e holandeses seguiram-lhe o encalço. Os primeiros fizeram incidir a acção nos arquipélagos da Madeira e Açores, patente na primeira metade do século XVI, pois em Cabo Verde apenas se conhecem alguns assaltos em 1537-1538 e 1542. Os navegantes do norte escolhiam os mares ocidentais ou a área do Golfo e costa da Guiné, tendo os das ilhas de Santiago e S. Tomé o principal centro de operações. Nos arquipélagos de Cabo Verde e S. Tomé, ao perigo inicial dos castelhanos e franceses juntam-se os ingleses e holandeses. Na década de sessenta o corso inglês era exercido por John Hawkins e John Lovell. Os ingleses não macularam a Madeira, onde tinham uma importante comunidade residente e empenhada no comércio atlântico, fazendo incidir a acção nos Açores (1538, 1561, 1565, 1572), Canárias e Cabo Verde. A presença de corsários deve ser articulada de acordo com a importância assumida pelas ilhas na navegação atlântica e as riquezas geradas, despertadoras da cobiça de estranhos. Os assaltos, os conflitos políticos entre as coroas europeias justificam-nos ainda. Na segunda metade do século XV o afrontamento entre as coroas peninsulares definiu a frequência 95 VITORINO MAGALHÃES GODINHO, «As incidências da pirataria e da concorrência na economia marítima portuguesa no século XVI», in Ensaios II, Lisboa, 978, pp. 186-200. Núm. 50 (2004) 261 AS ILHAS ATLÂNTICAS. PARA UMA VISÃO DINÂMICA DA SUA HISTÓRIA 43 dos castelhanos na Madeira ou em Cabo Verde, enquanto os conflitos entre as famílias régias europeias atribuíam a legiti-midade necessária às iniciativas, fazendo-as passar de roubo a acção de represália. Desde 1517, o conflito entre Carlos V de Espanha e Francisco I de França, depois a partir de 1580 os problemas decorrentes da união ibérica. São evidentes os esforços da diplomacia europeia no sentido de conseguir solução para as presas do corso. Portugal e França haviam acordado em 1548 a criação de dois tribunais de arbitragem, cuja função era anular as autorizações de represália e cartas de corso. Mas a existência não teve reflexos evidentes na acção dos corsários. É precisamente em 1566 que tivemos o mais importante assalto francês a um espaço português. Em Outubro de 1566 Bertrand de Montluc ao comando de uma armada composta de três embarcações perpetrava um dos mais terríveis assaltos à vila Baleira e à cidade do Funchal. Acon-tecimento parecido só o dos argelinos em 1616 no Porto Santo e Santa Maria, ou dos holandeses em S. Tomé e em Las Pal-mas em 1599. A incessante investida de corsários no mar e terra firme criou a necessidade de definir uma estratégia de defesa. No mar optou-se por artilhar as embarcações comerciais e pela criação de uma armada de defesa conhecida como a armada das ilhas. A partir de Angra procedia ao comboiamento das naus até por-to seguro. Em terra foi o delinear da linha de defesa dos principais portos, ancoradouros e baías, capaz de travar o poss��vel desembarque dos intrusos. O espaço insular não poderá considerar-se uma fortaleza inexpugnável, pois a disseminação por ilhas, servidas de uma extensa orla costeira impossibilitou uma politica concertada de defesa. Qualquer das soluções que fosse encarada para além de ser onerosa, não era satisfatória, sendo sempre protelada até que surgissem ameaças reais. O sistema de defesa costeiro tem a dupla finalidade: desmobilizar ou barrar o caminho ao inva-sor e de refúgio para populações e haveres. Por isso a norma foi a construção de fortalezas após qualquer ameaça e nunca fruto de uma acção preventiva. A instabilidade provocada pela permanente ameaça dos 262 ANUARIO DE ESTUDIOS ATLÁNTICOS 44 ALBERTO VIEIRA corsários, a partir do último quartel do século XV, condicionou o delineamento de um plano de defesa dos arquipélagos baseada numa linha de fortificação costeira e um serviço de vigias e ordenanças. As mudanças no domínio político e económicas operadas ao longo dos séculos dezoito e dezanove não retiraram às ilhas a função primordial de escala e espaço de disputa do mar oceano. A frequência de embarcações manteve-se enquanto o corso ficou marcado por uma forte escalada, entre finais da primeira centúria e princípios da seguinte. Aos tradicionais corsários de França, Inglaterra, Holanda vieram juntar-se os americanos do Norte e Sul. A presença dos holandeses rege-se por condições específicas, porque detinham importantes interesses na cultura açucareira americana, procuravam assegurar o domínio de S. Tomé, Santiago e demais feitorias do comércio de escravos. A isso juntava-se o empenho na manutenção das rotas do tráfico a destruição dos interesses açucareiros. O corso europeu incidia sobre as embarcações espanholas e francesas e a resposta das partes molestadas era violenta, como sucederá com a investida francesa contra os ingleses em 1793, 1797, 1814. Os ingleses actuaram com segurança, montado um plano de dom��nio do Atlântico em que o Funchal era o princi-pal porto de apoio para as incursões. O mar açoriano foi o alvo preferencial dos corsários ameri-canos. Portugueses e castelhanos foram as principais vítimas do corso americano. A permanente ameaça de corsários redobrou o empenho nas obras de defesa, que resultaram várias cam-panhas. Em todos os momentos a Madeira funcionou como base para as inúmeras incursões dos corsários ingleses. A neutra-lidade, insistentemente proclamada no papel não passava disso, pois os ingleses afrontaram por diversas formas a atitude do governador96. Desde a guerra de sucessão da Casa de Áustria que a Madeira teve esta vocação. O facto de estar sob as ordens 96 Em 1780 o Governador João Gonçalves da Câmara participa a Martinho de Mello e Castro a presença de uma esquadra inglesa no Funchal, pedindo instruções para manter absoluta neutralidade (Ibidem, nº 545, 22 de Janeiro). Núm. 50 (2004) 263 AS ILHAS ATLÂNTICAS. PARA UMA VISÃO DINÂMICA DA SUA HISTÓRIA 45 de Sua Majestade britânica, entre 1801-1802 e 1807-1814, favoreceu isso. Por seu turno os franceses faziam incidir mais a acção sobre as embarcações portuguesas, porque menos segu-ras e protegidas, do que as inglesas. Esta permanente ameaça da esquadra de Brest sobre o Funchal justificava-se mais pelo colaboracionismo madeirense aos ingleses do que pela guerra declarada entre as coroas peninsulares. Nos Açores o corso teve maior incidência nos primeiros anos do século XIX. Os protagonistas europeus foram os ingleses e castelhanos97. A intervenção dos corsários americanos era uma forma de reclamar o direito à independência. As acções são lançadas contra as embarcações da metrópole e aliados, o que atingiu os portugueses. A isto acresce a guerra entre ingleses e norte-americanos no período de 1812 a 1815 que provocou o aumento do número de corsários. Com as pazes muitos passa-ram a estar ao serviço dos insurgentes98. As transformações político-ideol��gicas nos continentes ame-ricano e europeu fizeram do Atlântico o espaço privilegiado de embate, sendo o corso o meio usado. O oceano foi a via de mútua troca de ideias, mas também o palco de debate, afron-tamento e defesa. E as ilhas jogaram um papel fundamental. Os três arquipélagos do Mediterrâneo atlântico (Madeira, Açores e Canárias) foram, mais uma vez, uma área charneira. CONCLUSÃO As ilhas cumpriram nos últimos cinco séculos diversos papéis. De espaços económicos rapidamente avançaram para faróis do Atlântico que acompanhavam as inúmeras embarcações que sulcavam o vasto oceano atlântico. Foram escalas imprescin-díveis para abastecimento de víveres frescos, água e carvão, mas paulatinamente se transformaram em espaços aprazíveis, pri-meiro para a cura da tísica pulmonar e depois repouso e deleite 97 A.H.U, Açores, Maço 11. 98 JOSÉ CALVET DE MAGALHÃES, História das Relações Diplomáticas entre Portugal e os Estados Unidos de América, Lisboa, 1991, p. 92. 264 ANUARIO DE ESTUDIOS ATLÁNTICOS 46 ALBERTO VIEIRA de aristocratas e aventureiros. O mundo das ilhas continuará sempre presente na História e actualidade. Hoje parece que as ilhas retomaram o deslumbramento do passado. Esgotados os recursos económicos resta-lhes apenas aquilo que as diferencia dos espaços continentais e que está na origem do nome na Antiguidade Clássica. As Afortunadas são o paraíso atlântico que continua a atrair o europeu. E, no milénio que agora começou não está provado que percam o protago-nismo que as marcou no passado. O europeu continuará a de-pender destes pilares atlânticos. Ontem como hoje, as ilhas não se fizeram rogadas aos desafios do devir histórico.
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Título y subtítulo | As ilhas atlânticas. Para uma visão dinâmica da sua história |
Autor principal | Vieira, Alberto |
Publicación fuente | Anuario de estudios atlánticos |
Numeración | Número 50. Tomo 1 |
Sección | Historia |
Tipo de documento | Artículo |
Lugar de publicación | Madrid ; Las Palmas |
Editorial | Cabildo Insular de Gran Canaria |
Fecha | 2004 |
Páginas | p. 0219-0264 |
Materias | Historia ; Portugal |
Copyright | http://biblioteca.ulpgc.es/avisomdc |
Formato digital | |
Tamaño de archivo | 186931 Bytes |
Texto | Núm. 50 (2004) 219 68 AS ILHAS ATLÂNTICAS. PARA UMA VISÃO DINÂMICA DA SUA HISTÓRIA AS ILHAS ATLÂNTICAS. PARA UMA VISÃO DINÂMICA DA SUA HISTÓRIA P O R ALBERTO VIEIRA O Atlântico não é só uma imensa massa de água, polvilhada de ilhas pois está associado a uma larga tradição histórica. Foi na Antiguidade que recebeu o nome de baptismo. As ilhas foram e continuam a ser o principal pilar e o mar o traço de união. Estamos perante um conjunto de ilhas e arqui-pélagos, relevantes no processo histórico, quase sempre como intermediários entre litorais dos continentes europeu, africano e americano. Anicham-se, de um modo geral, junto da costa dos continentes africano e americano. Apenas os Açores, Santa He-lena, Ascensão e o grupo de Tristão da Cunha se distanciam dela. Desde o pioneiro estudo de Fernand Braudel1 que às ilhas foi atribuída uma posição chave na vida do oceano e do litoral dos continentes. Segundo Pierre Chaunu2, foi activa a intervenção dos arquipélagos da Madeira, Canárias e Açores, o Mediterrâneo Atlântico, na economia europeia dos séculos XV e XVII3. 1 O Mediterrâneo e o Mundo Maditerrânico na Época de Filipe II, 2 vols., Lisboa, 1984 (1ª edição em 1949). 2 Sevilla y América. Siglos XVI y XVII, Sevilha, 1983 [Estudo abreviado dos 14 volumes de Séville et l’Atlantique y del Pacifique des Ibériques, 1949, 1955-60]. 3 Confronte-se nossos estudos: Comércio Inter-insular nos séculos XV e XVI. Madeira, Açores e Canárias, Funchal, 1987; Portugal y las Islas del At-lántico, Madrid, 1992. 220 ANUARIO DE ESTUDIOS ATLÁNTICOS 2 ALBERTO VIEIRA O Atlântico pode ser considerado uma invenção europeia dos séculos XV e XVI, articulando-se directamente com as políticas coloniais das potências emergentes. A partir daqui estabeleceu-se, em ambos os lados do oceano, um vínculo directo entre ilhas e áreas costeiras. A História, a Geografia marcaram a vida do oceano nos últimos cinco séculos4. A partir do século XV foi um espaço privilegiado para os impérios europeus onde as ilhas assumem uma função fundamental no cruzamento de rotas, circulação de pessoas e produtos5. Na História do Atlântico o mundo insular é uma realidade sempre presente. A Antiguidade Clássica faz apelo às ilhas míticas, fantásticas e imaginárias, cuja localização acontece sempre no Atlântico6. O fascínio do mundo insular manteve-se nos descobrimentos europeus. Foi uma dominante da cultura Ocidental e Oriental, ganhando papel de relevo na mitologia clássica e na construção de novos mitos7. Daqui resultou certamente a moda de divulgação com os isolarios, em que se destaca o de Beneditto Bordone de 15288. Depois, construíram-se pontes entre ambos os lados do oceano como pilhares assen-tes nas ilhas. As rotas do Atlântico, Índico e Pacífico só se afirmaram por força da presença de ilhas. D. Manuel, monarca português, ciente da importância desta realidade, mandou estabelecer o Livro das Ilhas para tombar toda a documentação mais significativa que a elas se referia9. 4 D. W. MEINIG, The Shaping of América: A Geographical Perspective on 500 years of History, vol. I: Atlantic America 1492-1800, New Haven, 1986. PIETER EMMER, «In Search of a System: The Atlantic Economy, 1500-1800», in HORST PIETSCHMANN, Atlantic History. History of the Atlantic System 1580- 1830, Gottingen, 2002, pp. 169-178; BARBARA L. SOLOW, Slavery and the Rise of the Atlantic System, N. York, 1991. 5 Cf. JOSÉ MANUEL AZEVEDO E SILVA, «A importância dos espaços insula-res no contexto do mundo Atlântico», in História das Ilhas Atlânticas, vol. I, Funchal, 1997, pp. 125-161. 6 W. H. BABCOCK, Legendary Islands of the Atlantic, N. York, 1922; MAR-COS MARTÍNEZ, Canarias en la Mitologia, Santa Cruz de Tenerife, 1992; IDEM, Las Islas Canárias de la Antigüedad al Renacimiento. Nuevos aspectos, Santa Cruz de Tenerife, 1996. 7 ANTÓNIO CARLOS DIEGUES, Ilhas e Mares. Simbolismo e Imaginário, S. Paulo, Editora Hucitec, 1998, pp. 80, 129-193. 8 INÁCIO GUERREIRO, «Tradição e modernidade nos Isolarios ou “livros das Ilhas”, dos séculos XV e XVI», in Oceanos, nº 46 (Lisboa, 2001), pp. 28-40. 9 Cf. JOSÉ PEREIRA DA COSTA, O Livro das Ilhas, Lisboa, 1987. Núm. 50 (2004) 221 AS ILHAS ATLÂNTICAS. PARA UMA VISÃO DINÂMICA DA SUA HISTÓRIA 3 Em síntese podemos afirmar que as ilhas foram espaços de construção das utopias, escalas retemperadoras da navegação, áreas de desusada riqueza para o europeu, como destino de desterro de criminosos e políticos, refúgio de piratas, aven-tureiros, espaços de convalescença e lazer e turismo. No vasto conjunto de ilhas que povoam o oceano devemos salientar pelo menos três grupos: oceânicas (Açores, Madeira...), continentais (Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe, Santa Catarina...) e fluviais (São Luís no Brasil,...). A posição que cada uma assumiu conduziu a diferente protagonismo histórico. As flu-viais e continentais evidenciaram-se pela dependência ao espaço continental vizinho, enquanto as oceânicas ficaram entregues a si próprias. A favor da valorização dos espaços insulares temos, ainda, a tese que vingou no seio da Historiografia americana de que o Atlântico é uma unidade de análise, delimitada cronologica-mente entre os inícios de expansão europeia, a partir do sécu-lo XV e a abolição da escravatura em 188810. A função assumida pelas ilhas no contexto da expansão quatrocentista, quer como terra de navegadores, quer como principal centro que modelou a realidade socio-económico, é a evidência da imprescindível da dimensão atlântica. Se tomarmos em linha de conta alguns dos temas comuns, como o vinho, o açúcar e a escravatura, seremos forçados a concluir que foram eles em boa parte, os responsáveis pela 10 Cf. JACQUES GODECHOT, Histoire de l’Atlantique, Paris, 1947; ALAN L. KARRAS e J. R. MACNEILL, Atlantic American Societies-from Columbus Through Abolition 1492-1886, London, 1992 [nomeadamente a apresen-tação de A. L. Karras, «The Atlantic World as a unit of Study»]; ALFRED W. CROSBY, The Columbian Exchange, Biological and Cultural Consequences of 1492, Westport, 1972; S. MINTZ, Sweetness and Power, N. York, 1985; MICHAEL MEYERR, «The Price of the new Transnational History», The American Historical Review, 96, nº 4, 1991, 1056-1072; D. W. MEINIG, Atlantic America 1492-1800, New Haven, 1980; LAN STELLE, The English Atlantic, 1675-1740 — An Exploration & Communication and Community, N. Y. 1986; DAVID ARMITAGE E MICHAEL J. BRADDICK, The British Atlantic World. 1500-1800, N. York, 2000 (especialmente os textos de Bernard Bailyn e David Armitage); JOHN ELLIOTT, en Búsqueda de la Historia Atlán-tica, Las Palmas, 2001. 222 ANUARIO DE ESTUDIOS ATLÁNTICOS 4 ALBERTO VIEIRA opção atlântica. As rotas comerciais, os mercados, e, acima de tudo, o oceano como mar aberto, são uma permanência. Acontece que a historiografia vem defendendo a vinculação das ilhas ao Velho Mundo, realçando apenas a importância da relação umbilical com a mãe-pátria. Os séculos XV e XVI seriam os momentos áureos, enquanto a conjuntura setecentista a expressão da viragem para o Novo Mundo, em que alguns produtos, como o vinho, assumem o papel de protagonista e de responsáveis pelas trocas comerciais. Estudos recentes confirmam que o relacionamento exterior das ilhas não se resumia apenas a estas situações11. À margem das importantes vias e mercados intercontinentais subsistem outras que activaram a economia insular desde o séc. XV. As conexões entre os arquipélagos próximos (Açores e Canárias) ou afastados (Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe) foram já motivo de aprofundada explanação, que propiciaram a valorização da estrutura comercial12. Aqui ficou demonstrada a importância assumida pelos contactos humanos e comerciais, que no pri-meiro caso, resultou da necessidade de abastecimento de cereais e, no segundo, das possibilidades de intervenção no tráfico negreiro, mercê da vinculação às áreas africanas como a Costa da Guiné, Mina e Angola. Em qualquer das situações o estreitamento dos contactos depende, primeiro, da presença de uma comunidade que preten-de manter o vínculo à terra-mãe e depois as possibilidades de troca favorável. A oferta de vinho e a procura pelos agentes do tráfico negreiro, para enganadoramente oferecerem aos sobas 11 A partir de 1976 a realização de diversos colóquios sobre estas ilhas, nas Canárias, Açores e Madeira tem evidenciado esta realidade. Aqui ape-nas damos conta de alguns dos nossos trabalhos, entre muitos que estão reunidos nas referidas actas: «O comércio de cereais dos Açores para a Madeira no século XVII», in Os Açores e o Atlântico (séculos XIV-XVII), A. HEROÍSMO, 1984; «O Comércio de cereais das Canárias para a Madeira nos séculos XVI e XVII», in VI Coloquio de Historia Canario Americana, Las Palmas, 1984; «Madeira e Lanzarote. Comércio de escravos e cereais no século XVII», in IV Jornadas de História de Lanzarote e Fuerteventura, Arre-cife de Lanzarote, 1989. 12 O Comércio Inter-insular (Madeira, Açores e Canárias) nos séculos XV e XVI, Funchal, 1987. Núm. 50 (2004) 223 AS ILHAS ATLÂNTICAS. PARA UMA VISÃO DINÂMICA DA SUA HISTÓRIA 5 africanos, ou do outro lado do Atlântico saciaram a sede do europeu a troco do açúcar, foi o principal móbil. A situação influenciou decisivamente a estrutura comercial insular a partir da segunda metade do século XVI. No caso do Atlântico português a conjuntura foi particular pois a actuação em três frentes — Costa da Guiné, Brasil e Índico — alargou os enclaves de domínio ao sul do oceano. Neste contexto surgiram cinco vértices insulares de grande rele-vo — Açores, Canárias, Cabo Verde, Madeira e S. Tomé — que foram imprescindíveis para a afirmação da hegemonia e defesa das rotas oceânicas. Aí assentou-se os pilares atlânticos fazendo das ilhas desabitadas, lugares de acolhimento e repouso para os náufragos, ancoradouro seguro e abastecedor para as embar-cações e espaços agrícolas de exportação. No primeiro caso po-demos referenciar a Madeira, Canárias, Cabo Verde, S. Tomé, Santa Helena e Açores, que emergiram em princípios do sécu-lo XVI como os principais eixos das rotas do Atlântico. Algumas foram fundamentais nas rotas intercontinentais, como foi o caso das Canárias, Santa Helena, Açores e as que se filiam nas áreas económicas litorais, como sucedeu com Arguim, Cabo Verde, e o arquipélago do Golfo da Guiné. Todas viveram numa situação de dependência em relação ao litoral que as valorizou. Apenas em S. Tomé, pela importância que aí assumiu a cana-de- açúcar esta subordinação não atingiu a mesma dimen-são no início. O protagonismo dos arquipélagos das Canárias e Açores é muito mais evidente no traçado das rotas oceânicas que se dirigiam ou regressavam das Índias ocidentais e orientais, resul-tado da posição às portas do oceano. Actuaram como via de entrada ou de saída das rotas oceânicas, orientando a pirataria e corso para a região circunvizinha. Mas estas não foram ape-nas áreas de apoio, uma vez que o solo fértil permitiu um aproveitamento agrícola. A última vertente projectou-as para um lugar relevante na História do Atlântico. A valorização sócio-económica dos espaços insulares não foi unilinear, dependendo da confluência de dois factores. Primeiro, os rumos definidos para a expansão atlântica e os níveis da sua expressão em cada um, depois as condições propiciadoras de 224 ANUARIO DE ESTUDIOS ATLÁNTICOS 6 ALBERTO VIEIRA cada ilha ou arquipélago em termos físicos, de habitabilidade ou da existência ou não de uma população autóctone. Quanto ao último aspecto é de salientar que apenas nas Antilhas, Canárias e a pequena ilha de Fernão do Pó, no Golfo da Guiné, já estavam ocupadas quando aí chegaram os marinheiros penin-sulares. As restantes encontravam-se abandonadas — não obs-tante falar-se de visitas esporádicas às ilhas dos arquipélagos de Cabo Verde e S. Tomé por parte das gentes costeiras — o que favoreceu o imediato e rápido povoamento, quando as condições o permitiam. Se na Madeira a tarefa foi fácil, não obstante as condições hostis da orografia, o mesmo não se poderá dizer dos Açores ou de Cabo Verde, onde os primeiros colonos enfren-taram diversas dificuldades. Para as ilhas já ocupadas as circunstâncias foram diferentes, pois enquanto nas Canárias os castelhanos defrontaram-se com os autóctones por largos anos (1402/1496). Já em Fernão do Pó e nas Antilhas foi mais fácil vencer a resistência indígena. Os arquipélagos da Madeira e Canárias afirmam-se pelo pioneirismo da ocupação que fez com que se projectassem no espaço atlântico. É evidente a vinculação económica e institu-cional dos espaços do atlântico português à Madeira, como su-cede em relação às Canárias com as índias de Castela. Daqui resulta a sua importância para o estudo e conhecimento da História do Atlântico a valorização da história de ambos os arquipélagos13. As ilhas jogaram um papel fundamental na estratégia de afirmação colonial no Novo Mundo, pois que foram pilares des-tacados do complexo que começou a construir-se a partir do século XV. Elas são, ainda, a imagem do Paraíso que se afirma como espaço de rica exploração económica, escala retempe- 13 Cf. ALAN L. KARRAS e J. R. MACNEILL, Atlantic American Societies — From Columbus Through Abolition 1492-1886, London, 1992; ALFRED W. CROSBY, The Columbian Exchange, Biological and Cultural Consequences of 1492, Westport, 1972; S. MINTZ, Sweetness and Power, N. York, 1985; MICHAEL MEYERR, «The price of the new transnational history», The Ame-rican Historical Review, 96, nº 4, 1991, 1056-1072; D. W. MEINIG, Atlantic America 1492-1800, New Haven, 1980; LAN STELLE, The English Atlan-tic, 1675-1740 — An Exploration & Communication and Community, N. Y. 1986. Núm. 50 (2004) 225 AS ILHAS ATLÂNTICAS. PARA UMA VISÃO DINÂMICA DA SUA HISTÓRIA 7 radora e de apoio aos intrépidos marinheiros. Paulatinamente ganharam a merecida posição na estratégia colonial, pro-jectando- se nos espaços continentais próximos e longínquos. Abriram as portas do Atlântico e mantiveram-se até a actua-lidade como peças fundamentais. Foram imprescindíveis à descoberta do oceano como para a afirmação e controlo dos mercados continentais vizinhos, como sucedeu em Cabo Verde e S. Tomé. Nos séculos XVIII e XIX não foi menor o protagonismo insu-lar. As ilhas passaram de escalas de navegação e comércio a centros de apoio e abastecimento de carvão aos vapores e laboratórios da ciência. Cientistas cruzam-se com mercadores, funcionários coloniais e militares e seguem as rotas delineadas desde o século XV. A estes juntaram-se os primeiros «turistas», que afluem às ilhas desde o século XVIII na busca de cura para a tísica pulmonar ou à descoberta das belezas. Foi o início do turismo insular que só adquiriu a dimensão actual a partir da década de cinquenta do século XIX. A segunda metade do século XIX confiou ainda outro papel às ilhas. Foram elas pontos estratégicos fundamentais do lançamento dos cabos submarinos intercontinentais. A situação perdurou até à década de setenta do século XX, altura em que os sistemas de telecomunicações começaram a afirmar-se e a dominar em definitivo as trocas de informação interconti-nentais14. Parte da fortuna destas Afortunadas está patente no pa-pel que assumiram no mundo atlântico a partir do século XV. Daqui resultou uma forte vinculação ao mundo europeu que nunca prescindiu da posse na estratégia expansionista e de domínio do espaço atlântico. O progresso das comunicações não lhes retirou protagonismo, antes pelo contrário veio a revalori-za- las. Os portos dos veleiros deram lugar aos vapores e aos cabos submarinos e acabaram cedendo os protagonismos aos aeroportos. Hoje assumem uma nova dimensão no âmbito polí-tico, como espaços independentes ou autónomos, continuam a 14 Cf. FRANCIS M. ROGERS, Atlantic Islanders of the Azores and Madeiras, Massachusetts, 1979, pp. 175-230. 226 ANUARIO DE ESTUDIOS ATLÁNTICOS 8 ALBERTO VIEIRA assumir a vinculação europeia, sendo mais evidente a vocação de estância turística. AS ILHAS E OS DESCOBRIMENTOS No conjunto, os arquipélagos do Atlântico Oriental — Ma-deira, Açores, Canárias, Cabo Verde, S. Tomé — deram um contributo à plena valorização e afirmação do novo espaço que ganhou evidencia na construção dos impérios europeus A Madeira surgiu nos alvores do século XV como a primeira experiência de ocupação em que se ensaiaram produtos, técni-cas e estruturas institucionais, que depois foram utilizados em larga escala noutras ilhas e litoral africano e americano. O arquipélago foi o centro de divergência dos sustentáculos da nova sociedade e economia do mundo atlântico: primeiro tivemos os Açores, depois os demais arquipélagos e regiões costeiras onde os portugueses aportaram. Idêntica função pre-encheu as Canárias em relação ao modelo colonial castelhano, que num primeiro momento se orientou pela experiência ma-deirense15. O sistema institucional madeirense apresentava uma estru-tura peculiar definida pelas capitanias. Foi a 8 de Maio de 1440 que o Infante D. Henrique lançou a base da nova estrutura ao conceder a Tristão Vaz a carta de capitão de Machico. A partir daqui ficou definido o sistema institucional que deu corpo ao governo português no Atlântico insular e brasileiro. Também os castelhanos vieram à ilha receber alguns ensinamentos para a sua acção institucional no Atlântico, como se depreende do desejo manifestado em 1518 pelas autoridades antilhanas em resolver a difícil situação das pequenas ilhas de Curaçau, Aruba e La Margarita com o recurso ao modelo madeirense de po-voamento. As Canárias assumiram idêntico papel para o império de Castela16. Tenha-se em conta que algumas ilhas, nomeadamente 15 Cf. JOSÉ PÉREZ VIDAL, Aportación de Canarias a la población de Amé-rica, Las Palmas de Gran Canaria, 1991. 16 Como o confirmam os textos de A. RUMEU DE ARMAS, Canarias y el Núm. 50 (2004) 227 AS ILHAS ATLÂNTICAS. PARA UMA VISÃO DINÂMICA DA SUA HISTÓRIA 9 a de La Gomera, foram pilares fundamentais no apoio das viagens colombinas e depois de toda a estratégia imperial17. A partir daqui os castelhanos fizeram chegar a cultura da cana sacarina às ilhas da América central18. A Madeira foi ainda o ponto de partida para organização da sociedade no atlântico em torno da escravatura. De acordo com S. Greenfield19 ela serviu de trampolim entre o «Mediterranean Sugar Production» e a «Plantation Slavery» americana. O autor não faz mais do que retomar os argumentos aduzidos por Char-les Verlinden20 desde a década de sessenta, que entretanto mereceram alguns reparos na formulação, mercê de novos estudos21. HOMENS E PRODUTOS Os descobrimentos europeus não podem ser vistos apenas na perspectiva do encontro de novas terras, novas gentes e cultu-ras, devendo associar-se também as migrações humanas, que arrastaram consigo um universo envolvente de fauna, flora, tecnologia, usos e tradições. Estamos perante aquilo a que Atlántico. Piraterías y ataques navales, Madrid, 1991 (reedição); PIERRE CHAUNU, ob. cit.; e FRANCISCO MORALES PADRÓN, El comercio canario-ameri-cano (siglos XVI-XVIII), Sevilla, 1955. 17 ANTONIO TEJERA GASPAR, Los cuatro viajes de Colón y las Islas Cana-rias (1492-1502), La Laguna, Francisco Lemus Editor, 2000. 18 Cf. JUSTO L. DEL RÍO MORENO, Los inicios de la agricultura europea en el Nuevo Mundo, Sevilla, 1991, p. 303. 19 «Madeira and the Beginings of New World Sugar Cane Cultivation and Plantation Slavery: a Study in Constitution Building», in VERA RUBIN e ARTUR TUNDEN (eds.), Comparative Perspectives on Slavery in New World Plantation Societies, N. York, 1977. 20 «Précédents et Paralèlles Européens de l’Esclavage Colonial», in Ins-tituto, vol. 113, Coimbra, 1949; «Les Origines Coloniales de la Civilization Atlantique. Antécédents et Types de Structure», in Journal of World History, 1953, pp. 378-398; Précédents Médiévaux de la Colonie en Amérique, Méxi-co, 1954; Les Origines de la Civilization Atlantique, Neuchâtel, 1966. 21 Confronte-se ALFONSO FRANCO SILVA, «La esclavitud en Andalucía...», in Studia, nº 47, Lisboa, 1989, pp. 165-166; ALBERTO VIEIRA, Os escravos no Arquipélago da Madeira. Séculos XV a XVII, Funchal, 1991. 228 ANUARIO DE ESTUDIOS ATLÁNTICOS 10 ALBERTO VIEIRA Pierre Chaunu22 define como desencravamento planetário, vincu-lado às transformações operadas pela a expansão europeia do século XV. Os Descobrimentos foram também responsáveis pela transformação e revolução ecológica, com impactos positivos ou negativos. Uma das transformações fundamentais ocorreu ao nível alimentar com a descoberta de novos produtos e condimen-tos que enriqueceram a dieta alimentar23. NAVEGANTES, AVENTUREIROS E EMIGRANTES Os Descobrimentos do século XV foram o início de novo processo de transmigração das populações europeias. Portugal, porque pioneiro, assumiu um lugar de destaque. À tradicional movimentação interna das populações, resultan-te da reconquista e ocupação, sucedem-se outros para fora do continente, de acordo com o avanço dos descobrimentos e a necessidade de ocupação de novos espaços. Uma questão, de não menor importância, prende-se com a forma de recrutamento dos colonos. Há os que vão, de livre vontade, à aventura, que cumprem uma missão como funcioná-rios da coroa ou que se dispõem a qualquer serviço na mira de uma compensação24. Junta-se, depois, um grupo com grande destaque em todo o processo, os degredados ou prisioneiros. No momento de organização das armadas de defesa das praças marroquinas25, de ocupação das ilhas ou do Oriente, a coroa 22 A História como Ciência Social, Rio de Janeiro, 1976, 287-326 23 PIERRE CHAUNU, A História como Ciência Social, Rio de Janeiro, 1976, pp. 181-239; JOSÉ E. MENDES FERRÃO, A Influência Portuguesa na Difusão de Plantas no Mundo, Lisboa, 1980; Transplantação de Plantas de Continen-tes para Continentes no século XVI, Lisboa, 1986; IDEM, A Aventura das Plan-tas e os Descobrimentos Portugueses, Lisboa, 1999. 24 Veja-se no caso do Oriente o estudo de LUÍS DE ALBUQUERQUE e JOSÉ PEREIRA DA COSTA, «Cartas de Serviço da Índia (1500-1550)», in Mare Liberum, nº 1, 1990, 309-396. 25 Confronte-se LUÍS MIGUEL DUARTE e JOSÉ AUGUSTO P. DE SOTTO MA-YOR PIZARRO, «Os Forçados das Galés (os Barcos de João da Silva e Gonçalo Falcão na Conquista de Arzila em 1471)», in Congresso Internacional. Bartolomeu Dias e a sua Época. Actas, vol. II, Porto, 1989, pp. 313-328. Núm. 50 (2004) 229 AS ILHAS ATLÂNTICAS. PARA UMA VISÃO DINÂMICA DA SUA HISTÓRIA 11 permitia aos organizadores o recrutamento de homens entre os condenados de diversos delitos e penas de degredo. A política moderna de degredo como forma de incentivo ao povoamento dos lugares ermos não era novidade, pois vinha sendo utilizada para o povoamento do litoral algarvio e zonas fronteiriças com Castela. Era a coroa portuguesa quem orde-nava aos corregedores o destino dos degredados. Depois do Algarve, tivemos Ceuta e demais praças marroquinas, as ilhas atlânticas. A presença em Marrocos é mais insistente a partir de 143126. Para as ilhas as orientações de envio dos degredados sucedem-se conforme a evolução do povoamento do espaço atlântico: primeiro a Madeira, depois, os Açores, Cabo Verde e S. Tomé. A partir de 145427 D. Afonso V determinou, a pedido do Infante D. Henrique, que todos os homens condenados a degredo iam «povoarem as ditas ilhas que então começava de povoar...». Não será isto uma válvula de escape para os conflitos sociais28? A coroa castelhana estabeleceu a partir de 1678 como condição para o comércio das Canárias com o Novo Mundo o 26 A mudança é justificada da seguinte forma por Zurara: «muitos de meus naturaes que per alguuns negocios ssam desterrados de meus regnos, melhor estaram aqui fazendo serviço a Deos, conprindo sua justiça, que sse hirem pollas terras estranhas e desnaturarem-se pera todo o sempre de sua terra» [citado por PEDRO DE AZEVEDO, Documentos das Chancelarias Reais Anteriores a 1531 Relativos a Marrocos, t. I, Lisboa, 1915, p. XIII]. Mais tarde, Luís Mendes de Vasconcelos [«Diálogos do Sítio de Lisboa», in Antologia dos Descobrimentos Portugueses (século XVII), Lisboa, 1974], refere que «o Brasil povoou-se com degredados, gente que se tirava do reino por benefício dele». Recorde-se que Martim Afonso de Sousa fez-se acompanhar de 600 degredados. 27 Carta régia de 18 de Maio, ANTT, Chanc. de D. Afonso V, lº 10, fl. 44vº, publ. V. M. GODINHO, Documentos sobre a Expansão, t. I, pp. 215- 216. No caso da Costa da Guiné, incluídos os arquipélagos de Cabo Verde e S. Tomé, temos para o período de 1463 a 1500, 19 casos em que foi solicitada a carta de perdão à coroa [veja-se VITOR RODRIGUES, «A Guiné nas Cartas de Perdão (1463-1500)», in Congresso Internacional. Bartolomeu Dias e a sua Época. Actas, vol. IV, Porto, 1989, pp. 397-412]. 28 Veja-se o que aduz, ainda que para uma situação distinta, MANUEL HERNÁNDEZ GONZÁLEZ, «La emigración a América como válvula de escape de las tensiones sociales en Canarias durante el siglo XVIII. Las actitudes sociales ante la delincuencia», in ANTONIO EIRAS ROEL (ed.), La emigración española a Ultramar, 1492-1914, Madrid, 1991, pp. 311-316. 230 ANUARIO DE ESTUDIOS ATLÁNTICOS 12 ALBERTO VIEIRA embarque de cinco famílias por cada cem toneladas de mer-cadoria29. O processo migratório provocado pelos Descobrimentos foi também materializado por estrangeiros residentes ou que acudiram ao apelo dos descobrimentos. Foram os genoveses, venezianos e florentinos quem mais usufruíram da abertura da coroa à participação estrangeira nos descobrimentos. Estes, mediante solicitação da coroa, ou através da naturalização por carta régia ou casamento, integraram-se facilmente nas viagens de descobrimento, povoamento e comércio30. Em qualquer dos arquipélagos a presença foi evidente, assumindo um papel sig-nificativo nas trocas com os mercados europeus. OS INSULARES E O BRASIL O Brasil exerceu ao longo da História um fascínio especial sobre os insulares que estão ligados desde o início ao seu processo de construção. A História dos arquipélagos da Madeira, Açores, Cabo Verde e Canárias têm relevado nos últimos anos a sua presença como lavradores, mercadores, funcionários e mili-tares. Para os séculos XVI e XVII valorizou-se a presença de madeirenses, de Norte a Sul, como lavradores e mestres de engenho, pioneiros na definição da agricultura de exportação baseada na cana-de-açúcar, funcionários que consolidaram as instituições locais e régias, ou militares que se bateram em di-versos momentos pela soberania portuguesa. O forte impacto madeirense nos primórdios da sociedade brasileira levou Evaldo Cabral de Mello a definir a capitania de S. Vicente como a Nova Madeira31. 29 JOSÉ PÉREZ VIDAL, Aportación de Canárias a la población de América, Las Palmas, 1991, p. 87. 30 PROSPERO PERAGALLO, Cenni in torno alla Colonia Italiana in Portogallo nei secoli XIV, XV e XVI, Torino, 1904; CHARLES VERLINDEN, «L’influenza italia-na nela colonizzazione iberica. Uomini e metodi», in Nuova Rivista Storica, XXXVI, 1952, 254-270; ISABEL CASTRO HENRIQUES, «Os italianos como re-velador do Projecto Político Português nas Ilhas Atlânticas (séculos XV e XVI)», in Ler História, nº 16, 1981. 31 Conferência, in As Ilhas e o Brasil, Funchal, CEHA, 2000, p. 13. Núm. 50 (2004) 231 AS ILHAS ATLÂNTICAS. PARA UMA VISÃO DINÂMICA DA SUA HISTÓRIA 13 Evaldo Cabral de Mello Neto, como José António Gonsalves de Mello, são raros exemplos na historiografia brasileira de valorização da presença madeirense32. Aos agricultores e técnicos de engenho seguiram-se aventureiros, perseguidos pela religião (= os judeus), politica e alguns foragidos da justiça. Deste modo a presença de madeirenses, ainda que mais evidente nas terras de canaviais de Pernambuco, espalhou-se a todo o espaço com focos de maior influência em S. Vicente, Baía, Caraíbas e Ilhéus. A libertação do Maranhão em 1642 foi obra de António Teixeira Mello, enquanto em Pernambuco a resistência e ex-pulsão do holandês foi organizada desde 1645 por João Fer-nandes Vieira. Ainda, a defesa da soberania lusíada foi conse-guida com o envio de companhias de soldados da ilha. Assim temos em 1631 de João de Freitas da Silva, 1632 de Francisco de Bettencourt e Sá e em 1646 de Francisco Figueiroa. No últi-mo quartel do século XVII com o envio de soldados para o Maranhão e Rio de Janeiro e Santa Catarina. O processo ganhou nova dimensão no século XVIII com a emigração de casais madeirenses e açorianos. Esta foi a solução encontrada para resolver os problemas sociais nas ilhas e garan-tir a soberania das terras do Sul brasileiro. Em 1746 temos o envio de casais açorianos e madeirenses para o sul como garantia de defesa das fronteiras do Tratado de Madrid. A fundação da cidade de Portalegre é feita por um madeirense, sendo aqui a presença de colonos, fundamentalmente, açoriana. As evidências da situação estão ainda hoje presente no estado de Santa Catarina através de diversas manifestações como as festas do Espírito Santo. Nos séculos XIX e XX o Brasil continuou a ser um destino cobiçado dos insulares. A História e o quo-tidiano registam de forma evidente o movimento. Cabo Verde e as Canárias33 afirmaram-se no relacionamento com o Brasil por força do comércio de escravos, ficando ainda 32 José Pereira da Costa [«O Brasil...», in As Ilhas e o Brasil, Funchal, 2000, pp. 22-23] refere que a Historiografia brasileira dedica pouca atenção às ilhas. 33 ROSELLI SANTAELLA STELLA, «As Ilhas Canárias nos Registos do Brasil de Quinhentos», in XI Coloquio de Historia Canario Americana, t. III (1996), 57-73; IDEM, «As Canárias como eixo na conexão comercial do Brasil ao Prata», in X Coloquio de Historia Canario Americana, t. I, 1994, 89-305. 232 ANUARIO DE ESTUDIOS ATLÁNTICOS 14 ALBERTO VIEIRA reservado às ilhas de Tenerife e La Palma o contrabando de açúcar no século XVII. O período de união das coroas peninsu-lares favoreceu esta via. Não obstante a presença de gentes das Canárias no Brasil, foi nas colónias espanholas que os mesmos adquiriram uma posição desusada, mercê do posicionamento do arquipélago em face da rota de ida. As viagens de Colombo abriram-lhes as portas, que nunca mais se fecharam. Nos séculos XVIII e XIX as ligações comerciais das ilhas no Atlântico mantêm-se pela oferta de vinho, vinagre, de açúcar e aguardente. A relação alargou-se a partir de 1746 à presença de casais insulares (madeirenses e açorianos) no Sul e à forte emigração da segunda metade do século XIX. No século XX o Brasil continuou a ser ainda o El Dourado para os insulares, nomeadamente os madeirenses, que encontram no Rio e San-tos, a fuga às dificuldades da guerra ou às difíceis condições de sobrevivência. OS ESCRAVOS A expansão europeia abriu aos europeus as portas do Atlân-tico propiciando a migração das mais importantes rotas comer-ciais para novo palco. As viagens de reconhecimento da costa africana tornaram possível o acesso fácil ao mercado de escravos através das razias. Não foram os portugueses que estiveram na origem da escravização do negro e na criação do mercado negreiro, pois já existia há muito tempo no mundo mediterrânico e africano. O seu papel resume-se a estabelecer as rotas atlânticas e a ini-ciar a colonização assente nesta mão-de-obra. A Madeira assu-miu mais uma vez uma posição relevante por ter sido o primeiro espaço. Todavia o escravo nunca teve uma posição dominante na sociedade e processo produtivo, situação que só sucederá em Cabo Verde e S. Tomé. Nestes últimos arquipélagos um dos principais incentivos à fixação de colonos europeus foi o privilégio do resgate de escravos na costa africana vizinha. O comércio de escravos, a exemplo das demais transacções comerciais no espaço atlântico alem do Bojador, esteve sujeito a Núm. 50 (2004) 233 AS ILHAS ATLÂNTICAS. PARA UMA VISÃO DINÂMICA DA SUA HISTÓRIA 15 apertada regulamentação. Primeiro foi a reserva de espaço no litoral africano para intervenção exclusiva dos vizinhos de Cabo Verde e S. Tomé. Ambos os arquipélagos funcionaram como placas giratórias do trato negreiro para o novo continente. Depois com a união das duas coroas, a partir de 1595, manteve-se o controlo régio, sendo o comércio sujeito a um sistema de contratos e assentos. A situação só persistiu até 1650, altura em que o mercado de escravos africanos abriu as portas a todos os intervenientes34. Isto aconteceu num momento de retracção do mercado brasileiro que só recuperará trinta e nove anos mais tarde com a necessidade da mão-de-obra para a mineração. O processo de formação das sociedades insulares na Guiné foi diferente daquilo que aconteceu na Madeira, Açores e Canárias. Aqui, a distância do reino e as dificuldades de re-crutamento de colonos europeus devido à insalubridade do cli-ma condicionaram de modo evidente a expressão étnica. A par de um reduzido número de europeus, restrito em alguns casos aos familiares dos capitães e funcionários régios, juntaram-se os africanos, que corporizaram o grupo activo da sociedade. Quer em Cabo Verde, quer em S. Tomé o trabalho dos escravos era a força motriz da economia agrícola. Em todas as ilhas a presença do escravo negro não foi pací-fica, sendo considerada em muitos momentos como um factor de forte instabilidade social. Os fugitivos, num e noutro lado, geravam a habitual apreensão das autoridades, que tudo faziam para sanar os aspectos nocivos que a sua presença poderia cau-sar. Mas enquanto na Madeira, Açores ou Canárias a confli-tuosidade era sazonal, não assumindo proporções graves, o mesmo não se podendo dizer das ilhas da Guiné. Em S. Tomé, os fugitivos reuniam-se nas montanhas em quadrilhas e assalta-vam esporadicamente as vilas. 34 Cf. ENRIQUETA VILA VILAR, Hispano-América y el comercio de esclavos. Los asientos portugueses, Sevilla, 1977. 234 ANUARIO DE ESTUDIOS ATLÁNTICOS 16 ALBERTO VIEIRA OS JUDEUS A comunidade judaica assumiu um papel de destaque no processo dos descobrimentos. A presença é notória desde o início. Aos judeus foram atribuídas responsabilidades na definição das rotas comerciais que ligavam o atlântico descoberto com os mercados do norte da Europa. A teia familiar de negócios foi um dos principais suportes da rede comercial35. Desde a Ma-deira, com o incremento do açúcar, a sua presença é evidente. Tão pouco a criação do tribunal da Inquisição os impediu de manter uma posição de destaque. A intervenção do tribunal da Inquisição de Lisboa nos novos espaços atlânticos, apenas os fazia avançar para novos destinos ou refúgios nas praças do norte da Europa, mas sem perderem o vínculo aos mercados e espaços de origem. A presença de judeus portugueses nas Canárias com vínculos às ilhas portuguesas é evidente36. A criação de colégios dos Jesuítas em Ponta Delgada, Angra e Funchal, bem como as visitas realizadas nos anos de 1575, 1591 e 1618-21 contribuíram para aumentar e reforçar a presença da comunidade, que se alarga a Cabo Verde e ao Brasil37. A FLORA E FAUNA A expansão atlântica revelou ao europeu um novo mundo, onde a flora e a fauna dominaram. A descoberta da nova realidade fez-se não só pelo valor alimentar e económico, mas 35 P. SALAMON, «Os primeiros portugueses de Amesterdão», in Cami-niana, V, nº 8, 1983, pp. 22-104. 36 LUCIEN WOLF, Jews in the Canary Islands..., Londres, s.d.; LUIS ALBER-TO ANAYA HERNÁNDEZ, «Una comunidad judeoconversa de origen portugués a comienzos del siglo XVI en la isla de La Palma», II Colóquio Internacio-nal de História da Madeira, 1989, 685-700; IDEM, «Relaciones de los archi-piélagos de Azores y de la Madera con Canarias, según fuentes inqui-sitoriales (siglos XVI y XVII)», I Colóquio Internacional de História da Madeira, Funchal, 1989, 846-877. 37 ARNOLD WIZNITZER, Os judeus no Brasil colonial, S. Paulo, 1966; JOSÉ ANTÓNIO GONÇALVES SALVADOR, Os cristãos novos e o comércio no Atlântico Meridional, S. Paulo, 1978. Núm. 50 (2004) 235 AS ILHAS ATLÂNTICAS. PARA UMA VISÃO DINÂMICA DA SUA HISTÓRIA 17 também científico. O processo de povoamento implicava obriga-toriamente a migração de plantas, animais e técnicas de re-colecção, cultivo e transformação. O retorno foi igualmente rico e conduziu paulatinamente à revolução do quotidiano europeu. Algumas das novas plantas entraram rapidamente nos hábitos das populações e cedo se perdeu o rastro da origem. Portugueses e espanhóis foram importantes na troca de plantas entre o Novo e o Velho Mundo. No Oriente foram as especiarias que dinamizadora as rotas comerciais e cobiça dos europeus. A América revelou-se pela variedade e exoticidade das plantas e frutos, com valor alimentar, que contribuíram em Áfri-ca para colmatar a deficiência alimentar. O processo não foi pacífico, pois em muitos casos provocou alterações catastróficas no quadro natural. Isto aconteceu em regiões sujeitas à violên-cia de uma monocultura solicitada pelos mercados internacio-nais. Estão neste caso a cana sacarina, o cacau, o café e o al-godão. As ilhas voltaram a assumir de novo um papel fundamental como de viveiros de aclimatação das plantas e culturas em movimento. A Madeira funcionou nos dois sentidos. Da Europa propiciou a transmigração da fauna e flora identificada com a cultura ocidental. No retorno foram as plantas do Novo Mundo que tiveram de novo passagem obrigatória pela ilha. A riqueza botânica do Funchal resulta disso. O processo de imposição da chamada biota europeia, no dizer de Alfred Crosby38, foi respon-sável por alguns dos primeiros e mais importantes problemas ecológicos. Nos séculos XV e XVI tivemos as viagens de descobrimento, enquanto no século XVIII sucederam as de exploração e desco-berta da natureza, comandadas por ingleses e franceses. Final-mente desvendou-se uma nova vocação, sendo as ilhas campo de observação directa da natureza. A afirmação da Ciência na Europa fez delas escala para as expedições científicas que se organizaram desde o século XVII. O enciclopedismo e as classifi-cações de Linneo (1735) tiveram nas ilhas um campo ideal de experimentação. Tenha-se em conta as campanhas da Linnean 38 Imperialismo ecológico. A expansão biológica da Europa: 900-1900, S. Paulo, 1993. 236 ANUARIO DE ESTUDIOS ATLÁNTICOS 18 ALBERTO VIEIRA Society e o facto de o próprio presidente da sociedade, Charles Lyall, ter-se deslocado em 1838, de propósito, às Canárias. O VINHO O ritual cristão valorizou o pão e o vinho. Em ambos os casos foi fácil a adaptação às ilhas aquém do Bojador o mesmo não sucedendo com as da Guiné. A viticultura ficou reservada ao Mediterrâneo Atlântico, onde o vinho adquiriu um lugar im-portante nas exportações. A partir da Madeira as cepas chega-ram a todos os recantos do Novo mundo. As primeiras cepas foram conduzidas à ilha do Pico donde se expandiram às demais ilhas. Também terão chegado às Canárias. A evolução da safra vitivinícola madeirense dos séculos quinze e dezasseis só pode ser conhecida através do testemunho de visitantes estrangeiros, uma vez que é escassa a informação das fontes diplomáticas. A documentação e os visitantes nos sécs. XVIII/XIX, foram unânimes em considerar o vinho como a principal riqueza da ilha e a única moeda de troca. Desde o século XVII que o ilhéu traçou a rota no mercado internacional, acompanhando o colonialista nas expedições e fixação na Ásia e América. O comerciante inglês soube tirar partido do produto fazendo-o chegar em quantidades volumosas às mãos dos compatriotas que se haviam espalhado pelos quatro cantos do mundo colonial europeu. O movimento do comércio do vinho ao longo dos sécs. XVIII e XIX imbrica-se de modo di-recto no traçado das rotas marítimas coloniais que tinham passagem obrigatória na ilha. A estas juntavam-se outras subsidiárias, quase todas sob controlo inglês. São as rotas da Inglaterra colonial que fazem do Funchal porto de refresco e carga de vinho no rumo aos mercados das Índias Ocidentais e Orientais, donde regressavam, via Açores, com o recheio colo-nial. Depois temos os navios portugueses da rota das Índias, ou do Brasil que escalavam a ilha onde recebem o vinho que conduzem às praças lusas. Juntam-se ainda os navios ingleses que se dirigiam à Madeira com manufacturas e fazem o retor-no tocando Gibraltar, Lisboa, Porto e, finalmente, os norte- Núm. 50 (2004) 237 AS ILHAS ATLÂNTICAS. PARA UMA VISÃO DINÂMICA DA SUA HISTÓRIA 19 americanos que traziam as farinhas para madeirense e re-gressam carregados de vinho. O vinho ilhéu conquistou desde o séc. XVI o mercado colonial em África, Ásia e América afirman-do- se até meados do séc. XIX como a bebida por excelência do colonialista e das tropas coloniais em acção. Regressado o colo-nialista à terra de origem, com o surto do movimento inde-pendentista, trouxe na bagagem o vinho da ilha. Aqui releva-se a posição do mercado americano, dominado pelas colónias das Índias Ocidentais e portos norte-americanos. O último destino sedimentou-se, a partir da segunda metade do século XVII, mercê de um activo relacionamento. O vinho foi uma presença assídua nos portos atlânticos — Boston, Char-leston, N. York e Filadélfia, Baltimore, Virgínia — onde era trocado por farinhas39. Esta contrapartida reforçou o relaciona-mento comercial e actuou como circunstância favorecedora do progresso da economia vitivinícola. Apenas nas Canárias e Açores a cultura da vinha e o co-mércio do vinho atingiram posição similar à Madeira40. Os mer-cados foram os mesmos sendo disputados com extrema con-corrência. Note-se que os arquipélagos dos Açores, Canárias e Madeira, ficaram conhecidos na documentação oficial norte-americana como as ilhas do vinho41. A Madeira e os Açores, face aos privilégios concedidos pela coroa britânica no período após a Restauração — as actas de navegação de 1660 e 1665 e o tra-tado de Methuen em 1703 — conseguiram firmar uma posição de destaque. Mas nos séculos seguintes apagaram-se as dife-renças e o vinho das ilhas entrava em pé de igualdade nos portos e mesa dos norte-americanos. 39 Cf. JORGE MARTINS RIBEIRO, «Alguns aspectos do comércio da Ma-deira com a América na segunda metade XVIII», in Actas III Colóquio Inter-nacional de História da Madeira, Funchal, 1993, pp. 389-401. 40 ANTONIO BÉTHENCOURT MASSIEU, Canarias e Inglaterra: el comercio de vinos (1650-1800), Las Palmas, 1991; MANUEL LOBO CABRERA, El comercio del vino entre Gran Canaria y las Indias en el siglo XVI, Las Palmas,1993; AGUSTÍN GUIMERÁ RAVINA, Burguesía extranjera y comercio atlántico. La empresa comercial irlandesa en Canarias (1703-1771), Madrid, 1985. 41 Veja-se A. GUIMERÁ RAVINA, «Las islas del vino (Madeira, Açores e Canarias) y la América inglesa durante el siglo XVIII. Una aproximación a su estudio», in II C.I.H.M. Actas, Funchal, 1990, pp. 900-934, confronte-se ALBERT SILBERT, art. cit., pp. 420-428. 238 ANUARIO DE ESTUDIOS ATLÁNTICOS 20 ALBERTO VIEIRA A ROTA DO AÇÚCAR A cana-de-açúcar, pelo alto valor económico no mercado nórdico e mediterrâneo, foi um dos primeiros e principais produtos que a Europa legou e definiu para as novas áreas de ocupação no Atlântico. O percurso iniciou-se na Madeira, alar-gando- se depois às restantes ilhas e continente americano. A primeira metade do século dezasseis é definida como o momento de apogeu da cultura açucareira insular e pelo avolu-mar das dificuldades que entravaram a promoção em algumas áreas como a Madeira onde o cultivo era oneroso e os níveis de produtividade desciam em flecha. As ilhas de Gran Canária, La Palma, Tenerife e S. Tomé estavam melhor posicionadas para produzir açúcar a preços mais competitivos. Isto sucedeu na década de vinte do século dezasseis e avançou à medida que os novos mercados produtores de açúcar atingiam o máximo de produção. As socas de cana foram levadas para os Açores pelos primi-tivos cabouqueiros, promovendo-se o cultivo em Santa Maria, S. Miguel, Terceira e Faial. Aqui a cultura foi tentada várias vezes, mas sem surtir os efeitos desejados. As condições geofísicas alia-das à inexistência ou reduzida dimensão dos capitais estrangeiros travaram o desenvolvimento. O açúcar açoriano só ganhou importância a partir do século XX, mas apenas com a transfor-mação da beterraba. Aos arquipélagos de Cabo Verde e S. Tomé os canaviais chegaram muito mais tarde e como noutras áreas a experiência madeirense foi importante. Apenas nas ilhas de Santiago e S. Nicolau nunca foi concorrencial do açúcar madeirense. As condições morfológicas e orográficas foram-lhe adversas. A introdução deverá ter sido feita, no início do povoamento na década de sessenta, não obstante a primeira referência datar de 1490. No século XIX os canaviais expan-diram- se nas ilhas de Santiago, Santo Antão, Brava, S. Nicolau e Maio. A valorização tem a ver com a solicitação de aguardente para o trato de escravos na Costa da Guiné42. 42 ANTÓNIO CARREIRA, Estudos de economia caboverdiana, Lisboa, 1982. Núm. 50 (2004) 239 AS ILHAS ATLÂNTICAS. PARA UMA VISÃO DINÂMICA DA SUA HISTÓRIA 21 Em S. Tomé os canaviais estendiam-se pelo norte e nordeste da ilha, fazendo lembrar, segundo um testemunho de 1580, os campos alentejanos43. Um dos factos que contribuiu para que se tornasse concorrencial do madeirense foi a elevada produ-tividade. Segundo Jerónimo Munzer44 seria três vezes superior à madeirense. A partir do último quartel do século dezasseis a concorrência desenfreada do açúcar brasileiro definiu uma acentuada quebra no período de 1595 a 1600. A isto deverá jun-tar- se a revolta dos escravos (1595), agravada pela destruição dos engenhos provocada pelo saque holandês. A partir daí o arquipélago de São Tomé ficou a depender apenas do comércio de escravos e da pouca colheita de mandioca e milho. A crise do comércio de escravos a partir de princípios do século deza-nove fez com que se operasse uma mudança radical na econo-mia. Surgiram, então, novas culturas (cacau, café, gengibre coconote, copra e óleo de palma) que proporcionaram uma nova aposta agrícola e de dependência. O PASTEL E PLANTAS TINTUREIRAS Até ao século XVII com a introdução do anil na Europa o pastel foi a principal planta da tinturaria europeia, donde se ia buscar as cores preta e azul. A par disso a disponibilidade de outras plantas tintureiras, como a urzela (donde se conseguia um tom castanho avermelhado) e o sangue-de-drago, levaram ao aparecimento de italianos e flamengos, interessados no comércio, que por sua vez nos legaram a nova planta tintureira: o pastel. Nos Açores, a exemplo do sucedido com o açúcar na Madeira, a coroa concedeu vários incentivos para a promoção da cultura, que com a incessante procura por parte dos merca-dos nórdicos, fizeram avançar rapidamente o cultivo. Em 1589 Linschoten referia que «o negócio mais frequente destas ilhas é o pastel» de que os camponeses faziam o «principal mister», sendo o comércio «o principal proveito dos insulares»45, enquanto em 43 ISABEL CASTRO HENRIQUES, «O ciclo do açúcar em S. Tomé nos sécu-los XV e XVI», in Portugal no Mundo, I, Lisboa, 1989, 271. 44 Monumenta Missionária Africana, IV, 1954, nº 6, 16-20. 45 Ob. cit., 152-154. 240 ANUARIO DE ESTUDIOS ATLÁNTICOS 22 ALBERTO VIEIRA 1592 o Governador de S. Miguel atribuía a falta de pão ao domínio quase exclusivo do solo pelo cultivo do pastel46. Foi ainda um tradicional mercado produtor de linho com expor-tação para o mercado europeu, situação que perdurou até princípios do século XIX. Nos arquipélagos além do Bojador ignora-se a presença do pastel, não obstante a importância que aí assumiu a cultura do algodão e o consequente fabrico de panos. O clima e o des-conhecimento das técnicas de tinturaria, demonstrados na en-trega da exploração da urzela aos castelhanos João e Pêro de Lugo, favoreceram a conjuntura. Mas aqui a cultura do algodão foi imposta pelos mercados costeiros africanos, carentes de fio para a indústria têxtil. No decurso dos séculos XVI e XVII o algodão apresentou-se como primordial para a economia cabo-verdiana, sendo o principal incentivo, ao lado do sal, para as trocas comerciais com a costa africana, nomeadamente Ca-samansa e o rio de S. Domingos. No início apenas se produzia algodão para a Europa, mas depois passou a desenvolver-se a indústria de panos, face à grande procura que havia na costa africana a troco de escravos47. No séculos XVIII e XIX a exploração da urzela manteve-se activa em algumas das ilhas, sendo de destacar o caso das ilhas de Cabo Verde. A exploração do recur-so segue lado a lado da do azeite de purgueira para a ilu-minação48. A ROTA DA TECNOLOGIA O processo de expansão europeia não se ficou apenas pelo processo de descobrimento de novos mundos, da abertura de novos mercados e o encontro de novas gentes e produtos. A história tecnológica evidencia que a expansão europeia con-dicionou também a divulgação de técnicas e permitiu a invenção de novas que revolucionaram o processo de transição. Os homens que circulam no espaço atlântico, e de forma especial 46 Arquivo dos Açores, II, 130. 47 ANTÓNIO CARREIRA, Panaria cabo-verdeano-guineense, Cabo Verde, 1983. 48 ANTÓNIO CARREIRA, Estudos de economia caboverdiana, Lisboa, 1982. Núm. 50 (2004) 241 AS ILHAS ATLÂNTICAS. PARA UMA VISÃO DINÂMICA DA SUA HISTÓRIA 23 os colonos, suo portadores de uma cultura tecnológica que divulgam nos quatro cantos e procuram adaptar às condições de cada espaço. Á agricultura prende-se um indispensável su-porte tecnológico auxiliador do homem nas culturas do vinho e da cana sacarina. A moenda e o consequente processo de transformação da guarapa em açúcar, mel, álcool ou aguardente projectaram as áreas produtoras de canaviais para a linha da frente das ino-vações técnicas, no sentido de corresponderem às cada vez maiores exigências do mercado e da concorrência. A madeira e o metal foram a matéria-prima que deram forma a capacidade inventiva dos senhores de engenho. Na moenda da cana utili-zaram- se vários meios técnicos comuns ao mundo mediterrâ-nico. A disponibilidade de recursos hídricos conduziu à genera-lização do engenho de água. Foi a partir da Madeira que se generalizou o consumo do açúcar, sendo necessário para isso uma produção em larga es-cala. A pressão do mercado europeu conduziu a uma rápida afirmação da cultura na segunda metade do século XVI, situação que só seria possível de alimentar com o recurso a inovações tecnológicas capazes de atenderem a tais solicitações. A evo-lução para o sistema de cilindros não reverte no melhor apro-veitamento do suco da cana, mas sim vantagens acrescentadas para a rapidez no processo de esmagamento. A situação da Madeira a partir de meados do século XV foi de incremento da cultura que se aliou a inovações tecnológicas, que certamente o engenho de Diogo de Teive foi o primeiro exemplo. Os ma-deirenses estiveram ligados à promoção da cultura e construção dos primeiros engenhos açucareiros nas ilhas Canárias, Açores, S. Tomé, e Brasil, chegando mesmo ao norte de África, situação que não mereceu o agrado da coroa e foi interditado pela coroa em 153749. 49 ARM., RGCMF, t. I, fl. 372v, publ. in Arquivo Histórico da Madeira, vol. XIX (1990), pp. 79-80. 242 ANUARIO DE ESTUDIOS ATLÁNTICOS 24 ALBERTO VIEIRA AS ROTAS OCEÂNICAS E DA CIÊNCIA O Atlântico surge, a partir do século XV, como o principal espaço de circulação de veleiros, pelo que se definiu um intricado liame de rotas de navegação e comércio que ligavam o velho continente às costas africana e americana e as ilhas. Esta multiplicidade de rotas, que resultou da complemen-taridade económica das áreas insulares e continentais, surge como consequência das formas de aproveitamento económico aí adoptadas. Tudo isto completa-se com as condições geofísicas do oceano, definidas pelas correntes e ventos que delinearam o traçado das rotas e os rumos das viagens. A mais importante e duradoura de todas as rotas foi sem dúvida aquela que ligava as Índias (ocidentais e orientais) ao velho continente. Foi ela que galvanizou o empenho dos monar-cas, populações ribeirinhas e acima de tudo os piratas e cor-sários, sendo expressa por múltiplas escalas apoiadas nas ilhas que polvilhavam as costas ocidentais e orientais do mar: primeiro as Canárias e raramente a Madeira, depois Cabo Ver-de, Santa Helena e os Açores. Nos três arquipélagos, definidos como Mediterrâneo Atlântico, a intervenção nas grandes rotas faz-se a partir de algumas ilhas, sendo de referir a Madeira, Gran Canaria, La Palma, La Gomera, Tenerife, Lanzarote e Hierro, Santiago, Flores e Corvo, Terceira e S. Miguel. Para cada arquipélago afirmou-se uma ilha, servida por um bom porto de mar como o principal eixo de actividade. No mundo insular português, por exemplo, evidenciaram-se, de forma diversa, as ilhas da Madeira, Santiago e Terceira como os principais eixos. As rotas portuguesas e castelhanas apresentavam um tra-çado diferente. Enquanto as primeiras divergiam de Lisboa, as castelhanas partiam de Sevilha com destino às Antilhas, tendo como pontos importantes do raio de acção os arquipélagos das Canárias e Açores. Ambos os centros de apoio estavam sob soberania distinta: o primeiro era castelhano desde o século XV, o segundo português, o que não facilitou muito o imprescindível apoio. Mas por um lapso tempo (1585-1642) o território entrou na esfera de domínio castelhano, sem que isso tivesse significa- Núm. 50 (2004) 243 AS ILHAS ATLÂNTICAS. PARA UMA VISÃO DINÂMICA DA SUA HISTÓRIA 25 do maior segurança para as armadas. Apenas se intensificaram as operações de represália de franceses, ingleses e holandeses. As expedições organizadas pela coroa espanhola na década de oitenta com destino à Terceira tinham uma dupla missão: de-fender e comboiar as armadas das Índias até porto seguro, em Lisboa ou Sevilha, e ocupar a ilha para aí instalar uma base de apoio e de defesa das rotas oceânicas. A escala açoriana justi-ficava- se mais por necessidade de protecção das armadas do que por necessidade de reabastecimento ou reparo das embarcações. Era à entrada dos mares açorianos, junto da ilha das Flores, que se reuniam os navios das armadas e se procedia ao comboia-mento até o porto seguro na península, furtando-os à cobiça dos corsários, que infestavam os mares. Desde o início que a segurança das frotas foi uma das mais evidentes preocupações para a navegação atlântica pelo que as coroas peninsulares delinearam, em separado, um plano de defesa e apoio. Em Portugal tivemos o regimento para as naus da Índia nos Açores, promulgado em 1520, em que foram estabelecidas normas para impedir que as mercadorias caíssem nas mãos da cobiça por meio do contrabando e corso. A necessidade de garantir com eficácia tal apoio e defesa das ar-madas levou a coroa portuguesa a criar, em data anterior a 1527, a Provedoria das Armadas, com sede na cidade de Angra50. A nomeação em 1527 de Pero Anes do Canto para provedor das armadas da Índia, Brasil e Guiné, marca o início da viragem. Ao provedor competia a superintendência de toda a defesa, abastecimento e apoio às embarcações em escala ou de passa-gem pelos mares açorianos. Além disso estava sob as suas ordens a armada das ilhas, criada expressamente para comboiar, desde as Flores até Lisboa, todas aquelas provenientes do Bra-sil, Índia e Mina. Esta estrutura de apoio fazia falta aos castelhanos na área considerada crucial para a navegação atlântica, e por isso por diversas vezes solicitaram o apoio das autoridades açorianas. Mas a ineficácia ou a necessidade de uma guarda e defesa mais actuante obrigou-os a reorganizar a carreira, criando o sistema de frotas. Desde 1521 as frotas 50 Confronte-se o nosso estudo sobre O comércio inter-insular nos séculos XV e XVI, Funchal, 1987, 17-24. 244 ANUARIO DE ESTUDIOS ATLÁNTICOS 26 ALBERTO VIEIRA passaram a usufruir de uma nova estrutura organizativa e de-fensiva. No começo foi o sistema de frotas anuais artilhadas ou escoltadas por uma armada. Depois a partir de 1555 o estabele-cimento de duas frotas para o tráfico americano: Nueva Espana e Tierra Firme. O activo protagonismo do arquipélago açoriano e, em espe-cial, da ilha Terceira é referenciado com frequência por ro-teiristas e marinheiros que nos deram conta das viagens ou os literatos açorianos que presenciaram a realidade. Todos falam da importância do porto de Angra que, no dizer de Gaspar Frutuoso, era «universal escala do mar do poente»51. A participação do arquipélago madeirense nas grandes rotas oceânicas foi esporádica, justificando-se a ausência pelo posi-cionamento marginal em relação ao traçado ideal. A proxi-midade da Madeira em relação aos portos do litoral peninsular e as condições dos ventos e correntes marítimas foram o princi-pal obstáculo à valorização da ilha no contexto das navegações atlânticas. As Canárias, porque melhor posicionadas e distri-buídas por sete ilhas em latitudes diferentes, estavam em condições de oferecer o adequado serviço de apoio. Todavia a situação conturbada que aí se viveu, resultado da disputa pela posse entre as coroas peninsulares e a demorada pacificação da população indígena, fizeram com que a Madeira surgisse no século XV como um dos principais eixos do domínio e navegação portuguesa no Atlântico. Já a partir de princípios do século XVI a Madeira surgirá apenas como um ponto de referência para a navegação atlântica, uma escala ocasional para reparo e aprovisionamento de vinho. Apenas o surto económico da ilha conseguirá atrair as atenções das armadas, navegantes e aven-tureiros. As ilhas foram as portas de entrada e saída e por isso mesmo assumiram um papel importante nas rotas atlânticas. Mas para sulcar longas distâncias rumo ao Brasil, à costa africana ou ao Indico, era necessário dispor de mais portos de escala, pois a viagem era longa e difícil. As áreas comerciais da costa da Guiné e, depois, com a ultrapassagem do cabo da Boa Esperança, as indicas tornaram 51 Livro Sexto das Saudades da Terra, Cap. II. Núm. 50 (2004) 245 AS ILHAS ATLÂNTICAS. PARA UMA VISÃO DINÂMICA DA SUA HISTÓRIA 27 indispensável a existência de escalas intermédias. Primeiro Arguim que serviu de feitoria e escala para a zona da Costa da Guiné, depois, com a revelação de Cabo Verde, foi a ilha de Santiago que se afirmou como a principal escala da rota de ida para os portugueses e podia muito bem substituir as Canárias ou a Madeira, o que realmente aconteceu. Outras mais ilhas assumiram um lugar proeminente no traçado das rotas. É o caso de S. Tomé para a área de navegação do golfo da Guiné e de Santa Helena para as caravelas da rota do Cabo. Também a projecção dos arquipélagos de S. Tomé e Cabo Verde sobre os espaços vizinhas da costa africana levou a coroa a criar duas feitorias (Santiago e S. Tomé) como objectivo de controlar to-das as transacções comerciais da costa africana. No Atlântico sul as principais escalas das rotas do Índico assentavam nos portos das ilhas de Santiago, Santa Helena e Ascensão. Aí as armadas reabasteciam-se de água, lenha, mantimentos ou procediam a ligeiras reparações. A par disso releva-se, ainda, a de Santa Helena como escala de reagrupamento das frotas vindas da Índia depois de ultrapassado o cabo, isto é, missão idêntica à dos Açores no final da travessia oceânica. A função da ilha de San-tiago com escala do mar oceano foi efémera. A partir da déca-da de trinta do século XVI as escalas são menos assíduas. O mar era já conhecido e as embarcações de maior calado permitiam viagens mais prolongadas. Apenas os náufragos dos temporais aí aparecem à procura de refúgio. O século dezanove foi marcado por uma mudança total no sistema de rotas do Atlântico. Os progressos no desenvolvimento da máquina a vapor fizeram com que se elaborasse um novo plano de portos de escala, capazes de servirem de apoio à navegação como fornecedores dos produtos em troca e do carvão para a laboração das máquinas. Nos Açores o porto de Angra cedeu o lugar aos da Horta e Ponta Delgada, enquanto em Cabo Verde a ilha de Santiago foi substituída pela de S. Vicente, lugar que disputava com as Canárias. Entretanto o Funchal viu reforçada a posição pela dupla oferta como porto carvoeiro e do vinho, atraindo inúmeras embarcações inglesas e americanas. A par disso a posição privilegiada que os ingleses gozavam levou a que se servissem do porto como base para as 246 ANUARIO DE ESTUDIOS ATLÁNTICOS 28 ALBERTO VIEIRA actividades de corso contra os franceses e castelhanos. Esta nova aposta no sector de serviços de apoio à navegação comercial e de passageiros vai depender de uma outra política, a dos portos francos, que apenas o arquipélago das Canárias conseguiu le-var por diante. As ilhas foram no século XVIII um centro chave das trans-formações sócio-políticas então operadas, de ambos os lados do oceano, fruto da forte presença da comunidade inglesa. Esta vinculação ao império britânico é bastante evidente no quoti-diano e devir histórico nos séculos XVIII e XIX52. A Madeira, no decurso do século XVIII, firmou a vocação atlântica, contribuindo para isso o facto de os ingleses não dispensarem o porto do Funchal e o vinho na sua estratégia colonial. As diversas actas de navegação (1660, 1665), corroboradas pelos tratados de amizade, de que merece relevo o de Methuen (1703)53, foram os meios que abriram o caminho para que a Madeira entrasse na área de influência do mundo inglês54. Aos poucos, esta comu-nidade ganhou uma posição de respeito que, por vezes, se tornava incomodativa55. A presença e importância da feitoria inglesa, no decurso do século XVIII, é uma realidade insofismável. A presença de armadas inglesas no Funchal era constante sendo o relacionamento com as autoridades locais amistoso, recebidos pelo Governador com toda a hospitalidade56. Destas relevam-se as de 1799 e 1805, compostas, respectivamente de 108 e 112 embarcações57. Para além disto era assídua a presença de uma 52 DESMOND GREGORY, The Beneficent Usurpers. A History of the British in Madeira, London, 1988. 53 Public Record Office, FO 811/1, cartas dos privilégios da nação britânica com Portugal desde 1401 a 1805. 54 J. H. FISHER, The Methuen a Pombal. O comércio anglo-português de 1700 a 1770, Lisboa, 1984, p. 29. 55 Em 1754 o Governador Manuel Saldanha Albuquerque lamenta o exclusivo do comércio inglês na ilha (AHU, Madeira e Porto Santo, nº 48-49). 56 Public Record Office, FO 63/7, sabe-se que por ordem de 14 de Junho de 1722 as embarcações com destino às colónias permaneciam alguns dias no Funchal. A 20 de Janeiro de 1786 são 20 barcos em tal situação, coor-denada pelo cônsul. 57 AHU, Madeira e Porto Santo, nº 1125, 1620, 22 de Outubro de 1799 e 7 de Outubro de 1805. Núm. 50 (2004) 247 AS ILHAS ATLÂNTICAS. PARA UMA VISÃO DINÂMICA DA SUA HISTÓRIA 29 esquadra inglesa a patrulhar o mar madeirense, sendo a de 1780 comandada por Jonhstone58. A ilha de Santa Catarina do litoral sul do Brasil, funcionou para os portugueses a partir de finais do século XVII como uma fortaleza de apoio e defesa à navegação rumo ao Rio da Prata. Ao mesmo tempo jogou um papel fundamental na penetração e afirmação da soberania portuguesa no Sul. Esta posição favo-receu o estabelecimento de assíduos contactos com outros portos do litoral brasileiro, como Santos, Baía e Recife59. A partir de meados do século XIX a Madeira e as Canárias especializam-se como portos de escala de navios de passageiros, com especial destaque para os ingleses. Para isso contribuiu a tradicional presença britânica e a afirmação da ilha com estân-cia turística. Nos Açores assiste-se no decurso do século XVII a uma clara mudança dos espaços portuários de dimensão intercontinental. A Horta pela posição charneira no grupo central e pelo desta-que que assumiu no apoio à baleação dos americanos acabou por ser o porto oceânico de apoio às pescarias, ao comércio americano e fornecimento de carvão, retirando importância ao de Angra. A posição foi reforçada na segunda metade do sécu-lo XIX com a amarração dos cabos submarinos. Por outro lado o centro económico do arquipélago situava-se na ilha de S. Mi-guel, o que implicava a valorização do porto de mar. Em Cabo Verde ocorreram idênticas mudanças que levaram à desvalorização de Santiago em favor de S. Vicente. O porto oceânico transformou-se num oásis oceânico das embarcações conduzidas a vapor que aí demandavam à procura do necessário abastecimento de carvão e um eixo de amarração de cabos sub-marinos. O processo foi evidente a partir 1838 com a criação da vila nas proximidades do Porto Grande e a instalação do primeiro depósito de carvão pelo cônsul inglês John Rendall. A situação muda a partir de 1883, pois a agressividade espanho-la através dos portos francos de Las Palmas e Santa Cruz de Tenerife associada à modernização do porto francês de Da- 58 Ibidem, nº 545, 22 de Janeiro de 1780. 59 Cf. FERNANDO HENRIQUES CARDOSO, Negros em Florianópolis. Relações Sociais e Económicas, Florianópolis, 2000, pp. 41-42, 50, 79, 93. 248 ANUARIO DE ESTUDIOS ATLÁNTICOS 30 ALBERTO VIEIRA kar conduziram à desvalorização dos portos portugueses nas ilhas. Já a presente centúria atribui uma dimensão distinta às ilhas. Assim, o jogo de interesses entre o continente europeu e ameri-cano fez com que algumas se transformassem em peças chave da hegemonia económica. Daqui resultou a disputa entre Alemanha e Inglaterra por conseguir traze-las à sua esfera de influência. A política dos sanatórios foi o subterfúgio usado pe-los alemães para iludir as pretensões expansionistas no Atlântico. Na base disto está o conflito gerado pela questão dos sanatórios na Madeira, que teve como instigador a Inglaterra60. Aqui, mais uma vez a Inglaterra usufruiu de uma posição favorável ao rei-vindicar a tradição histórica da aliança61. A percepção da importância das ilhas na afirmação da hegemonia marítima britânica levou Thomas Ashe (1813)62 a reivindicar para os Açores a transformação num protectorado britânico. Nos anos vinte os vapores começaram a ceder o lugar às «máquinas voadoras», paulatinamente a aviação civil foi con-quistando o mercado de transporte de passageiros. Mesmo assim as ilhas continuaram a manter o papel de apoio às rotas transatlânticas. Nos Açores tivemos a ilha de Santa Maria, enquanto em Cabo Verde idêntico papel foi atribuído à ilha do Sal desde 193963. Até ao aparecimento e vulgarização da telegrafia sem fios a estratégia de circulação da informação assentava nas ilhas. As ilhas da Madeira, Faial e São Vicente foram de novo motivo de 60 GISELA MEDINA GUEVARA, As relações luso-alemãs antes da Primeira Guerra Mundial. A questão da concessão dos sanatórios da Ilha da Madeira, Lisboa, 1997. 61 Cf. ANTÓNIO JOSÉ TELO, Os Açores e o controlo do Atlântico, Lis-boa, 1993. 62 ASHE, T(HOMAS), History of the Azores on Western Islands; Containing an Account of the Government, Laws and Religion, the Martners, Ceremonies and Character of the Inhabitants and demonstrating the Importance of these Valuable Islands to the British Empire, Ed. Sherwood, Neely, and Jones, Londres, 1813. 63 FRANCIS M. ROGERS, Atlantic Islanders of the Azores and Madeiras, Massachusetts, 1979, pp. 191-208; R. E. G. DAVIES, A History of the World’s Airlines, London, 1964. Núm. 50 (2004) 249 AS ILHAS ATLÂNTICAS. PARA UMA VISÃO DINÂMICA DA SUA HISTÓRIA 31 disputa e interesses por ingleses e alemães64. A cidade da Horta rapidamente se transformou num nó de amarração de cabos submarinos que ligavam a Europa, América, África do Sul e Brasil, assinalando-se em 1926 a existência de quinze cabos65. O mesmo acontecia na ilha de S. Vicente onde amarrou o cabo submarino inglês em 1874. ESCALAS DA CIÊNCIA Desde o século dezoito que a literatura científica e de viagens definiu este conjunto de ilhas como uma unidade de análise. São as Western Islands que encabeçam os títulos das publicações66. Aqui entendia-se quase sempre os Açores, mas muitas vezes associava-se as Canárias, a Madeira e, raramente Cabo Verde. As ilhas entraram rapidamente no universo da ciência euro-peia dos séculos XVIII e XIX. Ambas as centúrias foram momen-tos de assinaláveis descobertas do mundo com um estudo siste-mático da fauna e flora67. As técnicas de classificação das espécies da fauna e flora têm aqui um espaço ideal de trabalho. Algumas colecções foram feitas para deleite dos apreciadores, que figuram em lista que antecede a publicação68. O homem do século XVIII perdeu o medo ao meio circundan-te e passou a olhá-lo com maior curiosidade e, como dono da 64 PAUL KENNEDY, «Imperial Cable Comunications and Strategy, 1870- 1914», in The English Historical Review, vol. LXXXVI, 1971; FRANCIS M. ROGERS, ob. cit., pp. 175-190, 209-230; CHARLES BRIGHT, Submarine Tele-graphs: Their History, Construction and Working, London, 1898; K. C. BAGHAHOLE, A Century of Service. A Brief History of Cable and Wireless Ltd 1868-1968, London, 1970; K. R. HAIGH, Cableships and Submarine Cables, London, 1968; H. H. SCHENCK (org.), The World’s Submarine Telephone Ca-ble Systems, Washington DC, 1975. 65 F. S. WESTON, «Os cabos submarinos nos Açores», in Boletim do Núcleo Cultural da Horta, vol. III, nº 2, 1963. 66 VÍCTOR MORALES LEZCANO, Los ingleses en Canarias. Libro de viajes e historias de vida, Las Palmas de Gran Canaria, 1986, p. 124 67 MARY L. PRATT, Imperial Eye.Travel Writing and Transculturation, N.Y., 1993; B. M. STAFFORD, Voyage into Substance — Science, Nature and the Illustrated Travel Account 1770-1840, Cambridge, Mass., 1984, pp. 565-634. 68 Estampas, aguarelas e desenhos da Madeira Romântica, Funchal, 1988. 250 ANUARIO DE ESTUDIOS ATLÁNTICOS 32 ALBERTO VIEIRA criação, estava-lhe atribuída a missão de perscrutar os segredos ocultos. Este impulso justifica o afã científico. A ciência está baseada na observação directa e experimentação. A insaciável procura e descoberta da natureza circundante cativou toda a Europa, mas foram os ingleses quem entre nós marcaram presença, sendo menor a de franceses e alemães69. Aqui são pro-tagonistas as Canárias e a Madeira. Tudo isto foi resultado da função de escala à navegação e comércio no Atlântico. Se as embarcações de comércio, as expedições militares tinham esca-la obrigatória, mais razões assistiam às científicas. As ilhas, pelo endemismo que as caracteriza, história geo-botânica, permitiram o primeiro ensaio das técnicas de pesquisa. Foram também um meio revelador da incessante busca do conhecimento da Geo-logia e Botânica. Instituições seculares, como o British Museum, Linean So-ciety, e Kew Gardens, enviaram especialistas para a recolha de espécies botânicas. Os estudos no domínio da Geologia, botânica e flora são resultado da presença fortuita ou intencional dos cientistas europeus. Esta moda levou a que as instituições cien-tíficas europeias ficassem depositárias das mais importantes colecções de fauna e flora das ilhas: o Museu Britânico, Linnean Society, Kew Gardens, a Universidade de Kiel, Universidade de Cambridge, Museu de História Natural de Paris. E por cá passaram destacados especialistas da época, sendo de realçar John Byron, James Cook, Humbolt, John Forster. Darwin esteve nas Canárias e Açores (1836) e mandou um discípulo à Madeira. No arquipélago açoriano o cientista mais ilustre terá sido o Prín-cipe Alberto I do Mónaco que aí aportou em 1885. James Cook escalou a Madeira por duas vezes em 1768 e 1772, numa répli-ca da viagem de circum-navegação apenas com interesse cientí-fico. Os cientistas que o acompanharam intrometeram-se no interior da ilha à busca das raridades botânicas para a classi-ficação e revelação à comunidade científica. Em 1775 o na-vegador estava no Faial e no ano imediato em Tenerife. 69 Cf. «Algumas das Figuras Ilustres Estrangeiras que Visitaram a Madeira», in Revista Portuguesa, 72, 1953; A. LOPES DE OLIVEIRA, Arqui-pélago da Madeira. Epopeia Humana, Braga, 1969, pp. 132-134. Núm. 50 (2004) 251 AS ILHAS ATLÂNTICAS. PARA UMA VISÃO DINÂMICA DA SUA HISTÓRIA 33 Os Arquipélagos da Madeira e Canárias, devido à posição estratégica na rota que ligava a Europa ao mundo colonial, foram activos protagonistas nos rumos da Ciência dos séculos XVIII e XIX. Já aos Açores estava reservado o papel de anco-radouro seguro antes de se avistar a Europa. Foi isto que o catapultou para uma posição privilegiada na história de nave-gação e comércio do Atlântico. Nas Canárias a primeira e mais antiga à presença de naturalistas ingleses é de 1697, ano em que James Cuningham esteve em La Palma. O século XVIII anunciou-se como de forte presença, nomeadamente dos fran-ceses. O contacto do cientista com o arquipélago açoriano fazia-se quase sempre na rota de regresso de Africa ou América. Para os americanos as ilhas eram a primeira escala de descoberta do velho mundo. Por outro lado os Açores despertaram a curiosi-dade das instituições e cientistas europeus. Os aspectos geoló-gicos, nomeadamente os fenómenos vulcânicos foram o princi-pal alvo. Mesmo assim o volume de estudos não atingiu a dimensão dos referentes à Madeira e Canárias pelo que Mau-rício Senbert em 1838 foi levado a afirmar que a «flora destas ilhas [fora]por tanto tempo despresada», o que levou a dedicar-se ao estudo70. As ilhas são o principal alvo de atenção de botânicos, ictió-logos, geólogos. A situação é descrita por Alfredo Herrera Piqué a considerar como «a escala científica do Atlântico»71. Os ingle-ses foram os primeiros a descobrir as qualidades do clima e paisagem e a divulga-los junto dos compatriotas. É esta a dimensão quase esquecida como motivo despertador da ciência e cultura europeia desde o século XVIII que importa realçar A aclimatação das plantas com valor económico, medicinal ou ornamental adquiriu cada vez mais importância. Aliás, foi o interesse medicinal que provocou desde o século XVII o estudo72. Em qualquer dos momentos assinalados as ilhas cumpriram o papel de ponte e espaço de adaptação da flora colonial. Os 70 «Flora Azorica», in Archivo dos Açores, XIV (1983), pp. 326-339. 71 Las Islas Canarias. Escala científica en el Atlántico. Viajeros y natura-listas en el siglo XVIII, Madrid, 1987. 72 K. THOMAS, Man and the Natural World. Changing Attitudes in England. 1500-1800, Oxford, 1983, p. 27, 65-67. 252 ANUARIO DE ESTUDIOS ATLÁNTICOS 34 ALBERTO VIEIRA jardins de aclimatação foram a moda que na Madeira e Açores tiveram por palco as amplas e paradisíacas quintas. A Inglate-rra do século XIX popularizou os jardins e as flores73. A am-biência chegou à ilha através dos mesmos súbditos de Sua Majestade. As ilhas exerceram um fascínio especial em todos os visitantes e parece que nunca perderam a imortal característica de jardins à beira do oceano. As ilhas foram jardins e como tal continuam a ser o encanto dos que a procuram, sejam turistas ou cientistas. No século XVIII as ilhas assumiram um novo papel no mun-do europeu. Assim, de espaços económicos passaram a contri-buir para alívio e cura de doenças. O mundo rural perdeu importância em favor da área em torno do Funchal, que se transforma num hospital para a cura da tísica pulmonar ou de quarentena na passagem do calor tórrido das colónias para os dias frios e nebulosos de Londres. A função catapultou as ilhas da Madeira e Canárias para uma afirmação evidente. O debate das potencialidades terapêuticas da climatologia propiciou um grupo numeroso de estudos e gerou a escala frequente de estudiosos74. As estâncias de cura surgiram pri-meiro na bacia mediterrânica e depois expandiram-se no sécu-lo XVIII até à Madeira e só na centúria seguinte chegaram às Canárias75. Daqui resultou uma prolixa literatura de viagens fonte fun-damental para o conhecimento da sociedade oitocentista das ilhas. Ao historiador está atribuída a tarefa de interpretar estas impressões76. Aqui são merecedoras de destaque duas mulheres: 73 Cf. K. THOMAS, ibidem, pp. 207-209, 210-260. 74 JAMES CLARK, The Sanative Influence of Climate, Londres, 1840; W. HUGGARD, A Handbook of Climatic Treatment, Londres, 1906; NICOLÁS GONZÁLEZ LEMUS, Las Islas de la Ilusión. Británicos en Tenerife, 1850-1900, Las Palmas, 1995; TOMÁS ZEROLO, Climatoterapia de la tuberculosis pul-monar en la Península española, Islas Baleares y Canarias, Santa Cruz de Tenerife, 1889. 75 M. J. BÁGUERRA CERVELLERA, La tuberculosis y su história, Barcelo-na, 1992. 76 ANTÓNIO RIBEIRO MARQUES DA SILVA, Apontamentos sobre o quotidiano madeirense (1750-1900), Lisboa, 1994; N. GONZÁLEZ LEMUS, Viajeros victorianos en Canarias, Las Palmas, 1998. Núm. 50 (2004) 253 AS ILHAS ATLÂNTICAS. PARA UMA VISÃO DINÂMICA DA SUA HISTÓRIA 35 Isabella de França77 para a Madeira e Olívia Stone78 para as Canárias. A presença de viajantes e «invalids» nas ilhas conduziu à necessidade de criação de infra-estruturas de apoio. Se num primeiro estes se socorriam da hospitalidade dos insulares, num segundo momento a cada vez mais maior afluência de foras-teiros obrigou à montagem de uma estrutura hoteleira de apoio. Aos primeiros as portas eram franqueadas por carta de recomen-dação. A isto juntou-se a publicidade através da literatura de viagens e guias. Os guias forneciam as informações indispen-sáveis para a instalação no Funchal e viagem no interior da ilha, acompanhados de breves apontamentos sobre a História, costumes, fauna e flora79. O primeiro guia de conjunto dos arquipélagos é de William W. Cooper80 e A Samler Brown81. O último tornou-se num best-seller atingindo 14 edições. Tenha-se em conta os destinatários dos guias. Assim em 1851 James Yate Johnson e Robert White82 fazem apelo aos «invalid and other visitors», enquanto em 1887 Harold Lee83 dirige-se aos «tourists» e em 1914 temos o primeiro guia turístico de C. A. Power84. Este 77 Journal of a visit to Madeira and Portugal (1853-1954), Funchal, 1970. Todavia, a primeira viajante na ilha foi Maria Riddel que em 1788 visitou a ilha durante 11 dias: A Voyage to The Madeira..., Edinburgh, 1792. 78 Teneriffe and its Six Satellites (1887). 79 Para a Madeira, um dos mais antigos guias que se conhece é anóni-mo, seguindo-se os de Robert White [Madeira its Climate and Scenery containing Medical and General Information for Invalids and Visitors; a Tour of the Island, Londres, 1825], E. V. Harcourt [A Sketch of Madeira Containing Information for the Traveller or Invalid Visitor, Londres, 1851], J. Y. Johnson [Madeira its Climate and Scenery. A Handbook for Invalids and other Visitors, Edinburg, 2ª ed., 1857, 3ª ed., 1860] e E. M. Taylor [Madeira its Scenery and How to See it with Letters of a Year’s Residence and Lists of the Trees, Flowers, Ferns, and Seaweeds, Londres, 1ª ed., 1882, 2ª ed., 1889]. 80 The Invalid’s Guide To Madeira With a Description of Tenerife..., Lon-dres, 1840. 81 Madeira and the Canary Islands. 82 Madeira Its Climate and Scenery. A Handbook for Invalid and Other Visitors, Edimburgo, 1851. 83 Madeira and the Canary islands. A Handbook for Tourists, Liver-pool, 1887. 84 Tourist’s Guide to the Island of Madeira, Londres, 1914. 254 ANUARIO DE ESTUDIOS ATLÁNTICOS 36 ALBERTO VIEIRA deverá marcar nas ilhas o fim do chamado turismo terapêutico e o início do actual. Não temos dados seguros quanto ao desenvolvimento da hotelaria nas ilhas, pois apenas dispomos de informação avulsa85. Os Hotéis são referenciados em meados do século XIX mas desde os inícios do século XV que as cidades portuárias de activo movimento de forasteiro deveriam possuir estalagens. A documentação oficial faz eco disso como se poderá provar pelas posturas e actas da vereação dos municípios servidos de portos. No caso da Madeira assinala-se em 1850 a existência de dois hotéis (the London Hotel e Yate’s Hotel Family) a que se juntaram outros dez em 188986. Em princípios do século XX a capacidade hoteleira havia aumentado, sendo doze os hotéis em funcionamento que poderiam hospedar cerca de oitocentos visi-tantes87. As Canárias, nomeadamente Tenerife e Furteventura, jun-taram- se à Madeira no turismo terapêutico desde meados do século XIX88. Note-se que em 1865 Nicolás Benitez de Lugo construiu em La Orotava (Tenerife) «un estabelecimiento para extranjeros enfermos». Deverá ter sido nesta época que Tenerife se estreou como health resort, concorrendo com a Madeira89. O Vale de La Orotava, através do seu porto (hoje Puerto de La Cruz), afirma-se como a principal estância. Isto provocou o 85 Apenas a partir de 1891 temos o Registo de Licenças de Botequins, tabernas, Hoteis, Estalagens, Clubes e Lotaria (1891-1901). Cf. FÁTIMA FREI-TAS GOMES, «Hotéis e Hospedarias (1891-1901)», in Atlântico, nº 19, 1989, 170-177. 86 Isto de acordo com as informações de J. Driver (Guide to Visitors, Londres, 1850) e C. A. Mourão Pita (Madère, Station Mèdicale Fixe, Pa-ris, 1889). 87 MARQUÊS DE JÁCOME CORREIA, A Ilha da Madeira, Coimbra, 1927, p. 232. 88 W. COOPER, The Invalid’s Guide to Madeira with a Description of Tenerife, Londres, 1840; M. DOUGLAS, Grand Canary as a Heatlth Resort for Consummptives and Others, London, 1887; JOHN WHITEFORD, The Canary Islands as a Winter Resort, Londres, 1890; GEORGE VICTOR PÉREZ, Orotava as a Health Resort, Londres, 1893. 89 Note-se que em 1861 Richard F. Burton (Viajes a las Islas Canarias, I, 1861, Puerto de la Cruz, 1999, p. 26) que na sua viagem todos os tuberculosos ficaram na Madeira. Núm. 50 (2004) 255 AS ILHAS ATLÂNTICAS. PARA UMA VISÃO DINÂMICA DA SUA HISTÓRIA 37 desenvolvimento da indústria hoteleira, que depois alastrou à cidade de Santa Cruz de Tenerife90. Vários factores permitiram a rápida ascensão de Tenerife e Gran Canária na segunda metade do século XIX que assumissem rapidamente a dianteira face à Madeira. A afirmação de Santa Cruz de Tenerife como porto abastecedor de carvão, a declaração dos portos francos em 1852 fizeram atrair para aqui todas as linhas francesas e ingle-sas de navegação e comércio. A aposta no turismo e serviços portuários permitiu a saída da crise económica e uma posição privilegiada face à concorrência da Madeira ou Açores91. Nos Açores o turismo é mais recente. Bullar (1841) refere a presença de doentes americanos na Horta, o que conduziu ao aparecimento do primeiro hotel conhecido no Faial, em 1842. Em 1860 chegou o primeiro grupo de visitantes norte-america-nos, mas só em 1894 eram conhecidos como tourists92. Já na ilha de Santa Catarina a vocação turística foi descoberta nas duas últimas décadas do século XX. AS ILHAS E O NOVO MUNDO A definição dos espaços económicos não resultou apenas dos interesses políticos e económicos resultante da conjuntura 90 A. HERNÁNDEZ GUTIÉRREZ, De la Quinta Roja al Hotel Taoro, Puerto de la Cruz, 1983; IDEM, Cuando los hoteles eran palacios, Islas Canarias, 1990; A. GUIMERÁ RAVINA, El Hotel Marquesa, Puerto de la Cruz, 1988; IDEM, El Hotel Taoro, 1890-1990. Cien años de turismo en Tenerife, Santa Cruz de Tenerife, 1991. 91 Madeirenses e açorianos cedo se aperceberam desta realidade culpan-do as autoridades de Lisboa. Vide: JOÃO AUGUSTO D’ORNELLAS, A Madeira e as Canárias, Funchal, 1884; JOÃO SAUVAIRE DE VASCONCELOS, Representação da Câmara Municipal da Cidade do Funchal ao Governo de S. M. sobre Diversas Medidas Tendentes a Conservar e Arruinar a Navegação de passagem neste Porto dos Paquetes Transatlânticos, Funchal, 1884; VISCONDE VALLE PARAIZO, Propostas Apresentadas pela Commissão Nomeada em Assembleia da Associação Commercial do Funchal de 14 de Novembro de 1894 para Estudar as Causas do Desvio da Navegação do Nosso Porto e do Afastamento de Forasteiros, Funchal, 1895; MARIA ISABEL JOÃO, Os Açores no século XIX. Economia, Sociedade e Movimento Autonomista, Lisboa, 1991. 92 RICARDO MANUEL MADRUGA DA COSTA, Açores, Western Islands. Um Contributo para o Estudo do Turismo nos Açores, Horta, 1989. 256 ANUARIO DE ESTUDIOS ATLÁNTICOS 38 ALBERTO VIEIRA expansionista europeia mas também das condições internas, oferecidas pelo meio. São ilhas com a mesma origem geológica, sem quaisquer vestígios de ocupação humana, mas com dife-renças ao nível climático. Daqui resultou a diversidade de for-mas de valorização económica e social. As condições morfo-ló-gicas estabeleceram as especificidades de cada ilha e tornam possível a delimitação do espaço e a forma de aproveitamento económico. A possibilidade de acesso ao exterior através de bons ancoradouros era um factor importante. A mudança de centros de influência foi responsável de os arquipélagos atlânticos assumirem uma função importante. A isso poderá juntar-se a constante presença de gentes ribeirinhas do Mediterrâneo, interessadas em estabelecer os produtos e o necessário suporte financeiro. A constante premência do Me-diterrâneo nos primórdios da expansão atlântica poderá ser responsabilizada pela dominante mercantil das novas experiên-cias de arroteamento. Certamente que os povos peninsulares e mediterrânicos, ao comprometerem-se com o processo atlântico, não puseram de parte a tradição agrícola e incentivos co-merciais dos mercados de origem. Por isso na bagagem dos primeiros cabouqueiros insulares foram imprescindíveis as cepas, as socas de cana, alguns grãos do precioso cereal, de mistura com artefactos e ferramentas. A afirmação das áreas atlânticas resultou do transplante material e humana de que os peninsu-lares foram os principais obreiros. Foi a primeira experiência de ajustamento das arroteias às directrizes da nova economia de mercado. Ao nível do sector produtivo deverá ter-se em conta a importância assumida pelas condições geofísicas e a política distributiva das culturas. É da conjugação de ambas que se estabelece a necessária hierarquia. Os solos mais ricos eram reservados às culturas de maior rentabilidade económica (o tri-go, a cana de açúcar, o pastel), enquanto os medianos ficavam para os produtos hortícolas e frutícolas e os mais pobres eram pasto e área florestal. A Madeira, que se encontrava a pouco mais de meio século de existência como sociedade insular, estava em condições de oferecer os contingentes de colonos habilitados para a abertura Núm. 50 (2004) 257 AS ILHAS ATLÂNTICAS. PARA UMA VISÃO DINÂMICA DA SUA HISTÓRIA 39 de novas arroteias e lançamento de culturas. Assim terá sucedi-do com o transplante da cana-de-açúcar para Santa Maria, S. Miguel, Terceira, Gran Canária, Tenerife, Santiago, S. Tomé e Brasil. A tendência uniformizadora da economia agrícola do espaço insular esbarrou com vários obstáculos que, depois, conduziram ao reajustamento da política económica e à definição da com-plementaridade entre arquipélagos e ilhas. As ilhas criaram os meios necessários para solucionar os problemas quotidianos — assentes quase sempre no assegurar os componentes da die-ta alimentar —, à afirmação nos mercados europeu e atlântico. Assim sucedeu com os cereais que, produzidos apenas em algumas, foram suficientes para satisfazer as necessidades da dieta insular, sobrando um grande excedente para suprir as carências do reino. O cereal conduziu a uma ligação harmo-niosa dos espaços insulares, o mesmo não sucedendo com o açúcar, o pastel e o vinho, responsáveis pelo afrontamento e crítica desarticulação. Todos os produtos foram o suporte do domínio europeu na economia insular. Primeiro o açúcar, depois o pastel e o vinho exerceram uma acção devastadora no equilíbrio latente na economia. A incessante procura e rendoso negócio conduziram à plena afirmação, quase que exclusiva dos produtos, gerando a dependência ao mercado externo. Para além de consumidor exclusivo das culturas é o principal fornecedor dos produtos ou artefactos que os insulares carecem. A estrutura do sector produtivo de cada ilha moldou-se de acordo com isto, podendo definir-se em componentes da dieta alimentar (cereais, vinha, hortas, fruteiras, gado) e troca comercial (pastel, açúcar). Em consonância com a actividade agrícola verificou-se a valorização dos recursos disponibilizados por cada ilha, que integravam a dieta alimentar (pesca e silvicultura) ou as trocas comerciais (urzela, sumagre, madeiras). 258 ANUARIO DE ESTUDIOS ATLÁNTICOS 40 ALBERTO VIEIRA PIRATAS E CORSÁRIOS O século quinze foi marcado pela afirmação do Atlântico, novo espaço oceânico revelado pelos peninsulares. O mar, que até meados do século catorze se mantivera alheio à vida do mundo europeu, atraiu as atenções e em pouco tempo substituiu o mercado e via mediterrâneos. Franceses, ingleses e holande-ses que, num primeiro momento, foram apenas espectadores atentos, entraram n disputa a reivindicar um mare liberum e o usufruto das novas rotas e mercados. O Atlântico não foi ape-nas o mercado e via comercial, por excelência, da Europa, mas também um dos palcos dos conflitos que definiam as opções políticas, expressas muitas vezes na guerra de corso. Em 1434, ultrapassado o Bojador, o principal problema não estava no avanço das viagens, mas na forma de assegurar a exclusividade, o que na área aquém deste limite não fora conseguido. Primeiro foi a concessão em 1443 ao infante D. Henrique do controlo exclusivo das navegações e o direito de fazer guerra a sul do mesmo cabo. Depois a procura do beneplácito papal, na qualidade de autoridade suprema estabelecida pela «res publica christiana»93. A presença de estrangeiros foi considerada serviço ao Infan-te, como sucedeu com Cadamosto, António da Noli, Usodimare, Valarte e Martim Behaim, ou uma forma de usurpar o domínio e afronta ao papado. Os castelhanos, a partir da década de se-tenta, intervieram na Costa da Guiné como forma de represália às pretensões portuguesas à posse das Canárias. Não obstante as medidas repressivas, definidas em 1474 aos intrusos no comércio da Guiné, a presença castelhana continuará a ser um problema de difícil solução, alcançada apenas com cedências mútuas exaradas em 1479 em Alcáçovas e depois confirmado a 93 As bulas de Eugénio IV (1445), Nicolau V (1450 e 1452) preludiaram o que veio a ser definido pela célebre bula «Romanus Pontifex» de 8 de Janeiro de 1454 e «inter coetera» de 13 de Março de 1456. Nela se legitimava a posse exclusiva aos portugueses dos mares além do Bojador pelo que a sua ultrapassagem para nacionais e estrangeiros só seria possível com a anuência do infante D. Henrique. Núm. 50 (2004) 259 AS ILHAS ATLÂNTICAS. PARA UMA VISÃO DINÂMICA DA SUA HISTÓRIA 41 6 de Março do ano seguinte em Toledo. À partilha do oceano, de acordo com os paralelos, sucedeu mais tarde no sentido dos meridianos, provocado pela viagem de Colombo. O encontro do navegador em Lisboa com D. João II, no regresso da primeira viagem, despoletou, de imediato, o litígio diplomático, uma vez que o monarca português entendia estarem as terras descobertas na área de domínio. O conflito só encontrou solução com novo tratado, assinado em 7 de Julho de 1494 em Tordesilhas e rati-ficado pelo papa Júlio II em 24 de Janeiro de 1505. A partir de então ficou estabelecida uma nova linha divisória do oceano, a trezentos e setenta léguas de Cabo Verde. Estavam definidos os limites do mar ibérico em que as ilhas jogavam um papel des-tacado. Para os demais povos europeus só lhes restava uma re-duzida franja do Atlântico, a Norte, e o Mediterrâneo. Mas tudo isto seria verdade se fosse atribuída força de lei internacional às bulas papais e às opções das coroas peninsulares, o que na realidade não sucedia. O cisma do Ocidente, por um lado, e a desvinculação de algumas comunidades da alçada papal, por outro, retiraram aos actos jurídicos a medieval plenitude «potestatis». Em oposição à doutrina definidora do mare clau-sum antepõe-se a do mare liberum, que teve em Grócio o prin-cipal teorizador. A última visão norteou a intervenção dos fran-ceses, holandeses e ingleses94. A guerra de corso foi a resposta e teve uma incidência prefe-rencial nos mares circunvizinhos do Estreito de Gibraltar e ilhas, levando ao domínio de múltiplos espaços de ambas as margens do Atlântico. Podemos definir dois espaços de permanente inter-venção: os Açores e a Costa da Guiné e da Malagueta. Os ingleses iniciaram em 1497 as incursões no oceano, ficando célebres as viagens de W. Hawkins (1530), John Hawkins (1562-1568) e Francis Drake (1578, 1581-1588). Entretanto os franceses fixaram-se na América, primeiro no Brasil (1530, 1555-1558), depois em San Lorenzo (1541) e Florida (1562-1565). Os huguenotes de La Rochelle afirmaram-se como o terror dos ma-res, ficando célebres pelo assalto à cidade do Funchal em 1566. 94 Frei SERAFIM DE FREITAS, Do Justo Império Asiático dos Portugueses, vol. I, Lisboa, 1960. 260 ANUARIO DE ESTUDIOS ATLÁNTICOS 42 ALBERTO VIEIRA A última forma de combate ao exclusivismo do atlântico ganhou maior adesão dos estados europeus no século XVI. A partir de princípios da centúria o perigo das caravelas não resultou das condições geo-climáticas, mas sim da presença de intrusos, sempre disponíveis para assalta-las. A navegação foi dificultada e as rotas comerciais tiveram de ser adequadas à nova realidade. Surgiu a necessidade de artilhar as embarcações e uma armada para comboiar até porto seguro. As insistentes reclamações, nomeadamente dos vizinhos de Santiago em Cabo Verde, levaram a coroa a estabelecer armadas para protecção e defesa das áreas e rotas de comércio: armada da costa ocidental do reino, do litoral algarvio, dos Açores, da costa e golfo da Guiné, do Brasil95. Cedo os franceses começaram a infestar os mares próximos da Madeira (1550, 1566), Açores (1543, 1552-53, 1572) e Cabo Verde, e depois os ingleses e holandeses seguiram-lhe o encalço. Os primeiros fizeram incidir a acção nos arquipélagos da Madeira e Açores, patente na primeira metade do século XVI, pois em Cabo Verde apenas se conhecem alguns assaltos em 1537-1538 e 1542. Os navegantes do norte escolhiam os mares ocidentais ou a área do Golfo e costa da Guiné, tendo os das ilhas de Santiago e S. Tomé o principal centro de operações. Nos arquipélagos de Cabo Verde e S. Tomé, ao perigo inicial dos castelhanos e franceses juntam-se os ingleses e holandeses. Na década de sessenta o corso inglês era exercido por John Hawkins e John Lovell. Os ingleses não macularam a Madeira, onde tinham uma importante comunidade residente e empenhada no comércio atlântico, fazendo incidir a acção nos Açores (1538, 1561, 1565, 1572), Canárias e Cabo Verde. A presença de corsários deve ser articulada de acordo com a importância assumida pelas ilhas na navegação atlântica e as riquezas geradas, despertadoras da cobiça de estranhos. Os assaltos, os conflitos políticos entre as coroas europeias justificam-nos ainda. Na segunda metade do século XV o afrontamento entre as coroas peninsulares definiu a frequência 95 VITORINO MAGALHÃES GODINHO, «As incidências da pirataria e da concorrência na economia marítima portuguesa no século XVI», in Ensaios II, Lisboa, 978, pp. 186-200. Núm. 50 (2004) 261 AS ILHAS ATLÂNTICAS. PARA UMA VISÃO DINÂMICA DA SUA HISTÓRIA 43 dos castelhanos na Madeira ou em Cabo Verde, enquanto os conflitos entre as famílias régias europeias atribuíam a legiti-midade necessária às iniciativas, fazendo-as passar de roubo a acção de represália. Desde 1517, o conflito entre Carlos V de Espanha e Francisco I de França, depois a partir de 1580 os problemas decorrentes da união ibérica. São evidentes os esforços da diplomacia europeia no sentido de conseguir solução para as presas do corso. Portugal e França haviam acordado em 1548 a criação de dois tribunais de arbitragem, cuja função era anular as autorizações de represália e cartas de corso. Mas a existência não teve reflexos evidentes na acção dos corsários. É precisamente em 1566 que tivemos o mais importante assalto francês a um espaço português. Em Outubro de 1566 Bertrand de Montluc ao comando de uma armada composta de três embarcações perpetrava um dos mais terríveis assaltos à vila Baleira e à cidade do Funchal. Acon-tecimento parecido só o dos argelinos em 1616 no Porto Santo e Santa Maria, ou dos holandeses em S. Tomé e em Las Pal-mas em 1599. A incessante investida de corsários no mar e terra firme criou a necessidade de definir uma estratégia de defesa. No mar optou-se por artilhar as embarcações comerciais e pela criação de uma armada de defesa conhecida como a armada das ilhas. A partir de Angra procedia ao comboiamento das naus até por-to seguro. Em terra foi o delinear da linha de defesa dos principais portos, ancoradouros e baías, capaz de travar o poss��vel desembarque dos intrusos. O espaço insular não poderá considerar-se uma fortaleza inexpugnável, pois a disseminação por ilhas, servidas de uma extensa orla costeira impossibilitou uma politica concertada de defesa. Qualquer das soluções que fosse encarada para além de ser onerosa, não era satisfatória, sendo sempre protelada até que surgissem ameaças reais. O sistema de defesa costeiro tem a dupla finalidade: desmobilizar ou barrar o caminho ao inva-sor e de refúgio para populações e haveres. Por isso a norma foi a construção de fortalezas após qualquer ameaça e nunca fruto de uma acção preventiva. A instabilidade provocada pela permanente ameaça dos 262 ANUARIO DE ESTUDIOS ATLÁNTICOS 44 ALBERTO VIEIRA corsários, a partir do último quartel do século XV, condicionou o delineamento de um plano de defesa dos arquipélagos baseada numa linha de fortificação costeira e um serviço de vigias e ordenanças. As mudanças no domínio político e económicas operadas ao longo dos séculos dezoito e dezanove não retiraram às ilhas a função primordial de escala e espaço de disputa do mar oceano. A frequência de embarcações manteve-se enquanto o corso ficou marcado por uma forte escalada, entre finais da primeira centúria e princípios da seguinte. Aos tradicionais corsários de França, Inglaterra, Holanda vieram juntar-se os americanos do Norte e Sul. A presença dos holandeses rege-se por condições específicas, porque detinham importantes interesses na cultura açucareira americana, procuravam assegurar o domínio de S. Tomé, Santiago e demais feitorias do comércio de escravos. A isso juntava-se o empenho na manutenção das rotas do tráfico a destruição dos interesses açucareiros. O corso europeu incidia sobre as embarcações espanholas e francesas e a resposta das partes molestadas era violenta, como sucederá com a investida francesa contra os ingleses em 1793, 1797, 1814. Os ingleses actuaram com segurança, montado um plano de dom��nio do Atlântico em que o Funchal era o princi-pal porto de apoio para as incursões. O mar açoriano foi o alvo preferencial dos corsários ameri-canos. Portugueses e castelhanos foram as principais vítimas do corso americano. A permanente ameaça de corsários redobrou o empenho nas obras de defesa, que resultaram várias cam-panhas. Em todos os momentos a Madeira funcionou como base para as inúmeras incursões dos corsários ingleses. A neutra-lidade, insistentemente proclamada no papel não passava disso, pois os ingleses afrontaram por diversas formas a atitude do governador96. Desde a guerra de sucessão da Casa de Áustria que a Madeira teve esta vocação. O facto de estar sob as ordens 96 Em 1780 o Governador João Gonçalves da Câmara participa a Martinho de Mello e Castro a presença de uma esquadra inglesa no Funchal, pedindo instruções para manter absoluta neutralidade (Ibidem, nº 545, 22 de Janeiro). Núm. 50 (2004) 263 AS ILHAS ATLÂNTICAS. PARA UMA VISÃO DINÂMICA DA SUA HISTÓRIA 45 de Sua Majestade britânica, entre 1801-1802 e 1807-1814, favoreceu isso. Por seu turno os franceses faziam incidir mais a acção sobre as embarcações portuguesas, porque menos segu-ras e protegidas, do que as inglesas. Esta permanente ameaça da esquadra de Brest sobre o Funchal justificava-se mais pelo colaboracionismo madeirense aos ingleses do que pela guerra declarada entre as coroas peninsulares. Nos Açores o corso teve maior incidência nos primeiros anos do século XIX. Os protagonistas europeus foram os ingleses e castelhanos97. A intervenção dos corsários americanos era uma forma de reclamar o direito à independência. As acções são lançadas contra as embarcações da metrópole e aliados, o que atingiu os portugueses. A isto acresce a guerra entre ingleses e norte-americanos no período de 1812 a 1815 que provocou o aumento do número de corsários. Com as pazes muitos passa-ram a estar ao serviço dos insurgentes98. As transformações político-ideol��gicas nos continentes ame-ricano e europeu fizeram do Atlântico o espaço privilegiado de embate, sendo o corso o meio usado. O oceano foi a via de mútua troca de ideias, mas também o palco de debate, afron-tamento e defesa. E as ilhas jogaram um papel fundamental. Os três arquipélagos do Mediterrâneo atlântico (Madeira, Açores e Canárias) foram, mais uma vez, uma área charneira. CONCLUSÃO As ilhas cumpriram nos últimos cinco séculos diversos papéis. De espaços económicos rapidamente avançaram para faróis do Atlântico que acompanhavam as inúmeras embarcações que sulcavam o vasto oceano atlântico. Foram escalas imprescin-díveis para abastecimento de víveres frescos, água e carvão, mas paulatinamente se transformaram em espaços aprazíveis, pri-meiro para a cura da tísica pulmonar e depois repouso e deleite 97 A.H.U, Açores, Maço 11. 98 JOSÉ CALVET DE MAGALHÃES, História das Relações Diplomáticas entre Portugal e os Estados Unidos de América, Lisboa, 1991, p. 92. 264 ANUARIO DE ESTUDIOS ATLÁNTICOS 46 ALBERTO VIEIRA de aristocratas e aventureiros. O mundo das ilhas continuará sempre presente na História e actualidade. Hoje parece que as ilhas retomaram o deslumbramento do passado. Esgotados os recursos económicos resta-lhes apenas aquilo que as diferencia dos espaços continentais e que está na origem do nome na Antiguidade Clássica. As Afortunadas são o paraíso atlântico que continua a atrair o europeu. E, no milénio que agora começou não está provado que percam o protago-nismo que as marcou no passado. O europeu continuará a de-pender destes pilares atlânticos. Ontem como hoje, as ilhas não se fizeram rogadas aos desafios do devir histórico. |
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